sábado, 7 de fevereiro de 2009

Joana Vieira Tuttoilmondo

Barcelos Neto, Aristóteles. A arte dos sonhos – uma iconografia ameríndia, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia/Assírio & Alvim, 2002, 276 pp.

Sabemos que a autonomia da arte é um conceito ocidental. Mais do que isso, poderíamos dizer, uma meia-verdade ocidental. Afinal, como toda manifestação artística encerra obrigatoriamente uma atribuição de sentido, atribuições e sentidos que são sociais, a tal autonomia revela-se uma ficção.

Boa parte dos recentes estudos antropológicos voltados à compreensão das formas expressivas (plásticas, visuais, orais, musicais, performáticas etc.), com que tenho tomado contato, toma para si a preocupação de deslindar esses sentidos, integrando seu material de estudo (pinturas, desenhos, imagens, rituais, performances, músicas etc.) às demais dimensões da vida social, sem perder de vista o que há de específico e concreto na expressão não-verbal.

O livro de Aristóteles Barcelos Neto, A arte dos sonhos, apresenta uma reflexão consistente e encantadora, que encara de frente esse desafio. No texto – resultado de sua pesquisa entre os Wauja, realizada durante o mestrado – Barcelos Neto analisa uma série de desenhos realizados por xamãs-artistas. Na maioria deles, figuram seres sobrenaturais antropomórficos ou zoomórficos chamados apapaatai ou yerupoho. Com base nos desenhos, o autor se propõe a apontar como os Wauja percebem seu lugar no mundo e sua relação com os seres extra-humanos. As imagens – expressões visuais – são vistas como modos de reflexão cosmológica e ontológica.

O resultado é, em grande parte, tributário das capacidades interpretativas dos informantes. O próprio autor explicita que seu campo investigativo foi construído em conjunto com os informantes-desenhistas (p. 42), firmando suas opções metodológicas. Entram, por um lado, uma recapitulação da bibliografia sobre os Wauja e uma comparação com outros povos do Xingu, uma análise antropológica – fruto de suas cuidadosas observações etnográficas – sobre alimentação, adoecimento e cura, uma análise iconográfica do grafismo e do caráter formal dos desenhos. Por outro lado, inserem-se as considerações dos autores sobre seus desenhos, relacionados a experiências como o sonho e o transe, as interpretações nativas e a consideração do que os Wauja desejam expressar.

Nesse movimento, a compreensão dos desenhos ganha densidade à medida que são apresentadas as narrativas míticas de seus informantes. Revela-se uma correspondência complementar entre os mitos e a produção artística dos Wauja. Essa complementaridade, em vez de postulada, evidencia-se no enfrentamento do material. Ao final da leitura, os casos analisados delineiam com precisão e beleza o que o autor chama de ontologia e cosmologia plásticas wauja (p. 116).

Se ficássemos apenas no nível da fruição estética dos desenhos, o livro já propiciaria bons momentos. São belos os desenhos. Mas por que me pareceram belos? Para além da inegável precisão dos traços, do sentido de composição, do jogo de cores, do caráter sintético, do cuidado com a simetria, do ritmo, da complexidade formal etc., sua "beleza" está no quanto eles reportam a outras dimensões, no quanto eles deslindam informações que só podem ser claramente acessadas por meio das imagens.

Barcelos Neto apresenta como os desenhos se referem à relação dos Wauja com os seres extra-humanos, inserindo esta produção plástica no fluxo da vida cotidiana. Os episódios narrados pelo autor não são anedotas; por meio deles se evidencia um sistema relacional mais amplo, que sustenta e dá inteligibilidade a essa produção.

Em paralelo à análise sobre os Wauja, são fornecidas informações sobre o contexto de pesquisa, o que promove um ganho à leitura. A ida do autor a campo foi precedida por estudos feitos em coleções de diversos museus – Museu do Índio e Museu Nacional, no Rio de Janeiro, Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás e Museu de Arqueologia e Etnologia da USP – e compreendeu também um período de coleta de acervo para o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia.

Vale mencionar ainda outras realizações de Barcelos Neto na área museológica, como as exposições Os índios, nós e Com os índios Wauja – objetos e personagens de uma coleção amazônica, ambas realizadas no Museu Nacional de Etnologia de Lisboa, em 2000 e 2004, respectivamente. Com essas iniciativas, Aristóteles procurou trazer para o âmbito museológico o contexto de produção e circulação de objetos e sentidos. A arte dos sonhos não deixa de ser resultado da interrogação feita pelo autor aos objetos (nesse caso, os desenhos) no lugar em que eles foram recolhidos e com a colaboração de seus interlocutores.

Embora Aristóteles afirme que seu estudo se coloca num campo mais amplo do que a reflexão sobre as coleções antropológicas em museus – afirmação com a qual concordo integralmente –, algumas considerações que ele tece a respeito de seu próprio fazer se estendem a todos os processos museológicos de coleta. As trajetórias históricas e as redes de sociabilidade que envolvem os artefatos (sua produção e utilização) tendem a desaparecer quando eles ingressam numa reserva técnica de museu. A etnografia e a memória dos integrantes das sociedades produtoras desses objetos são capazes de recompor essa trama, e é nesta direção que os estudos sobre cultura material têm se conduzido mais recentemente.

O significado de cada motivo não deve ser procurado per se – erro que estudos de cultura material baseados apenas em coleções de museus podem cometer. "O entendimento do significado do grafismo wauja assenta-se menos nele próprio do que na agência de seus criadores" (p. 172). Conforme nos mostra Aristóteles, a arte permite um contato menos perigoso e, em um certo sentido, domesticado, com os seres extra-humanos.

O entendimento da imagem na sua inserção social é diferente da mera e vulgar contextualização. A meu ver, um dos maiores méritos do livro é aliar a compreensão das imagens à compreensão da sociedade sem recair em explicações deterministas ou causais. Como bem coloca o autor, os desenhos eram uma oportunidade de os Wauja produzirem reflexões a respeito de si próprios (p. 45).

Em A arte dos sonhos, as imagens são tratadas como estratégias para se conhecer a sociedade que as produz. Se um dia tais desenhos acabarem integrando a coleção de algum museu, certamente essa reflexão que envolveu sua coleta possibilitará que o contexto social de existência das imagens seja recuperado. É claro que não basta haver o estudo para que os liames sociais dos objetos mantenham-se articulados aos objetos nessa nova vida que eles passam a ter no contexto institucional do museu. Mas isso já é uma outra história.



Bibliografia

BARCELOS NETO, A. 2000 Os índios, nós, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia.

2004 Com os índios Wauja – objetos e personagens de uma coleção amazônica, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia.

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