quarta-feira, 30 de junho de 2010

Origem da Feijoada

A explicação popular mais difundida sobre a origem da feijoada é a de que os senhores – das fazendas de café, das minas de ouro e dos engenhos de açúcar – forneciam aos escravos os "restos" dos porcos, quando estes eram carneados. O cozimento desses ingredientes, com feijão e água, teria feito nascer a receita. Tal versão, contudo, não se sustenta, seja na tradição culinária, seja na mais leve pesquisa histórica. Segundo Carlos Augusto Ditadi, especialista em assuntos culturais e historiador do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em artigo publicado na revista Gula, de maio de 1998, essa alegada origem da feijoada não passa de lenda contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão romanceada das relações sociais e culturais da escravidão no Brasil.

O padrão alimentar do escravo não difere fundamentalmente no Brasil do século XVIII. Continuava tendo como base a farinha de mandioca ou de milho feita com água e mais alguns complementos, ou seja, o que fora estabelecido desde os primórdios. A sociedade escravista do Brasil, no século XVIII e parte do XIX, foi constantemente assolada pela escassez e carestia dos alimentos básicos, em decorrência da monocultura, da dedicação exclusiva à mineração e do regime de trabalho escravo, não sendo raros os óbitos por alimentação deficiente, incluindo a morte dos próprios senhores.

O escravo não podia ser simplesmente maltratado, pois custava caro e era a base da economia. Devia comer três vezes ao dia. Geralmente almoçava às 8 horas da manhã, jantava à 1 hora da tarde e ceava por volta de 8 ou 9 horas da noite. Nas referências históricas sobre o cardápio dos escravos, constatamos a presença inequívoca do angu de fubá de milho, ou de farinha de mandioca, além do feijão temperado com sal e gordura, servido muito ralo e a ocasional aparição de algum pedaço de carne de vaca ou de porco. Alguma laranja colhida do pé complementava o resto, o que evitava o escorbuto. Às vezes, em final de boa colheita de café, o capataz da fazenda podia até dar um porco inteiro aos escravos. Mas isso era exceção. Não existe nenhuma referência conhecida a respeito de uma humilde e pobre feijoada, elaborada no interior da maioria das tristes e famélicas senzalas.

Existe também um recibo de compra pela Casa Imperial, de 30 de abril de 1889, em um açougue da cidade de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, no qual se vê que consumiam-se carne verde, de vitela, carneiro, porco, linguiça, linguiça de sangue, fígado, rins, língua, miolos, fressura de boi e molhos de tripas. O que comprova que não eram só escravos que comiam esses ingredientes, e que não eram de modo algum "restos". Ao contrário, eram considerados iguarias. Em 1817, Jean-Baptiste Debret já relata a regulamentação da profissão de tripeiro, na cidade do Rio de Janeiro, que eram vendedores ambulantes, e que se abasteciam destas partes dos animais em matadouros de gado e porcos. Ele também informa que os miolos iam para os hospitais, e que fígado, coração e tripas eram utilizados para fazer o angu, comumente vendido por escravas de ganho ou forras nas praças e ruas da cidade.

Portanto, o mais provável é creditar as origens da feijoada a partir de influências europeias. Provavelmente, sua origem tem a ver com receitas portuguesas, das regiões da Estremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro, que misturam feijão de vários tipos - menos feijão preto (de origem americana) - linguiças, orelhas e pé de porco. De fato, cozidos são comuns na Europa, como o cassoulet francês, que também leva feijão no seu preparo. Na Espanha, o cozido madrilenho, e, na Itália, a “casseruola” ou "casserola" milanesa são preparados com grão-de-bico. Aparentemente, todos estes pratos tiveram evolução semelhante à da feijoada, que foi incrementada com o passar do tempo, até se transformar no prato da atualidade. Câmara Cascudo observou que sua fórmula continua em desenvolvimento.

A feijoada já parece ser bem conhecida no início do século XIX, como atesta um anúncio, publicado no Diario de Pernambuco, na cidade do Recife, de 7 de agosto de 1833, no qual um restaurante, o Hotel Théâtre, recém-inaugurado, informa que às quintas-feiras seria servida "feijoada à brasileira". Em 3 de março de 1840, no mesmo jornal, o Padre Carapuceiro publicava um artigo, no qual dizia:
Cquote1.svg Nas famílias onde se desconhece a verdadeira gastronomia, onde se tomam regabofes, é prática usual e comezinha converter em feijoada os fragmentos do jantar da véspera, ao que chamam enterro dos ossos [...] Lançam-se em uma grande panela ou caldeirão restos de perus, de leitões assados, fatacões de toucinho e de presunto, além disto bons vassalhos de carne seca vulgo ceará, tudo vai de mistura com o indispensável feijão: fica tudo reduzido a uma graxa! [4] Cquote2.svg
— '

Em 1848, o mesmo Diario de Pernambuco já anunciava a venda de "carne de toucinho, própria para feijoadas, a 80 réis a libra". No dia 6 de janeiro de 1849, no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, é comunicado que a recém instalada casa de pasto "Novo Café do Commércio", junto ao botequim da "Fama do Café com Leite", servirá em todas as terças e quintas-feiras, a pedido de muitos fregueses, "A Bella Feijoada à Brazilleira".
[editar] Composição

A feijoada completa, tal como a conhecemos, acompanhada de arroz branco, laranja em fatias, couve refogada e farofa, era muito afamada no restaurante carioca G. Lobo, que funcionava na rua General Câmara, 135, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O estabelecimento, fundado no final do século XIX, desapareceu em 1905, com as obras de alargamento da rua Uruguaiana. Com a construção da avenida Presidente Vargas, na década de 1940, esta rua desaparece por definitivo.

Nos livros Baú de Ossos e Chão de Ferro, Pedro Nava descreve a feijoada do G. Lobo, elogiando aquela preparada pelo Mestre Lobo. Sobretudo, revela-se na presença do feijão-preto, uma predileção carioca. A receita contemporânea teria migrado da cozinha do estabelecimento G. Lobo para outros restaurantes da cidade, bem como para São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Bares e botequins das grandes cidades do Centro-Leste também a adotaram com sucesso. Mas ressalva Pedro Nava que é (...) "antes a evolução venerável de pratos latinos".
Cquote1.svg No meu Baú de Ossos referi, repetindo Noronha Santos, que a feijoada completa é prato legitimamente carioca. Foi inventado na velha Rua General Câmara, no restaurante famoso de G. Lobo, cujo nome se dizia contraído em Globo. Grifei, agora, o inventado, para marcar bem marcado seu significado de achado. Não se pode dizer que ele tenha sido criação espontânea. É antes a evolução venerável de pratos latinos como o cassoulet francês que é um ragout de feijão-branco com carne de ganso, de pato ou de carneiro – que pede a panela de grés – cassole – para ser preparado. Cquote2.svg
— Pedro Nava em Chão de Ferro.

A feijoada de qualquer forma, se popularizou entre todas as camadas sociais no Brasil, sempre com espírito de festa e celebração. Ficaram famosas na lembrança, aquelas preparadas no final do século XIX e início do XX, na cidade do Rio de Janeiro, pela baiana Tia Ciata.

E anteriormente, o escritor Joaquim José de França Júnior, em texto de 1867, descreve ficticiamente um piquenique no campo da Cadeia Velha, onde é servida uma feijoada com "(...) Lombo, cabeça de porco, tripas, mocotós, língua do Rio Grande, presunto, carne-seca, paio, toucinho, linguiças (...) ", e, em 1878, descreve uma "Feijoada em [Paquetá]", onde diz que: " (...) A palavra – feijoada, cuja origem perde-se na noite dos tempos d’El-Rei Nosso Senhor, nem sempre designa a mesma coisa. Na acepção comum, feijoada é a iguaria apetitosa e suculenta dos nossos antepassados, baluarte da mesa do pobre, capricho efêmero do banquete do rico, o prato essencialmente nacional, como o teatro do Pena, e o sabiá das sentidas endeixas de Gonçalves Dias. No sentido figurado, aquele vocábulo designa a patuscada, isto é, "uma função entre amigos feita em lugar remoto ou pouco patente" (...)".

Atualmente, espalha-se por todo o território nacional, como a receita mais representativa da cozinha brasileira. Revista, ampliada e enriquecida, a feijoada deixou de ser exclusivamente um prato. Hoje, como também notou Câmara Cascudo, é uma refeição completa.

terça-feira, 29 de junho de 2010

http://www.edicoestoro.net/

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A personagem narrativa e as paixões. A construção da subjetividade

Eliane Soares de Lima

Resumo

Entendendo a personagem como uma unidade difusa de significação, construída progressivamente pela narrativa, sendo dela, portanto, parte decorrente e inerente, este artigo pretende propor uma reflexão sobre o processo de construção da subjetividade dos seres verbais, que resulta em uma estrutura complexa e autônoma, que confunde o leitor quanto às barreiras que separam ficção e realidade. Assim, utilizando a teoria e os métodos de análise propostos pela semiótica das paixões, esboçamos uma linha de raciocínio capaz de colaborar para um estudo da personagem em suas especificidades de ser-linguagem.




O “ser” é um efeito de discurso. Sua competência
(para agir) e sua existência (modal, passional) se
constrói seja por pressuposições ou catálises, mas
sempre a partir da manifestação do discurso.
Waldir Beividas



A personagem, enquanto categoria da narrativa, é o indicador mais manifesto
da ficção, ocupando assim uma função bastante marcante na literatura. A partir dos
mecanismos de identificação, projeção, decifração, os seres fictícios tornam-se a principal ponte entre a obra e o leitor, possibilitando sua adesão afetiva e intelectual, ao viver e contemplar, na obra, a sua experiência. Contudo, apesar da impressão de vida real que muitas personagens transmitem a seus leitores, esses seres habitantes do universo ficcional serão sempre apenas o resultado de um processo configurativo da linguagem, tanto no sentido físico quanto no psíquico. A subjetividade das personagens (sentimentos, paixões) deve ser entendida, portanto, como um efeito de sentido inscrito e codificado na e pela linguagem.
Assim, a semiótica procura inscrever a problemática das paixões nos princípios
de pertinência e de coerência da teoria geral da significação, que passa a compreender a paixão como uma modulação dos estados do sujeito, concernindo não mais à transformação dos estados de coisas (fulcro da narratividade, como explica Bertrand, 2003), mas à modulação provocada pela relação do corpo sensível com o que o cerca.
Durante muito tempo o modelo da pesquisa semiótica esteve alicerçado sobre o
descontínuo da estrutura narrativa, já que o núcleo da gramática narrativa, com seus
programas narrativos, pontuava apenas os enunciados de junção e, portanto, as
transformações dos estados de coisas. Nesse sentido, o espaço compreendido entre um estado e outro era relativamente deixado de lado, como um vazio a preencher. A semiótica das paixões, preocupando-se exatamente com o dinamismo interno dos estados, vem, pois, construir uma “semântica” da dimensão passional nos discursos, introduzindo uma descrição semiótica da ordem do contínuo. Dessa forma, a dimensão passional da configuração dos seres fictícios fica centrada nas relações entre o sujeito e o objeto, cuja transformação é assegurada pelos enunciados de fazer, e o espaço passional, feito de tensões e aspectualizações, delineia-se “em torno” das transformações narrativas.
Quando falamos em “modulação dos estados do sujeito”, estamos pensando no
movimento, nas ondulações de estabilidades e instabilidades da massa tímica ordenadora do discurso, que ora enfatizam um dos pontos do eixo semântico fundamental, ora outro, dando margem à disposição afetiva de base dos sujeitos integrantes desse discurso. Desse modo, a análise dos seres fictícios de um dado discurso pode deixar de deter-se somente no agir da personagem para preocupar-se também com o sentir do agente, com a relação entre ele e seu ambiente ou, mais especificamente, com a maneira como o ator percebe e se relaciona com
seu meio.
Os termos da relação fundamental do discurso formam, dessa maneira, a
categoria fórica do texto, imprimindo qualidades positivas a um dos termos do eixo (euforia) e
negativa ao outro (disforia): é essa orientação sensível que coordena, ou gerencia, o modo de
existência do sujeito em ligação com seu objeto-valor. Ou seja, as paixões, que
complexificam e dão “vida” à construção da personagem narrativa, começam a ser entendidas
como efeitos de sentido de qualidades modais que modificam o sujeito de estado, garantindolhe
uma existência modal estritamente relacionada a seus “estados de alma”.
Para explicar a configuração passional da personagem, é preciso, portanto,
recorrer às relações actanciais, aos programas e percursos narrativos. Só assim se pode
determinar o sujeito que quer ser, o objeto de seu desejo, o sujeito em que outro crê, assim
como, o destinador do fazer do sujeito passional. Em outras palavras, só assim se pode
apreender as etapas do percurso do sujeito e, conseqüentemente, a dimensão dos sentimentos,
das emoções e das paixões, que ocupam um lugar de grande valor dentro dos discursos.
CASA, Vol.6 n.1, julho de 2008
http://www.fclar.unesp.br/seer/index.php?journal=casa
A configuração sintáxica da subjetividade da personagem-narrativa
Os estados passionais estão necessariamente ligados à ação e à transação,
definindo um percurso do sujeito marcado por variações tensivas. Assim, em termos
estruturais podemos pensar nas posições actanciais como lugares fixos, todavia compostos de
um feixe de modalidades variáveis. O actante, portanto, responde apenas por um simples
operador, responsável pelo fazer transformador que movimenta a narrativa, sendo a dimensão
contínua, disposta em torno da junção, a responsável pela particularidade da dimensão
patêmica do discurso, garantindo-lhe um novo universo de significações.
No entanto, quando pensamos na análise dos efeitos de sentido passionais, tal
como se manifestam na língua e nos discursos, não devemos nos ater exclusivamente à
modalização dos estados, que encerram condições ou restrições particulares a estes, alterando,
na instância narrativa, as relações do sujeito com os valores. É preciso atentar ao que aparece
como um excesso, uma proeminência da estrutura modal.
A semiótica trabalha essencialmente com quatro modalidades de base: o
querer, o dever, o poder e o saber. Tais valores modais determinam tanto o ser, quanto o fazer
do sujeito, sendo a modalização do ser, como temos visto até aqui, a grande preocupação na
abordagem das paixões. Contudo, falta na série das modalidades básicas uma das condições
da realização. Para que o sujeito se realize, a competência modal deve ser por ele fundada na
fidúcia, ou seja, é preciso também que ele creia querer, creia dever, creia saber e creia poder.
De modo mais geral, o crer é, então, a modalidade que corresponde para nós à primeira etapa
da construção da competência, a partir da qual emergem os valores a que o sujeito visa, em
cujo cerne sua ação se inscreve e a partir da qual todas as outras modalidades poderão se
desdobrar.
A competência e existência modal do sujeito, com efeito, podem ser
apreendidas na confluência de uma organização paradigmática e sintagmática, em que a
dimensão passional articularia, pois, uma estrutura modal e uma estrutura aspectual que a
sobredetermina. Nesse sentido, a investigação do processo configuracional das paixões da
personagem narrativa deve abordar esse aspecto a partir dessas duas perspectivas, porque as
relações paradigmáticas constituem “sistemas de paixões”, enquanto as relações sintagmáticas
modais caracterizam as paixões. Ou seja, do ponto de vista paradigmático, o sujeito é dotado
de uma carga modal de maior ou menor complexidade, constituída por modalidades
compatíveis, contrárias ou contraditórias que o definem a cada instante de seu percurso. E do
ponto de vista sintagmático, essa carga modal é apresentada, simultaneamente, como
hierarquizada e evolutiva, e uma modalidade dominante passa a definir o sujeito, pondo as
outras sob sua dependência.
Toda sintaxe narrativa e discursiva, portanto, baseia-se nos encadeamentos das
modalidades. Além disso, o passional, entendido como uma variação dos estados do sujeito,
permite depreender também uma outra ordem de relações que define a existência modal desse
sujeito: trata-se da categoria da tensividade, “intuitivamente percebida como uma propriedade
das figuras passionais”, como declara Bertrand (2003, p. 371).
A tensividade, vista em um nível mais superficial como aspectualização,
modula o conteúdo semântico do predicado, quer seja na temporalidade (incoativo, durativo,
iterativo, pontual e terminativo), na espacialidade (percepção dos limiares e da extensão), na
actorialidade (o comportamento aspectualizado), ou ainda na axiologia (a relação entre a
imperfeição do parecer e o surgimento da perfeição como critério de apreensão estética).
Assim, os traços aspectuais definem a maneira de ser que “sensibiliza” a modalidade e a rege,
atribuindo-lhe valores variáveis. Greimas e Fontanille (1993, p. 143) descrevem a
sensibilização como “a operação pela qual dada cultura interpreta uma parte dos dispositivos
CASA, Vol.6 n.1, julho de 2008
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modais, concebíveis dedutivamente, como efeitos de sentido passionais”, e explica ainda que
“verticalmente, de alguma forma, ela constrói as taxionomias culturais que filtram os
dispositivos modais para manifestá-los como paixões no discurso; horizontalmente, ela se
coloca na sintaxe discursiva da paixão, como processo total”.
Nesse sentido, a sensibilização é a primeira fase enunciativa da colocação em
discurso das paixões e pressupõe, no nível das pré-condições da significação, uma
“constituição” do sujeito que sente.
Uma outra fase enunciativa na constituição dos dispositivos passionais,
também de ordem cultural, é a moralização. Vejamos como a definem Greimas e Fontanille,
(1993, p. 140):
A moralização é a operação pela qual dada cultura relaciona um
dispositivo modal sensibilizado a uma norma, concebida principalmente
para regular a comunicação passional em certa comunidade. [...] Em
discurso, a moralização se reconhece diante do fato de que um observador
social encarrega-se de avaliar o efeito de sentido a que é suscetível, a fim de
carregar tais julgamentos, de atribuir-se um papel actancial na configuração.
A moralização, assim como a sensibilização, pode ser também considerada
como operação discursiva. Moralizando uma paixão, podemos avaliar não apenas certa
maneira de fazer ou de ser, mas também certa maneira de ser apaixonado. Desse modo, a
moralização afeta as modalizações que dizem respeito às propriedades informativas do
comportamento passional, pressupondo o término do percurso discursivo do sujeito, com as
conseqüências manifestadas e observáveis.
A “sensibilização” dos dispositivos modais e sua “moralização”, portanto,
representam duas configurações que enquadram os dispositivos passionais. Como afirmam
Greimas e Fontanille(1993, p. 157):
A sensibilização e a moralização não são, pois, apenas procedimentos
de descrição; são verdadeiras operações disponíveis para os actantes do
enunciado e da enunciação; também as taxionomias culturais, que elas
contribuem para edificar, constituem uma das questões das estratégias de
comunicação: são elas que têm o domínio das taxionomias passionais numa
interação que pode agir a montante sobre essa troca.
Pensando, então, nas estratégias intersubjetivas do discurso1, parece-nos ficar
claro que a trajetória existencial e a disposição modal que caracterizam o sujeito da paixão,
podem ser previstas dentro de um esquema coerente e formal. E é exatamente o que propõem
Greimas e Fontanille quando apresentam, em Semiótica das paixões, o esquema patêmico,
mais tarde cristalizado como esquema passional canônico.
O esquema, que por definição é reflexivo, encadeia cinco seqüências das quais
fazem parte a sensibilização e a moralização:
CONSTITUIÇÃO® DISPOSIÇÃO® SENSIBILIZAÇÃO® EMOÇÃO® MORALIZAÇÃO
(contrato) (competência) (ação) (sanção)
Esquema I: Seqüências da sensibilização e da moralização.
1. Ressalte-se nesse momento, que as condições de sensibilização e moralização, enquadrando os dispositivos
passionais, dizem respeito à enunciação passional (a qual dedicaremos maior atenção mais à frente), no entanto,
privilegiando não mais as estruturas modais, e sim a influência dos modos de percepção e de manipulação do
sentido, centradas no narrador.
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A constituição determina o ser do sujeito, o estilo passional, de forma que ele
esteja apto para acolher a sensibilização. É preciso lembrar que, quando falamos em “ser do
sujeito”, estamos pensando na delimitação do percurso modalizado, que preside a instauração
do sujeito da paixão. A disposição corresponde ao estado inicial e resulta da convocação dos
dispositivos modais dinamizados e selecionados pelo uso. Segundo Greimas e Fontanille
(1993, p. 155) “ela aciona uma aspectualização da cadeia modal e um ‘estilo semiótico’
característico do fazer patêmico”. A sensibilização, como vimos, é a transformação tímica por
excelência, a operação pela qual o sujeito discursivo transforma-se em sujeito que sofre, que
sente, que reage, que se emociona. A emoção corresponde à crise passional que prolonga e
atualiza a sensibilização, assinalando no discurso que a junção tímica está cumprida; é o
momento da patemização propriamente dita. A moralização intervém no fim e recai sobre o
conjunto da seqüência mas, como visto anteriormente, mais particularmente no
comportamento observável.
Em conclusão, o que nos fica claro é que a personagem vai adquirindo sua
espessura passional a partir das relações com seus objetos e/ou com os outros sujeitos do
discurso, sendo que as relações estabelecidas entre eles, marcadas por um dinamismo interno,
acabam por construir, na instância do discurso, um arranjo modal sobredeterminado no
percurso do sujeito. No entanto, a subjetividade sugerida pela personagem narrativa vai além
das estruturas sintáxicas do texto. Há um sujeito da enunciação que controla e manipula os
modos de acesso à significação das estruturas modais para o leitor, e é através dele que os
esquemas narrativos convertem-se em discurso.
A enunciação passional: configuração semântica da subjetividade da personagem
narrativa
Vínhamos, até aqui, centrando nossa atenção nas estruturas narrativas do texto,
em termos das relações modais e de suas combinações sintagmáticas. Todavia, nesse
momento, voltamos nossa investigação para a mediação entre essas estruturas e as estruturas
discursivas, quando os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação, que os
converte em discurso e nele deixa “marcas”.
Como bem lembra. Barros (2001, p. 72) “atribuiu-se especial importância às
estruturas discursivas por serem consideradas o lugar, por excelência, de desvelamento da
enunciação e de manifestação dos valores sobre os quais está assentado o texto”.
O narrador ocupa uma posição de destaque dentro do discurso narrativo,
agindo como uma espécie de centro organizador, responsável pelos procedimentos de
argumentação e persuasão. Assim, quando pensamos na dimensão passional de um texto,
mesmo nos preocupando com a construção da subjetividade das personagens desse discurso, é
preciso fundamentalmente refletir sobre a projeção da instância da enunciação no discursoenunciado,
sobretudo nas relações argumentativas entre enunciador e enunciatário, entre
narrador e narratário (explicitando os recursos de persuasão para manipular este último), e na
cobertura figurativa dos conteúdos narrativos abstratos. Isso porque a projeção dos simulacros
é a característica central da enunciação passional, particularizando não só as operações
estruturais, mas os próprios sujeitos dessas operações.
Além disso, no funcionamento discursivo, a dimensão passional do enunciado
enriquece-se ainda mais nessa comunicação que se estabelece entre os simulacros do
enunciador/narrador e os do enunciatário/narratário. Os simulacros do enunciador podem ser
percebidos na escolha do tom, do caráter e na forma de percepção específica, que a semiótica
chama de héxis corporal, já que o narrador não apenas declara as informações que compõem
um discurso, mas emite juízos sobre elas (explícita ou implicitamente).
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Como explica Bertrand (2003), o fazer interpretativo seleciona, valoriza a
presença das coisas em função de sua “disposição”, o que faz com que as dimensões
pragmáticas e patêmicas do discurso, identificadas como formalmente autônomas, fiquem
entrelaçadas, tornando-se o motor uma da outra. Lembrando ainda o próprio Greimas e
Fontanille (1993, p. 151), fonte de toda essa reflexão:
[...] o sujeito da enunciação faz variar a luz de uma paixão à outra, explora a
combinatória e a taxionomia, de maneira a fazer surgir os arranjos modais
reconhecidos em dada cultura e a poder acrescentar-lhes, em vista da
moralização, as axiologias próprias deste ou daquele parceiro do sujeito
apaixonado.
Em resumo, o que queremos dizer é que não é a imagem explicitada no
enunciado que responde pela impressão de “vida” dos seres fictícios no geral, mas aquilo que
se pode apreender através de tal enunciado. Ou seja, são as marcas da enunciação no discurso,
bem como a maneira pela qual este se constrói e se organiza que produzem os efeitos de
sentido suscitados no enunciatário (o leitor). É a partir daí que somos capazes, não só de
compreender, mas de sentir o interior das personagens de um enunciado, suas paixões, seus
“estados de alma”.
Nesse sentido, a análise das paixões do enunciador/narrador,
conseqüentemente das personagens que cria, nada tem a ver com o psicologismo que, muitas
vezes, infiltra-se nos estudos dessa natureza. Como explica Fiorin (2004, p. 120, grifo nosso),
“trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma subjetividade que seria a
fonte de onde emanaria o enunciado, um psiquismo responsável pelo discurso”.
Aliada às configurações passionais, a discursivização da paixão fundamentase,
portanto, essencialmente na projeção e na operacionalização dos simulacros. Desse modo,
a dimensão passional da enunciação manifesta-se por um modo de presença, na maioria das
vezes, indireto e encoberto2, no próprio interior dos esquemas da ação, sob a forma do
“vivenciar”.
A personagem narrativa, como temos visto ao longo do que foi exposto, vai
tomando forma e espessura semântica gradativamente, através das combinações e articulações
feitas no nível discursivo. O enunciador, enquanto centro gerenciador de todo o discurso, vai
dirigindo o olhar e o entendimento do leitor pela maneira como disponibiliza as informações.
Vejamos, então, para melhor compreender toda essa teoria, como é que se dá a configuração
da subjetividade das paixões, na personagem de Fernando Seixas, antagonista do romance
Senhora, de José de Alencar.
A análise: configuração das paixões
Privilegiaremos em nossa análise dois focos de investigação, um de ordem
sintáxica e o outro de ordem semântica, na tentativa de melhor ilustrar o que tentamos expor
acima. Antes disso, porém, paremos para pensar na organização diegética do romance em
questão: Aurélia, uma moça rica, decide comprar um marido, ou melhor, resolve comprar
Fernando Seixas como marido. Junto a seu tio Lemos, arquiteta todo um esquema para que
seus planos possam concretizar-se. Na noite de núpcias descobrimos, assim como o próprio
noivo, Fernando, que tudo não passava de um plano de vingança, resultado da decepção
2. Mesmo pensando nos discursos em que a emissão de valores e juízos é bastante explícita, quando nos
voltamos ao discurso da ação, podemos verificar que a manipulação, na maior parte das vezes, é feita de forma
implícita e disfarçada, sugerindo uma falsa autonomia às personagens.
CASA, Vol.6 n.1, julho de 2008
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causada, no passado, por este último à heroína de nossa história. Estabelecida a verdade dessa
união que os obrigava a uma convivência difícil e exasperada, as figuras centrais dessa
história, Aurélia e Fernando, passam a viver conflitos internos, que os dilacera entre a razão e
a paixão. No final Aurélia rende-se a seu amor por Fernando e todos terminam felizes para
sempre, como não poderia deixar de ser nos romances da época do Romantismo.
Mesmo tendo resumido drasticamente todo o universo diegético do romance
em questão, podemos apreender os principais núcleos operativos que sustentam e dão base à
narrativa. Em termos estruturais, a narrativa em questão pode ser assim resumida:
1. ESTADO 1 (situação Inicial): Aurélia, por desejo da mãe, procura um noivo e ela e
Fernando apaixonam-se. Ou seja, o sujeito operador, persuadido pelo destinatário
(manipulador), sai em busca do objeto modalizado pelo dever-fazer e passa a um estado de
conjunção com seu objeto-valor.
2. TRANSFORMAÇÃO 1 (acontecimento perturbador): Fernando rompe com Aurélia para
firmar compromisso com uma moça rica. Ou seja, o sujeito do fazer (S1) transforma o
estado conjuntivo do sujeito de estado (S2) em um estado de disjunção com o objeto valor.
3. INTENSIFICAÇÃO (agravamento): Aurélia descobre que foi trocada por dinheiro: S2
continua em disjunção com seu objeto-valor.
4. TRANSFORMAÇÃO 2 (luta): Aurélia recebe uma herança e, rica, compra Fernando
como marido para vingar seu amor escarnecido. O sujeito operador recebe a competência
necessária para realizar a performance que o levará a ficar conjunto de seu objeto-valor.
5. ESTADO 2 (situação final): Aurélia e Fernando, após muitos desentendimentos, rendem-se
ao amor que sentem um pelo outro. A sanção concretiza-se e o sujeito passa a um estado
conjuntivo com seu objeto-valor.
Vejamos agora esse mesmo resumo estrutural pensado a partir do esquema
passional canônico, proposto por Greimas e Fontanille. Lembremos que a primeira etapa, a da
constituição, refere-se à fundamentação do ser do sujeito do estado; a segunda, a da
disposição, ao estado inicial e à convocação dos dispositivos modais; a terceira, a da
sensibilização, assinala a categoria tímica na qual o sujeito discursivo torna-se sujeito que
sofre3; a quarta etapa, a da emoção, corresponde ao momento da tensão, da patemização
propriamente dita, que atualiza e prolonga a etapa anterior; e por último a etapa da
moralização, responsável pelo julgamento axiológico da emoção. Assim, temos:
1. ESTADO 1 (constituição): Aurélia é uma moça simples, honesta, carinhosa,
abnegada e apaixonada. Enquanto Fernando é um moço pobre, mas ambicioso,
refinado e prático (a praticidade, aqui, pensada em termos de racionalidade, ser
racional).
2. ESTADO 2 (disposição): Aurélia e Fernando apaixonam-se. Desse modo, levando em
conta o revestimento discursivo, Aurélia enquanto sujeito está em uma relação conjunta
com seu objeto-valor, o amor idealizado; enquanto Fernando está disjunto de seu objetovalor,
porque embora apaixonado também, a moça em questão é pobre, não
correspondendo positivamente à sua busca.
3. INTENSIFICAÇÃO (sensibilização): Partindo do estado descrito acima, fica fácil
percebermos o embate entre a categoria tímica básica do discurso: PASSIONAL X
RACIONAL – figurativizada na oposição AMOR X DINHEIRO.
3 Para a semiótica o termo sofrer está despido de qualquer investimento semântico depreciativo, significando
apenas “aquele que é afetado por determinada situação, ação ou realidade”.
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4. ESTADO 3 (emoção): Aurélia, enlouquecida de paixão, decide comprar seu casamento
com Fernando, para vingar-se. Fernando, apaixonado e humilhado, decide resignar-se a seu
martírio, em nome de sua honra.
5. ESTADO 4 (moralização): Aurélia confessa seu amor a Fernando, que declara à “esposa”
que o dinheiro dela os separaria para sempre, provando a ela, portanto, a integridade de seu
caráter.
Nesse segundo esquema, percebemos o crescente desenvolvimento da
subjetividade das personagens, que tem sua fonte na própria constituição do ser, ou seja, a
unicidade da personagem está calcada nos valores do ser que ela assume e que determinam
suas ações. Para compreender melhor como isso acontece, passemos à análise individual da
personagem escolhida, Fernando Seixas:
É um moço que ainda não chegou aos trinta anos. Tem uma
fisionomia tão nobre, quanto sedutora; belos traços, tez finíssima, cuja
alvura realça a macia barba castanha. Os olhos rasgados e luminosos, às
vezes coalham-se em um enlevo de ternura, mas natural e extreme de
afetação, que há de torná-los irresistíveis quando o amor os acender.
(ALENCAR, 1974, p. 28)
• Análise sintáxica
Como visto, as paixões que afetam uma dada personagem, ou seja, seus
conflitos interiores, sua subjetividade e expressividade, aparecem no discurso como efeitos de
sentido provenientes da configuração e combinação das estruturas modais que "movimentam"
os valores-base da narrativa. Todo o conflito (que envolve tensão e foria), o fazer
interpretativo (subjacente ao jogo entre ser x parecer) e a "verdade" (impressão de vida real,
vida própria) que configuram a subjetividade do ser fictício estão calcados nesses valores
fundamentais, que não só regem, mas dão sentido a todos os elementos da estrutura narrativa.
Para a análise do processo de construção da subjetividade de Fernando Seixas,
privilegiaremos dois momentos do enredo: um, referente ao momento em que Fernando se vê
dividido entre seu amor por Aurélia e a conveniência de um compromisso com Adelaide
Amaral; o outro, referente ao momento em que Fernando toma consciência da verdadeira
razão que o uniu a Aurélia novamente. A nosso ver, são exatamente nesses dois enunciados de
estado do percurso narrativo de Seixas, que podemos identificar os estados mais conflitantes
das organizações modais que o configuram, enriquecendo e complexificando aquilo que
chamamos de "estados de alma" da personagem. Além disso, parece ser nesses dois
momentos que contendem com maior tensão os valores que estão na base do relato de
Senhora: /passional/ x /racional/, /amor/ x /dinheiro/.
É importante ressaltar que, para a análise das paixões, o que verdadeiramente
nos interessa não é a transformação em si, a passagem de um estado a outro, e sim o próprio
estado. Em outras palavras, o que de fato importa é a relação juntiva entre o sujeito do fazer e
seu objeto-valor. Vejamos:
ENUNCIADO 1 (PN1 ® PN2 ): Embora goste realmente de Aurélia, Fernando,
ciente da vida que levaria ao lado dela e seduzido pelas vantagens do casamento com uma
moça rica4, desfaz seu compromisso com Aurélia para assumir o noivado com Adelaide
Amaral. Nesse sentido, Fernando vê-se disjunto da mulher que realmente ama, mas conjunto
de seu objeto valor, a riqueza, o dinheiro.
4. O destaque dado visa acentuar o que de fato interessa para análise, ou seja, o estado da personagem estudada.
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ENUNCIADO 2 (PN2 ® PN3): Apesar de ter-se submetido a uma nova
proposta de casamento de conveniência, Fernando casa-se com Aurélia, apaixonado, disposto
a lhe oferecer um amor sincero e verdadeiro. Mas consciente da verdadeira razão que os uniu,
o ressentimento da moça, vê-se conjunto a mulher que ama e a vida que sempre almejara, no
entanto, disjunto da possibilidade de viver essa vida e esse amor.
Feita a descrição dos enunciados, somos capazes agora de identificar os dados
que compõem o eixo paradigmático e o sintagmático, responsáveis pelo processo de
construção da subjetividade da personagem narrativa, lembrando que o primeiro diz respeito à
modalização do ser, que atribui ao sujeito o modo de existência, e o segundo, à ligação do
sujeito com seu objeto-valor, que modaliza o percurso narrativo da personagem e caracteriza
seus estados passionais.
Nesse sentido, dos enunciados citados acima podemos reconhecer o modo de
existência da personagem Fernando Seixas, estabelecido a partir dos valores que ele assume e
que, como vimos, determinam suas ações. Seixas é vaidoso, esperto, ambicioso, resoluto,
brioso e, acima de tudo isso, “racional”. Observemos que tanto no enunciado 1, quanto no
enunciado 2, bem como em todo o percurso da personagem, no romance Senhora, a
"racionalidade" configurada age como uma modalidade dominante, pondo todas as outras sob
sua gerência e dependência.
Definidos, portanto, os dados do eixo paradigmático, aquele que indica as
características do estilo passional do sujeito, seu "caráter", reflitamos um pouco acerca do
significado do vocábulo razão5, para estarmos aptos a compreender tudo que se representa ao
redor dos estados do sujeito, já que é a racionalidade o aspecto dominante na constituição do
"ser" de Fernando:
RAZÃO: [Do lat. ratione.] s.f. 1. Faculdade que tem o ser humano de
avaliar, julgar, ponderar idéias universais; raciocínio, juízo. 2. Faculdade
que tem o homem de estabelecer relações lógicas, de conhecer, de
compreender, de raciocinar; raciocínio, inteligência. 3. Bom senso; juízo;
prudência [...].
Voltando, mais uma vez, aos dois enunciados escolhidos para essa análise,
constataremos que em nenhuma das ocasiões, Fernando deixou-se "comover" pelo
sentimento, ao contrário, o que temos é um sujeito de estado que não se deixa levar pelo
emocional ao tomar suas posições. No entanto, vale lembrar que em nenhum momento da
narrativa, seja no rompimento com Aurélia, seja em sua nova união com ela, o discurso deixa
de passar ao leitor efeitos de sentido passionais. Se em um primeiro momento o leitor tende a
julgá-lo e condená-lo, em outro, sofre e torce por ele6. Mas sintaxicamente falando, o que nos
interessa nesse momento, é a verificação de que a racionalidade de Seixas não permite o
desenvolvimento de um excesso em sua estrutura modal. As "emoções" causadas pelo seu
"caráter" vaidoso, esperto e ambicioso acabam sendo neutralizadas pela característica
dominante, a da racionalidade. Além disso, não podemos esquecer que, no nível das estruturas
semionarrativas, o espaço modal articula o espaço fórico, colocando os valores fundamentais
em movimento e em jogo.
5. A característica dominante no "caráter" de Fernando Seixas é, sem dúvida, a racionalidade, que remete à
definição da razão. Optamos pelo estudo pormenorizado desse termo, pela maior riqueza e clareza de definições
que o dicionário propõe e que respondem mais claramente às necessidades de nosso estudo.
6. Essa questão, bem como sua explicação, será melhor desenvolvida na etapa seguinte, a da análise semântica,
por dizer respeito ao próprio modo de enunciação.
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A personagem configura-se, portanto, em uma esfera de circulação de ordem
tensiva, em que as modulações geradas pela intensidade do discurso, que ora recai para um
lado do eixo, ora para outro, estabelecem a relação básica entre sujeito e ambiente, garantindo
a "emoção" da personagem e do leitor. Atentemo-nos à afirmação de Greimas e Fontanille
(1993, p. 36-7):
De outro ponto de vista, na ausência de manifestação direta ou indireta
das modalizações, a observação das escolhas aspectuais dominantes permite
postular a existência desta ou daquela modulação dominante no nível
profundo, que teria sido convocada prioritariamente para a discursivização;
suposta essa modulação como predominante, pode-se então suspeitar e
prever que a organização modal, se houver uma em imanência, deveria estar
afetada ou orientada. Assim, a hesitação, que remeteria a uma modulação ao
mesmo tempo de abertura e suspensiva, permitiria prever um avatar
complexo do querer (querer e não-querer) e incitaria a buscar eventuais
traços específicos na manifestação discursiva. Igualmente, a agitação, como
forma aspectual superficial, trai um modo particular de modulação
suspensiva: o que proporciona a pura oscilação das tensões, o equilíbrio
insolúvel entre fusão e cisão: tal equilíbrio instável pode ser interpretado
como a coexistência de duas modulações cujos efeitos se anulam: por
exemplo, uma modulação de abertura e uma modulação de encerramento,
ou ainda, uma modulação cursiva e uma modulação pontualizante; só então
é que seríamos convidados a realizar a hipótese, no nível narrativo, de
confrontação modal, seja entre querer e saber, seja entre poder e dever;
tanto num caso como no outro, cercar-se-iam assim os contornos da
inquietude e da angústia.
Como bem explica o teórico francês, há casos (como o da nossa análise) em
que, mais do que as modalizações em si, são as escolhas aspectuais e a tensividade fórica que
fundam a dimensão passional da personagem. A confrontação modal dificulta a identificação
do modo de organização, convocando a manifestação discursiva muito mais do que nos casos
de uma manifestação direta das modalizações. Nesses casos, o que realmente importa para a
investigação do processo de construção da subjetividade são as modulações do percurso.
Reflitamos sobre o trecho que segue:
De um homem assim organizado com a molécula do luxo e do
galanteio, não se podia esperar o sacrifício enorme de renunciar à vida
elegante. Excedia isso a suas forças; era uma aberração de sua natureza.
Mais fácil fora renunciar à vida na flor da mocidade, quando tudo lhe sorria,
do que sujeitar-se a esse suicídio moral, a esse aniquilamento do eu.
Quando Seixas convenceu-se que não podia casar com Aurélia, revoltou-se
contra si próprio. Não se perdoava a imprudência de apaixonar-se por uma
moça pobre e quase órfã, imprudência a que pusera remate o pedido de
casamento. O rompimento deste enlace irrefletido era para ele uma coisa
irremediável, fatal; mas o seu procedimento o indignava. (ALENCAR,
1974, p. 88).
Observemos que a teoria proposta por Greimas e Fontanille, citada acima,
descreve com exatidão a configuração das paixões que caracterizam a personagem. O
confronto entre querer e não-querer, entre querer e dever, não-poder e dever, caracterizado
pela tensividade fórica dos valores /passional/ x /racional/ e /amor/ x /dinheiro/, garante os
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efeitos passionais da angústia e da inquietação. Além disso, as definições dicionarizadas
desses lexemas afetivos permitem comprovar a afirmação7.
ANGÚSTIA: s.f. [...] 2. estado de ansiedade, inquietude; sofrimento,
tormento 2.1 PSIC estado de excitação emocional determinado pela
percepção de sinais, por antecipações mais ou menos concretas e realistas,
ou por representações gerais de perigo físico ou de ameaça psíquica 2.2
PSIC medo sem objeto determinado 2.3 PSICN reação do organismo a uma
excitação impossível de ser assimilada, desencadeada pelo bloqueio da
consecução da finalidade de uma pulsão ou pela ameaça de perda de um
objeto investido por uma pulsão [...]
INQUIETAÇÃO: s.f. 1. estado de inquieto, do que se acha em
agitação 2. estado de preocupação; desassossego que impede o repouso, a
paz, a tranqüilidade; nervosismo 3. ato de preocupar-se com o que está além
dos seus conhecimentos [...]
Estender a análise ao léxico passional permite-nos compreender com clareza o
que se "acumula" em torno da relação juntiva, ou seja, permite-nos identificar e descrever o
estado do sujeito operador, conseqüentemente os "estados de alma" da personagem, além de
evidenciar a perplexidade da configuração modal de seu percurso. Assim, o que chega ao
leitor como sentimento e vida, é o resultado de uma estrutura modal, mais do que isso, o
resultado de uma configuração sintáxica (significante) que ganha sentido no produto
semântico (significado).
Voltando nossa atenção para o ENUNCIADO 2, referente à nova união entre
Fernando e Aurélia, veremos que acontece o mesmo. Assim como no enunciado anterior,
trata-se da formação de uma configuração modal conflituosa e contrastiva, de que resultam os
mesmos "sentimentos" acima descritos: angústia, agitação e inquietude, que colocam o sujeito
operador em um estado de crise, em um estado suscetível e abalável, mas em cujo embate
domina a razão.
Vimos, no entanto, que mais do que as modalizações do percurso, o que
caracteriza as paixões da personagem são as modulações da estrutura modal. Assim, em uma
posição ondulante entre os valores que movimentam a narrativa, principalmente nesse
segundo enunciado, a personagem se vê em constante conflito entre o querer e o dever,
fazendo variar o valor investido no objeto, que passa de desejável, a temível e impossível,
dando conseqüentemente margem a outras figuras passionais, como o desejo, o ciúme e a
paixão8.
O sujeito, conforme seja o objeto modalizado em "desejável", "atraente" ou
"impossível", aparece de fato como uma seqüência de identidades modais diferentes. E esses
diferentes modos de existência do actante narrativo surgem no interior das configurações
passionais, enriquecendo e complexificando a "alma" do ser fictício.
É importante observar que, em nenhum momento, ao falar sobre Fernando e
seu comportamento, o narrador menciona explicitamente as características que lhe são
atribuídas: a personagem vai adquirindo sua densidade semântica e passional apenas nas
relações com seus objetos e/ou com os outros sujeitos que compõem a narrativa, o que faz
recordar a metáfora usada por Greimas e Fontanille (1993), ao dizer que as paixões como um
"perfume" exalado por todos os poros do discurso.
7. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
8. No sentido mesmo de um sentimento arrebatador, tal como consagrado pela cultura, e não no sentido estrutural
adotado pela semiótica.
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O "ser" da personagem narrativa, portanto, é um efeito de discurso, e seja por
pressuposição, catálise, ou por configurações culturais, a "vida" da personagem, sua
existência (modal, passional) e sua própria competência para agir constroem-se, sempre, a
partir da configuração e manifestação desse discurso.
O que vimos até aqui explica a impressão de vida que a personagem transmite
ao leitor. Contudo, a dimensão passional que a envolve não se limita a seu estado interior, vai
além, pois seduz o leitor, fazendo com que este não só se identifique com certos sentimentos,
mas seja capaz, ele mesmo, de sentir e experimentar os efeitos passionais. Essa sensibilização
passional que afeta o leitor provém do próprio discurso, das estratégias discursivas e textuais
diretamente relacionadas ao sujeito da enunciação, que acaba por criar um "percurso
modalizado", em que se envolve o enunciatário.
Passemos, portanto, a uma segunda análise, agora de ordem semântica, para
identificar e compreender os modos de presença do enunciador, bem como as formas de
manipulação que ele engendra no interior do discurso, verificando por fim o efeito de sua
narração no processo de construção da subjetividade da personagem analisada.
• Análise semântica
Para estudar o enunciado narrativo, podemos compará-lo a uma engrenagem,
em que o enunciador é o responsável por toda estrutura construída, enquanto o enunciatário
fica responsável pela força que coloca essa estrutura em movimento. Ou seja, mesmo sendo o
primeiro o responsável por toda a estrutura narrativa, com seus cálculos de sentido e seus
efeitos, é necessariamente o segundo que identifica e conecta os sentidos desse discurso.
Atentemos, porém, que embora seja a "força" a responsável pela movimentação da
"engrenagem", não é ela que define o movimento e sim a estrutura pré-determinada. Falamos
aqui do modo de persuasão do enunciador, de sua manipulação sobre o "entendimento" do
enunciatário, que às vezes de tão inerente à própria estrutura narrativa, passa desapercebida,
sendo ela, no entanto, a responsável pela disposição e direcionamento da apreensão do
sentido, por parte do leitor.
Continuemos a pensar nessa engrenagem, para melhor compreender o processo
construtivo da subjetividade da personagem Fernando Seixas. Quando pensamos na análise
feita há pouco, a de ordem sintáxica, constatamos que as rodas da engrenagem já foram
construídas, faltando porém os "dentes", que ligam umas às outras, para que elas possam
movimentar-se, ou seja, produzir sentido. E é exatamente na constituição desses "dentes" que
nos deteremos a partir de agora.
Reflitamos acerca dos seguintes dados: o jogo entre passional e racional,
como dito anteriormente, está na base da construção da narrativa, quando o enunciador parece
euforizar o primeiro elemento, disforizando o segundo. Vimos também que as ações de
Fernando, em todo seu percurso narrativo, são dirigidas pela razão e não pela emoção, o que o
coloca no pólo negativo da oposição, ou seja, no pólo disforizado. No entanto, embora o
julgue, o leitor não chega a condená-lo, ao contrário, afetado pelo discurso, compreende-o e
acaba sofrendo e torcendo por ele.
Esse fato, um tanto quanto paradoxal, não passa de um recurso de persuasão
do discurso passional, em que o enunciador quer e espera que o enunciatário torça pela união
dos apaixonados, que sofra e se angustie como as personagens, buscando incessantemente
pelo final feliz, pelo fim do sofrimento, o que certamente não ocorreria, caso o leitor
condenasse o comportamento de Fernando. Desse modo, de uma forma ou de outra, o
narrador sempre justifica as atitudes disfóricas da personagem, seja colocando-o como o
produto de uma sociedade corrompida, portanto, na posição de vítima, seja "sugerindo" a
inocência do pensamento da personagem. Ao mesmo tempo em que o coloca como vilão,
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justifica suas ações, e a personagem passa então à posição de vítima. Contudo, o
conhecimento da verdadeira "essência" de Seixas fica limitado aos espectadores dessa
história, já que, para Aurélia, Fernando é visto sim como um homem ambicioso, interesseiro e
sem sentimentos. Esse mal-entendido garante ao enunciador a adesão afetiva de seu
enunciatário em relação a Seixas, que espera, aflito, pela dissolução do mal-entendido.
Outro ponto significativo a ser explorado, nesse sentido, diz respeito à sutil
ironia usada pelo narrador na maioria dos trechos selecionados acima: observe que o discurso
irônico, como explica Bertrand (2004, p. 70), “baseia-se na tensão entre uma significação
manifesta, cujo modo de presença é realizado, mas cujo grau de assunção é fraco, e uma
significação induzida, cujo modo de presença virtual impõe inversamente uma assunção
enunciativa forte”. Ou seja, o tom irônico adotado pelo enunciador ao se referir a aspectos do
caráter de Fernando, acrescenta ao entendimento do leitor uma orientação apreciativa do
discurso que vai muito além do sentido conscientemente apreendido. Dessa forma, o sentido
irônico estabelece um distanciamento entre o enunciador e a personagem, garantindo maior
autonomia e verossimilhança às características apreendidas, que passam a “funcionar” como
“perfume” (para lembrar Greimas e Fontanille) da própria personagem e não do discurso
construído.
É importante ressaltar, ainda, que as considerações e ressalvas feitas pelo
narrador vêm entremeadas à narração dos fatos, como se fossem apenas maiores detalhes
desses últimos, e dessa maneira, o enunciatário apreende tais sentidos sem perceber. Nesse
sentido, quando se dá conta, o leitor já tem uma imagem patêmica da personagem, sem
conseguir explicar direito como nasceram tais sentimentos, mais ou menos como acontece na
vida real, quando gostamos ou desgostamos das pessoas muitas vezes sem saber o porquê,
donde vem a ilusão de “vida real” dos seres fictícios.
Outro fator também importante e que deve ser levado em consideração, quando
pensamos na enunciação passional, tem a ver com o uso estratégico do tom da narração, que
mencionamos acima. Por exemplo, ao referir-se aos reais motivos das atitudes de Fernando, o
narrador parece assumir um tom de "justiça seja feita":
Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e depois de trabalhá-lo
o dia inteiro, levou-o na manhã seguinte à casa do Lemos, onde efetuou-se a
transação, que ele próprio havia qualificado, não pensando que tão cedo
havia de tornar-se réu dessa indignidade.
A uma justiça, porém, tem ele direito. Se previsse os transes por que ia
passar durante a realização do mercado, e especialmente no ato de assinar o
recibo, talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão em concessão, a
dignidade abatida já não podia reagir. (ALENCAR, 1974, p. 51).
Seixas não a contrariava. Conservando-se em casa ao alcance da voz e
ao aceno da mulher, poupava-lhe o desgosto de o ver.
Entrava isso na resolução que havia tomado, mas não era sem grande
esforço e luta acérrima, que obtinha de si permanecer ao lado dessa mulher
para a qual se havia tornado, ele o sentia, verdadeiro flagelo.
Uma razão poderosa o retinha, devemos supor, e tão forte que subjugava a
todo o instante a revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia de
desdém da qual era alvo. (ALENCAR, 1974, p. 154).
Haverá quem acuse Seixas, de ter, no momento em que a mulher lhe
fazia confissão de seu amor e lhe oferecia um perdão espontâneo, proferido
aquela palavra que envolvia um insulto cruel.
Ele próprio, que pouco antes não achava uma expressão bastante eloqüente
para sua revolta, ali estava agora arrependido, com os olhos compassivos,
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fitos na mulher, que abria uma janela, e encostava-se à sacada para banharse
na brisa e na treva da noite.
[...]
Até o momento da revelação afrontosa, seu procedimento podia ser
repreensível ante uma moral severa, mas não ia além de um casamento de
conveniência, coisa banal e freqüente, que tinha não somente a tolerância,
como a consagração da sociedade.
Desde porém que esse casamento de conveniência fora convertido em
um mercado positivo, ele julgava uma infâmia para si, envolver sua alma e
afundá-la nessa transação torpe.
[...]
Foi nessa disposição de espírito que penetrou-o, como lâmina de um
estilete, a frase comprei-o bem caro, que o lábio de Aurélia vibrava com
viva entonação. Não ouviu mais nada; fez-se em sua consciência um imenso
deserto que enchia a só idéia do mercado aviltante.
O pensamento que o dominara antes da valsa, e que um enlevo
passageiro havia sopitado, ressurgiu.
Ele refugiou-se no sarcasmo, que desde o casamento era um derivativo
às sublevações de sua cólera. Sem intenção de injúria, somente como acerba
ironia, soltou a palavra de que se arrependera. (ALENCAR, 1974, p. 186-8).
Com esse tom, colocado de forma sutil no discurso, o narrador impede a
condenação da personagem por parte do narratário, é como se dissesse: "antes de o julgarmos,
conheçamos os motivos que o levaram a agir desse modo, para que não sejamos precipitados
ou injustos", garantindo assim a adesão afetiva do leitor.
Aproveitando ainda os trechos selecionados, podemos também nos reportar ao
uso da figuratividade que dá concretude às sensações. Notemos que expressões como
“dignidade abatida”, “luta acérrima”, “revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia
de desdém da qual era alvo”, “olhos compassivos”, “banhar-se na brisa e na treva da
noite”, “disposição de espírito que penetrou-o como lâmina de um estilete”, “fez-se em sua
consciência um imenso deserto” permitem ao leitor, a partir de uma ordem sensorial, não
apenas saber mas apreender com maior sensibilidade as sensações da personagem,
compreendendo conseqüentemente o seu íntimo, seus estados de alma. A essa percepção,
através dos sentidos, a semiótica chama “estesia”. Se voltarmos aos exemplos citados acima,
perceberemos que as “figuras das sensações”, usadas pelo enunciador, fazem com que os
sentidos se aliem na apreensão do sentir, permitindo que o leitor, convocado pela enunciação,
penetre no íntimo da personagem, partilhando seus “estados de alma”. Assim, como explica
Ana Claudia de Oliveira (1995, p. 234), “o enunciatário, desse modo, participa do desenrolar
das ações, reage às tensões, julga-as e, apaixonadamente, responde aos efeitos discursivos
mesmo que seu fazer nada possa transformar”.
Quanto ao modo de narrar, o trabalho com as focalizações também pode ser
encarado como uma estratégia discursiva na composição da sensibilidade da personagem.
Saindo do externo para explorar e expor o interior da personagem, o seu modo de ver as
situações, o narrador ilusoriamente dá vida própria a Fernando, que não é mais somente
aquele que age, mas aquele que sente e "percebe" o mundo em que vive. Nesse sentido, os
elementos emocionais e afetivos do discurso não são expressos no conteúdo em si, mas sim
nas formas da enunciação e, nesse caso, no uso do discurso indireto. O narrador, ao utilizar o
discurso indireto, caracteriza a configuração subjetiva da personagem enquanto expressão,
razão pela qual esse tipo de discurso tem uma tendência analítica. Além disso, é na alternância
das “vozes” que se constrói a produtividade semântica do texto. Mesmo não abdicando do seu
estatuto de sujeito da enunciação, o enunciador, no que diz respeito à produção dos efeitos de
sentido, acaba por jogar sobre a personagem a responsabilidade daquilo que é dito e/ou
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pensado, já que a “voz da personagem” acaba por penetrar a estrutura formal do discurso do
narrador, imprimindo ao relato um tom de objetividade. Ou seja, com o uso desse tipo de
discurso, o narrador, de forma mais ou menos difusa, continua a manipular, selecionar,
resumir e interpretar a fala e/ou os pensamentos das personagens. Contudo, aliado a um tipo
de focalização (onisciente ou interna), que dá autonomia à personagem, faz isso de forma
implícita, levando seu enunciatário a crer na “objetividade” e “transparência” de sua narração.
Pensando ainda no modo de presença do narrador, chamamos a atenção para
uma estratégia bastante discreta, mas poderosa e eficaz. Trata-se da emissão de juízos que o
narrador faz sobre o que narra, revelada no uso de certos adjetivos, substantivos, verbos, que
funcionam como uma cobertura figurativa passional. Esses elementos são distribuídos no
discurso com se fossem parte inerente à própria história que é contada, sendo, no entanto, de
responsabilidade do “eu” que narra. E essa sua percepção, colocada no discurso, acaba por
definir a imagem patêmica da personagem criada pelo leitor. Além disso tudo, acrescentando
à personagem suas próprias impressões e interpretações, o narrador acaba por enriquecer o
universo de significação dos seres fictícios. Lendo atentamente os trechos abaixo, percebemos
como isso acontece:
Seixas, emérito conhecedor da Rua do Ouvidor, começou a
especificar alguns dos contrastes de que se recordava; abstemo-nos porém
de reproduzir suas observações, que ressentiam-se de singular
mordacidade.
Esse tom cáustico não era natural ao mancebo, cuja índole benévola e
afável, nunca passava de uns toques de fria ironia. Ele próprio já notara em
si essa alteração de seu caráter, e achava um sainete especial em saturar-se
do fel que tinha no coração. (ALENCAR, 1974, p. 120 - grifos nossos)
Seixas, como homem de sociedade que era, conhecia a natureza de
tradição apenas, ou quando muito de vista. As árvores, as flores, as
perspectivas, eram para ele ornatos, que se confundiam com tapetes,
cortinas, trastes dourados e toda a casta de adereços inventados pelo luxo.
À força de viverem em um mundo de convenção, esses homens de
sociedade tornaram-se artificiais. A natureza para eles não é a verdadeira,
mas essa fictícia, que o hábito lhes embutiu, e que alguns trazem do berço,
pois aí os espera a moda para fazer neles presa, transformando-lhes a mãe,
em uma simples produtora de filhos.
Freqüentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e
brisas, de que tirava imagens para exprimir a graça da mulher e as emoções
do amor. Pura imitação: como em geral os poetas da civilização, ele não
recebia da realidade essas impressões, e sim de uma variada leitura.
Originais somente são aqueles engenhos que se infundem na natureza,
musa inexaurível porque é divina. Para isso é preciso, ou nascer nas idades
primitivas, ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.
Naquele momento, porém, assistindo ao romper do dia, ali no meio do
jardim, Seixas sentia que [...] (ALENCAR, 1974, p. 110-11 - grifos nossos).
Os trechos mostram o modo de ver do narrador, que embute no discurso suas
próprias impressões e julgamentos acerca da personagem que descreve. Observemos que no
segundo exemplo essa intrusão é bastante explícita, o narrador pausa seu relato para incluir
todo um pensamento. Ele vai muito além do relato, exprimindo seu modo de ver e pensar o
caráter de homens como Seixas, emitindo mesmo uma crítica pesada à sociedade que, para
ele, ao que parece, corrompe toda a sensibilidade humana. Não há dúvida de que, nesse
trecho, o enunciador descarrega sua indignação com tal fluência, acentuando a oposição que
vê entre o “homem natural” e a sociedade (posição bastante peculiar ao Romantismo).
CASA, Vol.6 n.1, julho de 2008
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Afetado pela situação que ele próprio constrói, esse narrador ultrapassa os limites de sua
narração, inserindo no discurso um aspecto avaliatório.
Além disso, nessa dialética de vínculo e oposição ao meio, a consciência que
projeta as personagens toma a forma da ironia, caracterizando um modo ambíguo de propor e,
ao mesmo tempo, transcender o ponto de vista “da personagem”. Longe de serem inoperantes,
portanto, essas características e julgamentos acrescentados pelo narrador, influem o modo de
ver do enunciatário, servindo como dispositivos passionais, que multiplicam e propagam os
arranjos dos simulacros, além de mostrar um narrador afetado e também apaixonado. Em
resumo, o que temos tentado mostrar é que, além da modalização narrativa, há no discurso
uma “sensibilização passional”, construída e dirigida pelo próprio enunciador. Assim, as paixões que emanam das estruturas discursivas, projetam-se sobre os sujeitos, sobre os objetos e até mesmo sobre suas funções, dando "vida e sensibilidade” a todo o discurso.
É importante ressaltar, porém, que a sensibilização passional do discurso e a
modalização narrativa não podem ser separadas9, porque são co-ocorrentes e é impossível compreender uma sem a outra. Além disso, como chamam a atenção Greimas e Fontanille (1993), o conceito de articulação é a primeira condição para falar do sentido enquanto significação.
Quanto à análise do processo construtivo da subjetividade de Fernando Seixas,
podemos concluir finalmente que as modulações passionais que lhe garantem a
expressividade ultrapassam as simples combinações de conteúdos modais, organizados
estruturalmente. Essas modulações, manifestadas por efeitos de sentido, parecem provir de arranjos estruturais de outro tipo, explicados somente pela organização do próprio discurso,como pudemos constatar na análise apresentada.

A Construção Discursiva das Personagens Femininas em As Velhas

Resumo

Este estudo apresenta uma análise sobre a questão identitária e cultural da mulher da nação grapiúna, a partir da obra As Velhas, de Adonias Filho. Tal romance está centralizado em quatro personagens femininas: Tari Januária, Zefa Cinco, Zonga e Lina de Todos. Com base em MOREIRA2003; SACRAMENTO, 2004; SANTIAGO, 2000 e HALL, 1999, foram observados os aspectos da construção discursiva destas personagens, procurando delinear o perfil de cada uma delas. Desse modo, o estudo se propõe a contribuir para a discussão sobre a representação do papel da mulher na implantação da lavoura cacaueira no Sul da Bahia.



Considerações iniciais

O século XVII caracterizou-se como o século da história das mulheres, apesar de, nessa caracterização, o espaço da mulher continuar limitado. Aos homens cabia, o espaço público e tudo que era dessa esfera, ao passo que às mulheres era destinada a esfera do privado ou do restrito. Desse modo, competia-lhes tudo o que dizia respeito ao doméstico, à casa, ao lar; sendo por isso chamadas de anjos do lar. Observa-se a predominância do discurso machista, uma vez que a mulher ocupa uma posição subalterna em relação ao homem. Mesmo no início do século XX, data provável em que já se esboçava um discurso feminista, redefinindo a questão do gênero, a condição feminina continuava sendo, predominantemente, a de rainha do lar.

O objetivo desse trabalho é analisar aspectos da construção discursiva das personagens Tari Januária, Zefa Cinco, Zonga e Lina de Todos, no romance As Velhas, de Adonias Filho. Tal estudo se propõe a contribuir para a discussão sobre a representação do papel da mulher na implantação da lavoura cacaueira no Sul da Bahia.

Formação discursiva e suas implicações com o literário

O narrador de As Velhas apresenta Tari Januária, em sua infância e juventude, submetida a uma dominação machista, típica da cultura daquela época, a fase de desbravamento das matas, para o plantio do cacau: “Sozinha, morto o pai e sem a minha gente, me agarrei a Pedro Cobra. Fui uma cachorra a segui-lo, andando ou correndo, sempre atrás dele no caminho de volta”, “[...] ele na frente e eu atrás como um rabo” (ADONIAS FILHO, 1979, p.13 e 20, grifos nosso)

Nessa cultura, a mulher sai do domínio do pai, para se submeter ao domínio de outro homem - o marido-,

[...] O destino da mulher era o casamento e a maternidade; atribuições, ou melhor, funções que em nada mudavam a condição feminina, uma vez que a mulher continuava tutelada pelo marido e mantida como uma “menor”, “uma marginalizada” diante do poder constituído. (MOREIRA,2003, p.52)

Entretanto, ao longo do tempo, sua relação com o marido vai se tornando mais igualitária e menos violenta:

Me lembro da labuta dele, Pedro Cobra, para ensinar as coisas dos brancos. Noite com a fogueira queimando lá fora e aqui dentro o fogo[...] me ensinou a comer sal, usar vestido, falar como ele, atirar de rifle e não mais me pintar com o vermelho do urucum e o preto de jenipapo”. (ADONIAS FILHO, 1970, p.20, grifos nosso)

Nessa fase intermediária, apesar de receber do marido uma atenção maior, numa relação de ensino-aprendizagem, ela ocupa o papel subalterno de aluna, enquanto Pedro Cobra é o professor. A contribuição da cultura indígena na identidade regional “é silenciada”, uma vez que Tari Januária assimila a cultura européia, a cultura do colonizador: “comer sal, usar vestido, falar como ele, atirar de rifle”, ao mesmo tempo em que nega sua própria cultura: “não mais me pintar com o vermelho do urucum e o preto de jenipapo”. Toda a contribuição indígena à cultura grapiúna não é levada em conta pelo narrador e através da voz de Tari Januária: “me ensinou a comer sal, usar vestido, falar como ele, atirar de rifle e não mais me pintar com o vermelho do urucum e o preto de jenipapo”, este lugar, ou melhor, este não-lugar, ocupado pela cultura indígena se faz presente.

(...) o processo colonial intentava promover o esquecimento das referências locais e no vazio restante instaurar a lembrança, não do passado do colonizado, antes os feitos do colonizador, tal como ocorre com Iracema, que nega sua cultura, seus antepassados, pelo fato de ser depositária do segredo da jurema. (SACRAMENTO, 2004, p. 113)

Dessa forma, o narrador de As Velhas promove o esquecimento das referências indígenas regionais, ao mesmo tempo, em que instaura a lembrança do desbravador, que se tornará, mais tarde, o coronel, da cultura grapiúna. Observa-se, portanto, uma continuidade no discurso identitário regional, entre os autores Adonias e Jorge Amado. O primeiro destaca a figura do desbravador, com seu rifle, e o segundo retoma essa mesma figura, já sob a forma do coronel do cacau, à frente dos jagunços armados.

A personagem Tari Januária, depois de uma adolescência violentada e de uma fase em que é tratada como subalterna, finalmente, na velhice, adquire um status de mulher independente, dura, autoritária, dando ordens ao filho homem: “ – Vá, Tonho Beré, calcule o terreno. Eu quero os ossos!” (op. cit. p. 5). Ocupando o lugar do marido morto, ela passa a desempenhar o papel de mulher e de homem, numa posição de matriarca da família. Assim, a construção discursiva da índia Tari Januária se articula em torno de três momentos: adolescente violentada, aluna subalterna e matriarca autoritária.

Ao contrário, a personagem Zefa Cinco é apresentada pelo narrador, numa visão feminista de igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher: “se Deus fez, o diabo juntou Chico Paturi e Zefa Cinco. Unha e carne de tão agarrados, duros na labuta, fizeram um pouco de tudo ”(Idem, p. 49).

A relação de Zefa Cinco com o marido é apresentada sem qualquer marca de dominação do homem: “Unha e carne de tão agarrados”. O trabalho na roça e o cuidado com os animais domésticos eram compartilhados pelo casal: “(...) duros na labuta, fizeram um pouco de tudo”. O casamento para ela não significou passar do domínio do pai para o do marido, mas foi uma simples troca: “Era ainda muito moça, pois acabara de fazer dezoito anos quando trocou pai e mãe por um homem[...]” (Idem, p.50).

A relação feminista de igualdade com o homem, marca Zefa Cinco desde o tempo em que vivia com o pai:

Zefa não perdia tiro. Aprendera a tirar com o pai firme o olhar nos jagunços, a pontaria infalível. Dois já atingira na cabeça quando ouviu o grito de Quintino. Voltou-se e viu que o menino gemia, estrebuchando, numa poça de sangue. Quintino, o menino! Agonizava, balas no peito, sofria muito. Ela cortou aquela dor atirando no coração do menino, aquele Quintino, atirando com o olhar seco e tudo em menos de um segundo.(Idem, p.47)

Em vez da dominação dos homens, Zefa Cinco torna-se quase um deles: “não perdia tiro”, “pontaria infalível”, “Ela cortou aquela dor atirando no coração do menino”. A violência masculina, no entanto, não extingue a ternura e o amor de mãe: “Tiveram filhos, dois meninos e, anos depois, uma menina.” (Idem, p. 50). Mas a vingança pela morte dos filhos faz ressurgir nela toda a violência selvagem dos homens desbravadores: “Zefa Cinco, com as próprias mãos, retalhou Pedro Cobra até a morte. Fez com ele o que as onças fizeram com os filhos dela” (Idem, p. 53). Tem-se, portanto, uma personagem feminina, que representa a não-linearidade, a quebra de paradigma e preceitos, porque reivindica, para si, a mudança e vivencia a transição de um estado de limitações para abrangência de possibilidades.

Zonga é uma personagem feminina e negra, talvez por essa condição, esteja próxima da submissão ao homem. O casamento deu-se mais por circunstância do que por escolha amorosa: “Coé nasceu comigo e, todos os dias juntos teria mesmo que acabar sendo a mulher dele”(Idem, p. 87). Morto o marido, chega a sentir algo “diferente” por outro homem, mas apenas segue-lhe passiva:

Me levou mato adentro, fez uma fogueira- ‘a nossa fogueira’- ele disse- e nos deitamos na terra que a relva cobria como uma pele de carneiro curtido. Não sei ainda hoje se o calor vinha das chamas ou do corpo dele. Lembro que, depois de acariciar meu rosto com as mãos e me beijou a boca, me lembro que falou como se fosse uma criança [...] Idem, p. 88)

Mesmo depois de velha, quando algumas mulheres alcançam maior independência e autonomia, Zonga continua paciente e bondosa, traços que podem disfarçar a submissão dócil feminina: “Ninguém mais tem paciência com as pessoas, devoção pelos santos e bondade com os bichos que Zonga [...] A negra alta de quase dois metros, velha de oitenta anos, magra de mostrar o esqueleto, sempre com a calma no rosto e a voz macia, [...], não ordena, pede ” (Idem, p. 67).

Zonga é, portanto, das personagens femininas de As Velhas, a mais submissa à cultura machista da época do desbravamento da região cacaueira.

Os sonhos, as ambições, os projetos de vida pessoal fermentavam dentro da mulher, no entanto, não podiam ir além do seu destino de fêmea. A atuação fora do lar, da casa era desvalorizada, ao máximo, era revalorizada a sua feminilidade e, é claro, a sua maternidade, como se participar da construção da sociedade fosse algo incompatível com sua condição de mulher. (BADINTER, 1985, p. 32)

Até a lembrança do único homem que reparara assume a forma de um sonho distante, além do que considera ser seu próprio destino.

Lina de Todos, por outro lado, aceita a condição inferior feminina para, num segundo momento, tirar vantagem dessa situação, fazendo a dominação machista funcionar contra os próprios homens. No momento em que ela se coloca contrária à atitude do marido que a aposta em um jogo: “O Raposa já não tinha o que apostar. Foi então que, querendo recuperar o perdido, exclamou com os olhos fora da cara: - Jogo minha mulher!” (Idem, p.101).

Lina passa a se comportar como se fosse um homem; revertendo posições de mando, distanciadas, portanto, das relações estabelecidas naquela sociedade agrária. “-Então sou mula para você servir de aposta? – a cólera a dominava, sem dúvida, mas foi sem perder a calma que disse (Idem,p.102).

A princípio, fica a recusa ao discurso machista, levado às últimas conseqüências. Ela, no entanto, submete-se à dominação, fazendo com que ela funcione a seu favor:

Os homens que ali estavam conheceram Lina de Todos naquele minuto e sua fama começou naquela tarde[...]

Ele me pôs nos dados, o safado!

E vendo os homens excitados em frente, cada um dando o que pedisse para apertá-la nos braços, soube que podia usar eles como quisesse. Buscou esconder a raiva e, abaixando-se um pouco para mostrar os seios, forçou o riso que alegrou o semblante.[...].E foi a apontar o Raposa que disse:

- Já não sou mais dele porque me jogou nos dados. Não serei apenas de Zebeleu!

- Serei de todos! – exclamou, gritando, a ordenar - Matem o Raposa, agora, com as mãos ou a achado, que serei de todos! “(Idem p.102)

O modo como se submete ao machismo e dele tira vantagens encontra-se na citação abaixo:

Era de qualquer um , ou de todos, o corpo trocava por serviços na terra que possua. Cada plantio novo de cacau teve suor de homem como adubo.

Vivia com um homem o tempo certo de pegar barriga. [...]

Não se deve ter apego a homem nenhum. Apego somente aos filhos.

- Não quis mais donos- ela disse, os olhinhos quase fechados parecia cochilar- o homem a quem dei o corpo e a alma, o Raposa, acabou me apostando no jogo (Idem, p.115)

O fato de não querer mais ligar-se apenas a um homem não é um protesto contra a condição feminina, mas é exatamente sua aceitação para dela beneficiar-se.

Considerações finais

Desde os tempos mais remotos, o homem sempre foi aquele que reinou com hegemonia em seu lar, em seu grupo social e até mesmo na sociedade da qual fez parte. O seu discurso machista sempre foi levado a sério, suas ordens e leis obedecidas. Entretanto, é a partir do século XX que a relação de poder homem versus mulher passa a ser descaracterizada, ou seja, a mulher não aceita está na posição de um ser submisso. Nesse século o discurso da mulher torna-se mais heterogêneo, ela não aceita mais a condição de ser apenas a rainha do lar. A mulher deseja fazer parte do meio social em que habita, de expor suas idéias, suas opiniões e até ter uma profissão e seu discurso legitimado.

Mas, apesar da predominância desse discurso machista, as personagens femininas de As velhas ganham em suas reivindicações certa heterogeneidade. O discurso da índia Tari Januária perpassa por três momentos distintos: adolescente violentada, mulher subalterna e matriarca autoritária; em Zefa Cinco há uma relação igualitária de poder, não apresentado nenhuma marca de dominação; Zonga se caracterizou a personagem mais submissa à cultura machista e, por fim Lina de Todos que se submete à dominação para dela tirar proveito.


FONTE - http://www.urutagua.uem.br/006/06gsantana.htm

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA LUÍSA NO ROMANCE PORTUGUÊS O PRIMO BASÍLIO: A MULHER UMA VOZ SOCIAL SILENCIADA

Resumo

A construção da personagem feminina no romance O primo Basílio, se constitui uma abordagem que traz a discussão o papel social da mulher portuguesa, especialmente, na sociedade lisboeta no século XIX. Essa análise permite refletir sobre a educação recebida por essa sociedade, a qual pretendia formar uma mulher passiva, alheia as questões sociais e políticas. As regras sociais eram mecanismos que favoreciam aos homens e silenciavam a voz feminina. O romance denuncia de forma severa esta hipocrisia social e religiosa.



O romance português O primo Basílio traz uma representação da mulher na sociedade portuguesa, especialmente, da burguesia do século XIX. Nesta obra a personagem Luísa, apresenta características que evidenciam o lugar ou não lugar da mulher na sociedade lusitana. Pode-se observar que a educação feminina é descrita como sentimental, romântica, na qual a mulher tem o seu mundo limitado pelo ambiente doméstico. Neste cenário o casamento é visto como um ritual falido, mantido apenas para satisfazer as regras de uma sociedade hipócrita e superficial.
Nesta perspectiva, o lugar da mulher, representada por Luísa, se limita à administração da casa, sua rotina é bem definida pela música, atividades domésticas e leitura de livros, romances românticos, que denota uma visão idealizadora da vida, um mundo criado, fantasiado que escamoteia a realidade. A personagem parece dizer para o leitor atento, que seu mundo é demarcado pela redoma da família, da casa. A voz da mulher não consegue transpor os limites sociais que lhe é imposto, isto pode ser observado pela ausência da mulher nas questões sociais, políticas e culturais. Luísa está totalmente isolada das questões sociais, seu silêncio parece ser preenchido pela ociosidade, leitura e fantasias.
O silêncio feminino parece ser um determinismo social, isto é evidenciado quando Luísa demonstra sua fragilidade, pois ela sempre está dependente do homem, primeiro do marido, dependência financeira, moral, social. No segundo momento ela se torna dependente da paixão, da fantasia, do mundo idealizado, mesmo sendo desvalorizada quando é levada, pelo personagem Basílio, para um cenário pobre, feio, quase animal, no qual o adultério se consuma. Observe que ela não reage, não vê alternativa. Aceita passivamente o fato de ser nascida para o amor, ou sexo, para a satisfação dos apelos masculinos. Este conceito social dar evidencias de que está internalizado em Luísa a passividade feminina.
Outra manifestação do silêncio feminino é visto quando ela quebra uma regra social, a fidelidade conjugal, a partir desse momento um conflito interior se instala na vida de Luísa. Ela vive o drama do repúdio social, visto que, no imaginário social a infidelidade masculina é aceita como normal à natureza do homem, mas, a infidelidade feminina é sinônima de imoralidade, pecado imperdoável. Assim, Luísa não consegue repudiar este conceito hipócrita da sociedade e sofre chantagem para manter em sigilo o segredo, aceita a inversão de papeis dentro de sua própria casa, a senhora torna-se serviçal. Esta construção social sobre o papel da mulher na sociedade portuguesa, se reveste de um poder que determina o destino da personagem Luísa. Ela não consegue superar o sentimento de culpa, e mesmo recebendo o perdão morre.
Este cenário provavelmente aponta a existência de várias opções para a questão da mulher na sociedade em discussão. Uma opção é subverter os valores sociais, deixar ecoar voz sufocada pelo estilo de vida social hipócrita, questionando os valores postos, que insenta o homem e condena a mulher. Luísa iniciou esse processo, mas não conseguiu ir além. Entretanto, a mensagem deixada pela personagem lança as raízes das possibilidades de mudanças nas estruturas sociais, e isto ocorre quando a mulher deixar de viver a concepção de vida idealizada, para vivenciar novas realidades.
Neste texto, o estilo queirosiano é bastante forte, ou seja, há aqui uma crítica a hipocrisia religiosa e social. Na obra parece ecoar uma voz que quebra o silêncio, dizendo: mulheres repudiem a padrão social que vos oprimem, desçam os degraus da fantasia, caiam na realidade, existe um mundo diferente fora da prisão domiciliar. Essa voz é um recurso da literatura, que utiliza uma imaginação livre da ideologia dominante, denominada por Schuiler de imaginação desagrilhoada, ele diz que:
A imaginação desagrilhoada é sensível às transformações, à diversificação da linguagem e da cultura [...]. A imaginação desagrilhoada protege o romance de restrições classicizantes [...]. O romance hostiliza quaisquer padrões, sejam eles leis científicas ou rigidez burocrática. (Schuiler, 1989 p. 76).
Portanto, a reflexão sobre a personagem feminina no Romance O primo Basílio, se constitui uma abordagem pertinente para se discutir o papel da mulher na sociedade, não só na portuguesa no século XIX como também nas sociedades modernas. Visto que, nas sociedades ocidentais, mesmo tendo a mulher conquistado espaço em diversos setores sociais, políticos e culturais, ainda se discute o silêncio da mulher, por exemplo, o silêncio feminino diante da violência sexual e doméstica. O silêncio social da mulher se constitui uma abordagem de grande relevância para o mundo moderno.

Stanislavski e a construção da personagem

O conceito de criação da personagem reconhece que todos os seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas em peças teatrais. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje e Hamlet na semana seguinte, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismos. Embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e características próprias. Mas não se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que veste um figurino. A criação da personagem é um processo.

O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de se surpreender e até, às vezes, ser contraditória. Nenhum personagem é completo, mesmo os heróis gregos tinham suas falhas trágicas. Modernamente, a dramaturgia nos oferece pais exemplares que se apaixonam perdidamente por travestis.
O primeiro contato do ator com a personagem se dá por intermédio do seu problema humano. Esta relação entre a situação objetiva da personagem e a íntima necessidade pessoal de transformá-la, cria uma síntese dos lados objetivo e subjetivo da personagem. A ação torna visível a vida interna e cria uma base para a experiência vivenciada. Esta síntese leva a uma visão artística do papel onde a expressão externa não está separada do conteúdo da experiência humana. Os objetivos a serem atingidos orientam a personagem ao longo da peça. A cada instante a personagem reavalia sua situação perante seu objetivo e disso surge a necessidade de agir.

É comum identificar o lado psicológico (a vida interna) da personagem com as suas emoções. Na verdade, Stanislavski, elaborador do sistema para o ator, se preocupou durante toda sua vida artística com o problema da criação da experiência verdadeira. Ele entendeu que as emoções não estão sujeitas a nossa vontade, e sim ao resultado de um processo de vida. Elas não podem ser atingidas diretamente. A ação é o indicador mais preciso da personagem. É inútil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual ação que vai fazer.

Por ação entendemos um ato que envolve o ser humano inteiro na tentativa de atingir um objetivo específico. Na ação orgânica o desejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo estão unidos. De fato, o homem inteiro participa da ação, por isso sua importância na criação da personagem. Agimos a partir de nossas percepções. Elas e nossas ações expressam quem somos nós.
Percebemos, avaliamos e depois agimos. O interior, que é invisível, se torna externo, visível e artístico através da ação. Entendido que as emoções surgem durante o processo de ação. “A lógica dos pensamentos gera a lógica das ações, que gera a lógica das emoções”.

A personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Como indivíduos, somos capazes de empreender uma grande variedade de ações. A personagem ameaça e o ator também pode ameaçar. A personagem consola, mas o personagem também o faz. Mas o diferencia o ator da personagem não são as ações simples, individualmente (ameaçar, consolar, desejar), mas a “ação complexa” – o conjunto dessas ações simples que está dirigida a um objetivo, único, provido de coerência e lógica próprias.
Trabalhando e experimentando esta coerência ou lógica de ações que não pertencem ao ator e sim à personagem, o ator começa a entrar no fluxo de vida da personagem.

Ao longo de uma peça, a personagem é capaz de realizar um número significante de ações que constituem uma linha contínua que atravessa todo o texto. A linha contínua de ações é a linha consecutiva de ações de uma personagem que o ator desenvolve a fim de reforçar a lógica e seqüência de seu comportamento no papel. Serve-lhe da mesma forma que uma partitura serve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem e perspectiva.
Um conceito básico de criação da personagem: ela existe a partir de sua lógica de ações. Criar a linha contínua de ações de uma personagem com sua lógica de ações envolve o ator com sua mente, alma e corpo juntos, numa pesquisa psicofísica.

A personagem se diferencia do ator no que diz respeito à lógica de ações e no que diz respeito à maneira de agir. Além da linha contínua das ações com sua coerência própria, o ator também se preocupa com as características da personagem.
A composição de hábitos de comportamento é chamada de caracterização. Muitos atores encaram seu trabalho como o descobrimento do gestual particular da personagem.
O problema da caracterização tem duas vertentes. O ser humano existe como indivíduo e como integrante de um grupo social. Dar individualidade e agregar características que situem a personagem a seus respectivos grupos sociais.
As classes sociais, as profissões, as faixas etárias, demonstram comportamento compartilhado que é imediatamente reconhecível. O comportamento humano também muda de país para país e de época para época.

Os atores de A gaivota, que retrata várias camadas da sociedade russa do final do século XIX precisam ser sensíveis ao fato de que suas personagens se apropriam dos padrões de comportamento de um outro país e de uma outra época. Também, dentro dessa sociedade, as pessoas estão separadas pelas classes e funções sociais – uma ampla pesquisa é necessária para qualquer peça que fuja de nossa época atual. Mas precisamos ficar atentos a observações superficiais e tentação de criar verdades absolutas. É verdade que militares, em geral, compartilham características próprias que os diferem dos surfistas, por exemplo, mas nem todos os militares são, e pode mesmo haver um militar/surfista. O que quero dizer é que há muitas personagens pertencentes a quadros muito característicos, mas que fogem às características mais marcantes de seus quadros.

Dentro dos grupos, cada ser humano é um indivíduo com suas características próprias. E o que as determina como características individuais, ou, melhor dizendo, como modos de comportamento são peculiaridades interessantes, como um andar diferente, por exemplo, ou um andar desleixado, ou um falar monótono e agudo, uma risada histriônica, etc. Enfim, características que se somem em um indivíduo e que componham sua personalidade. É evidente que essas manifestações externas devem estar associadas as realidades interna e mais profundas da personagem.

Na descoberta de uma lógica de ação única e indispensável, o ator percebe que a personagem demonstra certas tendências de ação. Por exemplo: Treplev explode em quase todas as suas cenas, mas ao invés de reconhecermos nele unicamente um personagem explosivo, devemos estar atentos para os motivos que o levam a explodir. É preciso lembrar que o tempo da peça é o tempo em que a vida da personagem está no limite. Questionando os fatos que o levam a perder a cabeça, temos um primeiro passo para estabelecer uma fisicalidade da personagem. Temos a base de sua composição física, temos o como fazer. Ao adaptar seu corpo a situação em que se encontra a personagem, o ator começa a compor seu papel.

Finalmente, o que vai distinguir a personagem do ator é a forma como a ação da personagem é executada. Hamlet vai inevitavelmente ameaçar de forma diferente da que faria o ator, pois, além do fato de que cada ser humano ser único e a personagem ser um ser humano, para caracterizar o ator precisa recompor seu próprio comportamento. Para fazer isso, sem cair na imitação fácil, é necessário transformar os componentes da ação interna e externa que são suscetíveis ao nosso controle: ação física, estado físico, tempo e ritmo, monólogo interior, pensamentos. Este processo se estende pelo período de ensaios e temporada, e até depois.É comum um ator inexperiente e mesmo experientes rejeitarem novos modos de agir – é mais cômodo apostar na naturalidade, no espontâneo e mesmo nos clichês para compor as personagens porque compor uma personagem meticulosamente, passo a passo, rejeitando diversas tentativas até encontrar um caminho satisfatório é tarefa árdua. A descoberta de uma ação psicofísica única e indispensável da personagem, que o sintetize, significa também em certa medida, a “morte” do ator e sua “reencarnação” dentro da personagem, e isso gera medo e nem sempre é desejado pelos próprios atores.

Fundamentos sobre a construção da personagem Hermógenes em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa

Carlos Alberto Rodrigues Pereira


O texto a seguir tem a finalidade de analisar alguns aspectos referentes à construção da narrativa em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ressaltando o caráter dialógico desse processo narrativo e sua influência na elaboração do enredo, além de examinar a representatividade do antagonista Hermógenes no desencadeamento dos conflitos da história, segundo a visão do narrador Riobaldo.

1. Apresentação

Tendo diante de si um interlocutor que, numa certa medida, pode intervir no processo narrativo, sobretudo por meio de indagações, Riobaldo não é, portanto, um narrador a mais: até certo ponto, também a sua narração está sujeita a mudanças de direção, tanto quanto a sua trajetória de vida esteve. Afinal, é esse interlocutor o primeiro a se referir, no discurso, ao Urutu-Branco, cognome adotado por Riobaldo no período em que campeou à frente dos jagunços, antes conduzidos por Joca Ramiro. “Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o ‘Urutu-Branco’? Ah, não me fale. Ah, esse...tristonho, que foi - que era um pobre menino do destino...” (GS:V, p.33). Note-se que a pergunta sobre o famigerado Urutu-Branco, chefe de jagunços a quem coube comandar a vitória sobre Hermógenes, é feita ao narrador pelo ouvinte do seu relato, abrindo-se, dessa maneira, a hipótese de esse receptor não desconhecer completamente o enredo a ser percorrido. Nesse caso, se o destinatário a quem o narrador se dirige, solicitando-lhe opiniões que transitam entre assentimento para suas certezas e elucidação para suas dúvidas, já possui alguma informação prévia sobre aquele homem, cuja história resvala o mito, parece-nos cabível inferir que esse indivíduo com quem Riobaldo confabula exerce uma função ativa, em certa medida, na construção do discurso.

Com efeito, o caráter intersubjetivo próprio do ato de narrar, em Grande Sertão: Veredas, constitui um fator preponderante nas relações que se estabelecem entre as estratégias configuradas no enunciado e a natureza dialógica que caracteriza a construção da narrativa, sobretudo porque essa natureza “enfatiza o alocutário; refere-se abundantemente à situação alocutiva; joga com vários quadros de referência simultaneamente; caracteriza-se pela presença de elementos metalingüísticos e pela freqüência das formas interrogativas” (DUCROT: 2001, p.276).

Além disso, a intenção de Riobaldo não se limita a simplesmente reproduzir em linha reta os eventos que, embora passados, permanecem vivos na memória e presentes como objeto de questionamento. Interessa-lhe, sobremaneira, mais do que a simples reconstrução de sua jornada, a oportunidade de, ao novamente percorrê-la por meio da narrativa, entendê-la em sua dimensão mais secreta para, quem sabe, agora sim, poder de fato encerrá-la.

Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco - é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso - por estúrdio que me vejam - é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia (GS: V, p.26).

Por essa razão, o procedimento discursivo se desloca incessantemente do plano da trama, no qual as peripécias se desdobram em direção ao desfecho inevitável, ao plano digressivo das especulações filosóficas e/ou metafísicas, em que as inquietações provocadas pelos acontecimentos encerrados permanecem entreabertas. Ao mesmo tempo, ao dar início ao seu relato, propriamente dito, in media res, isto é, “por eventos situados num momento já adiantado da ação, recuperando depois os fatos anteriores por meio de uma analepse” (REIS & LOPES: 2002, p.199), apesar de a utilização desse recurso discursivo ser recorrentemente deliberada - inclusive, é claro, em se tratando do autor implícito que elabora o depoimento de Riobaldo - no caso do personagem-narrador tal opção deixa transparecer a presença de um fator contingencial, característico do diálogo espontâneo entre indivíduos. Dessa forma, diante da intenção declarada do interlocutor de “devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe” (GS: V, p.41) - como Riobaldo a sintetiza - o mesmo passa a inventariar uma série de lugares pelos quais já passou, e que o visitante poderia igualmente conhecer:

Lhe mostrar os altos claros da Almas: rio despenha de lá num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatú - já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece - neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim... (GS: V, p.42).

É Riobaldo retornando, pelo discurso, aos cenários de uma outra época, até chegar a determinado ponto em que tempo e espaço convergem para a mesma lembrança. Nesse momento, inaugura-se o plano intradiegético da narrativa, aqui entendido, a partir da conceituação de Genette, como o “universo espácio-temporal no qual se desenrola a história” (REIS & LOPES: 2002, p. 107).

Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é o Urucúia - paz das águas... É vida!... Passado o Porto das Onças, tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou. Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a pé, para não acabar os cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes de se deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles foram meus dias (GS: V, p.43).

Portanto, a trajetória narrativa de Riobaldo se inicia no encontro entre ambientes distantes no tempo e ações ali decorridas, guardadas intactas no espaço da reminiscência - como se, sob a ótica do narrador, todos os momentos fossem agora e todos os lugares fossem aqui. Mais adiante, vemos avançar o tempo da narrativa, por meio do deslocamento geográfico e cronológico da ação, até uma passagem de complicação do enredo, às vésperas da primeira tentativa de travessia do Liso do Sussuarão - território comparável ao inferno dantesco - o qual separava os antigos homens de Joca Ramiro, comandados então por Medeiro Vaz, do paraíso almejado da vingança.

Digo: outro mês, outro longe - na Aroeirinha fizemos paragem (...) Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Sussuarão - a dentro, adiante, até ao fim. - “E certo é. É certo” - Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda palavra. (GS: V, pp.49-51).

Todavia, a despeito das ingerências, tanto do elemento externo personificado pelo alocutário, quanto das divagações derivadas do próprio locutor, em Grande Sertão: Veredas, a prevalência de uma estratégia narrativa progressivamente elaborada e a preocupação de Riobaldo em cumpri-la com o devido rigor estão bastante claras. “Com meu amigo Diadorim me abraçava, meu sentimento ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas” (GS: V, p.37). Noutro momento, a consciência desse narrador quanto à discrepância entre a disposição cronológica dos eventos e o posicionamento que ocupam no âmbito da memória e, por correspondência, no nível narrativo, é declarada por meio de um paradoxo. “Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas antes delas acontecerem...” (GS: V, p.47).

Assistimos, portanto, entre as páginas de Grande Sertão: Veredas, à constituição ontológica do narrador, isto é, à consolidação do processo narrativo desenvolvido por Riobaldo, e aos procedimentos por ele escolhidos - de acordo com as diretrizes interiores e exteriores que se apresentam - rumo à construção do discurso e à conseqüente recriação dos conflitos ainda latentes.

2) Construção do enredo

Em Grande Sertão: Veredas, a estruturação da narrativa é dividida, por assim dizer, em duas partes. A primeira se inicia, ao nível da trama, como já destacamos na apresentação desse trabalho, numa cena pertencente à complicação do enredo, durante a estada dos homens de Medeiro Vaz, por “umas semanas”, numa fazenda próxima às margens do rio Urucuia. Tempo de lembranças deleitáveis para o narrador Riobaldo, tanto quanto as águas do rio preferido, em razão da oportunidade de conviver mais de perto com Diadorim e aproveitar as pequenas epifanias que o amigo lhe ensinava a experimentar, apenas pela observação atenta das belezas ao redor.

Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular - cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira...e o bem-te-vi que dizia, e araras enlouquecidas. Bom era ouvir o mom das vacas devendo seu leite (GS: V, p.19).

A partir desse ponto, Riobaldo prossegue a narração até o momento de sua primeira passagem, junto com os companheiros, então sob as ordens de Zé Bebelo, pelas Veredas Tortas, onde se encontra o “Paredão”, cenário no qual se desenrolaria, no futuro da narrativa, o embate final com Hermógenes e a derrota definitiva do matador de Joca Ramiro. Desse lugar predestinado, as recordações do narrador são as piores possíveis, como se os rumores da guerra já pudessem ser captados ou como se ali tivessem ficado para sempre. Nesse momento em que a enunciação adquire um tom proléptico - indicativo do que viria a acontecer, equivalente ao já acontecido - encerra-se a parte inicial da narrativa.

Mesmo o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro da meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho...O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem (GS: V, pp.81-82).

Na segunda parte, Riobaldo recua a história até a sua infância e a conduz de volta ao Paredão, dessa vez no dia do enfrentamento decisivo, mantendo, portanto, a linearidade do enredo, da introdução ao desfecho.

A primeira parte, na visão de Riobaldo, constitui a essência de sua trajetória. “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo” (GS: V, p82). No entanto, por insistência do interlocutor, cujas considerações podemos somente presumir, o narrador retoma a sua empresa, a partir dos primórdios das façanhas que entretecem o destino, a fim de decifrar a engrenagem que o movimenta.

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe (GS: V, p.84).

A propósito, dentro desse contexto, Hermógenes se constitui, ao longo de toda a narração, na presença da tragédia futura: bastaria uma bala na testa do “pactário” para que toda a história pudesse ser escrita de outra maneira. “Porque é que eu tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo: se eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve tiro, bem certo, e corria, ladeira abaixo, caçava de meu sumir nesse vai-te-mundo” (GS: V, p.180). A narrativa, portanto, abrange não apenas o que foi feito, ou seja, as ações em si, mas também o que se pensou em fazer, e não se realizou.

Em todo caso, trata-se sempre de um discurso em construção, elaborado por um emissor que está aprendendo a contar a sua história no decorrer da própria execução da narrativa. “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (GS: V, p. 159).

3) Caracterização de Hermógenes.

Em relação ao universo dos jagunços, no interior do qual ações de violência eram muitas vezes banalizadas e a simples crueldade podia ser freqüentemente vista como uma demonstração de firmeza, Riobaldo se mantinha em geral a certa distância, como se sempre tivesse sido um estranho entre a maioria dos seus pares.

Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição. Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O senhor vige esses: comem o cru de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas com o tempo todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus (GS: V, pp. 146-147).

Trata-se do exercício da “lei do mais forte”, como ressalta Galvão (1986):

É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante por seu desempenho em eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis (p.21).

Pelo fato de não estar, naquele momento, completamente integrado a esse meio, Riobaldo conseguia conservar algum discernimento entre o certo e o errado, segundo determinada categorização de valores, o que lhe permitia, de certa maneira, perceber acontecimentos que se desenvolviam nas sombras das ações aparentes e antever as suas possíveis conseqüências. “Esse Hermógenes - belzebu. Ele estava caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube tanto disso, como naquele tempo” (GS: V, p.156).
Note-se, também, o esforço do narrador em apreender, pela linguagem, a figura imprecisa de Hermógenes, a qual sempre se constituiu, para Riobaldo, na personificação de uma incógnita.

Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela maldade. A qual que me aluava. O Hermógenes numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do quê? A cruz o senhor faça, meu senhor! (GS: V, p.203).

Não pretendemos, entretanto, caracterizar Riobaldo, maniqueisticamente, como representação alegórica do Bem no embate contra o Mal. Na verdade, Riobaldo também lutou um dia e ainda continua lutando, embora com outras armas, em função de seus próprios interesses, como observa Bolle (2004):

Com efeito, trata-se do discurso de um dono do poder (o discurso de Riobaldo) diante de um imaginário tribunal da história constituído pela classe dos letrados representada pelo doutor da cidade. O objetivo do agente do poder Riobaldo é que, no fim, ele seja absolvido - pelo interlocutor e pelo leitor (o ‘hipócrito leitor, seu semelhante, seu irmão’) (p.184).

Para Riobaldo, tentar entender Hermógenes resulta num dilema, pois se por um lado o matador de Joca Ramiro e Diadorim lhe causa repulsa, por outro, Riobaldo não tem como negar que também ele buscou o pacto com o demônio para se colocar em igualdade de condições com o traidor e assim poder derrotá-lo. “Será - mal pergunto eu ao senhor - que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio?” (GS:V, p.425). Portanto, nas reflexões de Riobaldo, a perseguição a Hermógenes continua. Ainda é preciso extirpar de dentro dele mesmo o grande inimigo.

4) Conclusão.

Nesse contexto dialógico a que nos referimos, a caracterização da personagem Hermógenes pode ser considerada um produto híbrido, visto se constituir, ao mesmo tempo, de aspectos contrastantes e de outros semelhantes ao modo de ser do narrador. Na perspectiva que Riobaldo tem de Hermógenes, trata-se de um antagonista, no sentido de os caminhos por eles escolhidos os terem levado para lados opostos. É também o nome do destino que ele devia cumprir, pois liquidar Hermógenes era a missão que lhe estava reservada. “A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes - naquele dia, naquele lugar” (GS:V, p.508). Entretanto, Hermógenes também representa o que permanecerá inacabado; a encarnação de um enigma que desafia conclusões.