terça-feira, 29 de junho de 2010

A personagem narrativa e as paixões. A construção da subjetividade

Eliane Soares de Lima

Resumo

Entendendo a personagem como uma unidade difusa de significação, construída progressivamente pela narrativa, sendo dela, portanto, parte decorrente e inerente, este artigo pretende propor uma reflexão sobre o processo de construção da subjetividade dos seres verbais, que resulta em uma estrutura complexa e autônoma, que confunde o leitor quanto às barreiras que separam ficção e realidade. Assim, utilizando a teoria e os métodos de análise propostos pela semiótica das paixões, esboçamos uma linha de raciocínio capaz de colaborar para um estudo da personagem em suas especificidades de ser-linguagem.




O “ser” é um efeito de discurso. Sua competência
(para agir) e sua existência (modal, passional) se
constrói seja por pressuposições ou catálises, mas
sempre a partir da manifestação do discurso.
Waldir Beividas



A personagem, enquanto categoria da narrativa, é o indicador mais manifesto
da ficção, ocupando assim uma função bastante marcante na literatura. A partir dos
mecanismos de identificação, projeção, decifração, os seres fictícios tornam-se a principal ponte entre a obra e o leitor, possibilitando sua adesão afetiva e intelectual, ao viver e contemplar, na obra, a sua experiência. Contudo, apesar da impressão de vida real que muitas personagens transmitem a seus leitores, esses seres habitantes do universo ficcional serão sempre apenas o resultado de um processo configurativo da linguagem, tanto no sentido físico quanto no psíquico. A subjetividade das personagens (sentimentos, paixões) deve ser entendida, portanto, como um efeito de sentido inscrito e codificado na e pela linguagem.
Assim, a semiótica procura inscrever a problemática das paixões nos princípios
de pertinência e de coerência da teoria geral da significação, que passa a compreender a paixão como uma modulação dos estados do sujeito, concernindo não mais à transformação dos estados de coisas (fulcro da narratividade, como explica Bertrand, 2003), mas à modulação provocada pela relação do corpo sensível com o que o cerca.
Durante muito tempo o modelo da pesquisa semiótica esteve alicerçado sobre o
descontínuo da estrutura narrativa, já que o núcleo da gramática narrativa, com seus
programas narrativos, pontuava apenas os enunciados de junção e, portanto, as
transformações dos estados de coisas. Nesse sentido, o espaço compreendido entre um estado e outro era relativamente deixado de lado, como um vazio a preencher. A semiótica das paixões, preocupando-se exatamente com o dinamismo interno dos estados, vem, pois, construir uma “semântica” da dimensão passional nos discursos, introduzindo uma descrição semiótica da ordem do contínuo. Dessa forma, a dimensão passional da configuração dos seres fictícios fica centrada nas relações entre o sujeito e o objeto, cuja transformação é assegurada pelos enunciados de fazer, e o espaço passional, feito de tensões e aspectualizações, delineia-se “em torno” das transformações narrativas.
Quando falamos em “modulação dos estados do sujeito”, estamos pensando no
movimento, nas ondulações de estabilidades e instabilidades da massa tímica ordenadora do discurso, que ora enfatizam um dos pontos do eixo semântico fundamental, ora outro, dando margem à disposição afetiva de base dos sujeitos integrantes desse discurso. Desse modo, a análise dos seres fictícios de um dado discurso pode deixar de deter-se somente no agir da personagem para preocupar-se também com o sentir do agente, com a relação entre ele e seu ambiente ou, mais especificamente, com a maneira como o ator percebe e se relaciona com
seu meio.
Os termos da relação fundamental do discurso formam, dessa maneira, a
categoria fórica do texto, imprimindo qualidades positivas a um dos termos do eixo (euforia) e
negativa ao outro (disforia): é essa orientação sensível que coordena, ou gerencia, o modo de
existência do sujeito em ligação com seu objeto-valor. Ou seja, as paixões, que
complexificam e dão “vida” à construção da personagem narrativa, começam a ser entendidas
como efeitos de sentido de qualidades modais que modificam o sujeito de estado, garantindolhe
uma existência modal estritamente relacionada a seus “estados de alma”.
Para explicar a configuração passional da personagem, é preciso, portanto,
recorrer às relações actanciais, aos programas e percursos narrativos. Só assim se pode
determinar o sujeito que quer ser, o objeto de seu desejo, o sujeito em que outro crê, assim
como, o destinador do fazer do sujeito passional. Em outras palavras, só assim se pode
apreender as etapas do percurso do sujeito e, conseqüentemente, a dimensão dos sentimentos,
das emoções e das paixões, que ocupam um lugar de grande valor dentro dos discursos.
CASA, Vol.6 n.1, julho de 2008
http://www.fclar.unesp.br/seer/index.php?journal=casa
A configuração sintáxica da subjetividade da personagem-narrativa
Os estados passionais estão necessariamente ligados à ação e à transação,
definindo um percurso do sujeito marcado por variações tensivas. Assim, em termos
estruturais podemos pensar nas posições actanciais como lugares fixos, todavia compostos de
um feixe de modalidades variáveis. O actante, portanto, responde apenas por um simples
operador, responsável pelo fazer transformador que movimenta a narrativa, sendo a dimensão
contínua, disposta em torno da junção, a responsável pela particularidade da dimensão
patêmica do discurso, garantindo-lhe um novo universo de significações.
No entanto, quando pensamos na análise dos efeitos de sentido passionais, tal
como se manifestam na língua e nos discursos, não devemos nos ater exclusivamente à
modalização dos estados, que encerram condições ou restrições particulares a estes, alterando,
na instância narrativa, as relações do sujeito com os valores. É preciso atentar ao que aparece
como um excesso, uma proeminência da estrutura modal.
A semiótica trabalha essencialmente com quatro modalidades de base: o
querer, o dever, o poder e o saber. Tais valores modais determinam tanto o ser, quanto o fazer
do sujeito, sendo a modalização do ser, como temos visto até aqui, a grande preocupação na
abordagem das paixões. Contudo, falta na série das modalidades básicas uma das condições
da realização. Para que o sujeito se realize, a competência modal deve ser por ele fundada na
fidúcia, ou seja, é preciso também que ele creia querer, creia dever, creia saber e creia poder.
De modo mais geral, o crer é, então, a modalidade que corresponde para nós à primeira etapa
da construção da competência, a partir da qual emergem os valores a que o sujeito visa, em
cujo cerne sua ação se inscreve e a partir da qual todas as outras modalidades poderão se
desdobrar.
A competência e existência modal do sujeito, com efeito, podem ser
apreendidas na confluência de uma organização paradigmática e sintagmática, em que a
dimensão passional articularia, pois, uma estrutura modal e uma estrutura aspectual que a
sobredetermina. Nesse sentido, a investigação do processo configuracional das paixões da
personagem narrativa deve abordar esse aspecto a partir dessas duas perspectivas, porque as
relações paradigmáticas constituem “sistemas de paixões”, enquanto as relações sintagmáticas
modais caracterizam as paixões. Ou seja, do ponto de vista paradigmático, o sujeito é dotado
de uma carga modal de maior ou menor complexidade, constituída por modalidades
compatíveis, contrárias ou contraditórias que o definem a cada instante de seu percurso. E do
ponto de vista sintagmático, essa carga modal é apresentada, simultaneamente, como
hierarquizada e evolutiva, e uma modalidade dominante passa a definir o sujeito, pondo as
outras sob sua dependência.
Toda sintaxe narrativa e discursiva, portanto, baseia-se nos encadeamentos das
modalidades. Além disso, o passional, entendido como uma variação dos estados do sujeito,
permite depreender também uma outra ordem de relações que define a existência modal desse
sujeito: trata-se da categoria da tensividade, “intuitivamente percebida como uma propriedade
das figuras passionais”, como declara Bertrand (2003, p. 371).
A tensividade, vista em um nível mais superficial como aspectualização,
modula o conteúdo semântico do predicado, quer seja na temporalidade (incoativo, durativo,
iterativo, pontual e terminativo), na espacialidade (percepção dos limiares e da extensão), na
actorialidade (o comportamento aspectualizado), ou ainda na axiologia (a relação entre a
imperfeição do parecer e o surgimento da perfeição como critério de apreensão estética).
Assim, os traços aspectuais definem a maneira de ser que “sensibiliza” a modalidade e a rege,
atribuindo-lhe valores variáveis. Greimas e Fontanille (1993, p. 143) descrevem a
sensibilização como “a operação pela qual dada cultura interpreta uma parte dos dispositivos
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modais, concebíveis dedutivamente, como efeitos de sentido passionais”, e explica ainda que
“verticalmente, de alguma forma, ela constrói as taxionomias culturais que filtram os
dispositivos modais para manifestá-los como paixões no discurso; horizontalmente, ela se
coloca na sintaxe discursiva da paixão, como processo total”.
Nesse sentido, a sensibilização é a primeira fase enunciativa da colocação em
discurso das paixões e pressupõe, no nível das pré-condições da significação, uma
“constituição” do sujeito que sente.
Uma outra fase enunciativa na constituição dos dispositivos passionais,
também de ordem cultural, é a moralização. Vejamos como a definem Greimas e Fontanille,
(1993, p. 140):
A moralização é a operação pela qual dada cultura relaciona um
dispositivo modal sensibilizado a uma norma, concebida principalmente
para regular a comunicação passional em certa comunidade. [...] Em
discurso, a moralização se reconhece diante do fato de que um observador
social encarrega-se de avaliar o efeito de sentido a que é suscetível, a fim de
carregar tais julgamentos, de atribuir-se um papel actancial na configuração.
A moralização, assim como a sensibilização, pode ser também considerada
como operação discursiva. Moralizando uma paixão, podemos avaliar não apenas certa
maneira de fazer ou de ser, mas também certa maneira de ser apaixonado. Desse modo, a
moralização afeta as modalizações que dizem respeito às propriedades informativas do
comportamento passional, pressupondo o término do percurso discursivo do sujeito, com as
conseqüências manifestadas e observáveis.
A “sensibilização” dos dispositivos modais e sua “moralização”, portanto,
representam duas configurações que enquadram os dispositivos passionais. Como afirmam
Greimas e Fontanille(1993, p. 157):
A sensibilização e a moralização não são, pois, apenas procedimentos
de descrição; são verdadeiras operações disponíveis para os actantes do
enunciado e da enunciação; também as taxionomias culturais, que elas
contribuem para edificar, constituem uma das questões das estratégias de
comunicação: são elas que têm o domínio das taxionomias passionais numa
interação que pode agir a montante sobre essa troca.
Pensando, então, nas estratégias intersubjetivas do discurso1, parece-nos ficar
claro que a trajetória existencial e a disposição modal que caracterizam o sujeito da paixão,
podem ser previstas dentro de um esquema coerente e formal. E é exatamente o que propõem
Greimas e Fontanille quando apresentam, em Semiótica das paixões, o esquema patêmico,
mais tarde cristalizado como esquema passional canônico.
O esquema, que por definição é reflexivo, encadeia cinco seqüências das quais
fazem parte a sensibilização e a moralização:
CONSTITUIÇÃO® DISPOSIÇÃO® SENSIBILIZAÇÃO® EMOÇÃO® MORALIZAÇÃO
(contrato) (competência) (ação) (sanção)
Esquema I: Seqüências da sensibilização e da moralização.
1. Ressalte-se nesse momento, que as condições de sensibilização e moralização, enquadrando os dispositivos
passionais, dizem respeito à enunciação passional (a qual dedicaremos maior atenção mais à frente), no entanto,
privilegiando não mais as estruturas modais, e sim a influência dos modos de percepção e de manipulação do
sentido, centradas no narrador.
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A constituição determina o ser do sujeito, o estilo passional, de forma que ele
esteja apto para acolher a sensibilização. É preciso lembrar que, quando falamos em “ser do
sujeito”, estamos pensando na delimitação do percurso modalizado, que preside a instauração
do sujeito da paixão. A disposição corresponde ao estado inicial e resulta da convocação dos
dispositivos modais dinamizados e selecionados pelo uso. Segundo Greimas e Fontanille
(1993, p. 155) “ela aciona uma aspectualização da cadeia modal e um ‘estilo semiótico’
característico do fazer patêmico”. A sensibilização, como vimos, é a transformação tímica por
excelência, a operação pela qual o sujeito discursivo transforma-se em sujeito que sofre, que
sente, que reage, que se emociona. A emoção corresponde à crise passional que prolonga e
atualiza a sensibilização, assinalando no discurso que a junção tímica está cumprida; é o
momento da patemização propriamente dita. A moralização intervém no fim e recai sobre o
conjunto da seqüência mas, como visto anteriormente, mais particularmente no
comportamento observável.
Em conclusão, o que nos fica claro é que a personagem vai adquirindo sua
espessura passional a partir das relações com seus objetos e/ou com os outros sujeitos do
discurso, sendo que as relações estabelecidas entre eles, marcadas por um dinamismo interno,
acabam por construir, na instância do discurso, um arranjo modal sobredeterminado no
percurso do sujeito. No entanto, a subjetividade sugerida pela personagem narrativa vai além
das estruturas sintáxicas do texto. Há um sujeito da enunciação que controla e manipula os
modos de acesso à significação das estruturas modais para o leitor, e é através dele que os
esquemas narrativos convertem-se em discurso.
A enunciação passional: configuração semântica da subjetividade da personagem
narrativa
Vínhamos, até aqui, centrando nossa atenção nas estruturas narrativas do texto,
em termos das relações modais e de suas combinações sintagmáticas. Todavia, nesse
momento, voltamos nossa investigação para a mediação entre essas estruturas e as estruturas
discursivas, quando os esquemas narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação, que os
converte em discurso e nele deixa “marcas”.
Como bem lembra. Barros (2001, p. 72) “atribuiu-se especial importância às
estruturas discursivas por serem consideradas o lugar, por excelência, de desvelamento da
enunciação e de manifestação dos valores sobre os quais está assentado o texto”.
O narrador ocupa uma posição de destaque dentro do discurso narrativo,
agindo como uma espécie de centro organizador, responsável pelos procedimentos de
argumentação e persuasão. Assim, quando pensamos na dimensão passional de um texto,
mesmo nos preocupando com a construção da subjetividade das personagens desse discurso, é
preciso fundamentalmente refletir sobre a projeção da instância da enunciação no discursoenunciado,
sobretudo nas relações argumentativas entre enunciador e enunciatário, entre
narrador e narratário (explicitando os recursos de persuasão para manipular este último), e na
cobertura figurativa dos conteúdos narrativos abstratos. Isso porque a projeção dos simulacros
é a característica central da enunciação passional, particularizando não só as operações
estruturais, mas os próprios sujeitos dessas operações.
Além disso, no funcionamento discursivo, a dimensão passional do enunciado
enriquece-se ainda mais nessa comunicação que se estabelece entre os simulacros do
enunciador/narrador e os do enunciatário/narratário. Os simulacros do enunciador podem ser
percebidos na escolha do tom, do caráter e na forma de percepção específica, que a semiótica
chama de héxis corporal, já que o narrador não apenas declara as informações que compõem
um discurso, mas emite juízos sobre elas (explícita ou implicitamente).
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Como explica Bertrand (2003), o fazer interpretativo seleciona, valoriza a
presença das coisas em função de sua “disposição”, o que faz com que as dimensões
pragmáticas e patêmicas do discurso, identificadas como formalmente autônomas, fiquem
entrelaçadas, tornando-se o motor uma da outra. Lembrando ainda o próprio Greimas e
Fontanille (1993, p. 151), fonte de toda essa reflexão:
[...] o sujeito da enunciação faz variar a luz de uma paixão à outra, explora a
combinatória e a taxionomia, de maneira a fazer surgir os arranjos modais
reconhecidos em dada cultura e a poder acrescentar-lhes, em vista da
moralização, as axiologias próprias deste ou daquele parceiro do sujeito
apaixonado.
Em resumo, o que queremos dizer é que não é a imagem explicitada no
enunciado que responde pela impressão de “vida” dos seres fictícios no geral, mas aquilo que
se pode apreender através de tal enunciado. Ou seja, são as marcas da enunciação no discurso,
bem como a maneira pela qual este se constrói e se organiza que produzem os efeitos de
sentido suscitados no enunciatário (o leitor). É a partir daí que somos capazes, não só de
compreender, mas de sentir o interior das personagens de um enunciado, suas paixões, seus
“estados de alma”.
Nesse sentido, a análise das paixões do enunciador/narrador,
conseqüentemente das personagens que cria, nada tem a ver com o psicologismo que, muitas
vezes, infiltra-se nos estudos dessa natureza. Como explica Fiorin (2004, p. 120, grifo nosso),
“trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma subjetividade que seria a
fonte de onde emanaria o enunciado, um psiquismo responsável pelo discurso”.
Aliada às configurações passionais, a discursivização da paixão fundamentase,
portanto, essencialmente na projeção e na operacionalização dos simulacros. Desse modo,
a dimensão passional da enunciação manifesta-se por um modo de presença, na maioria das
vezes, indireto e encoberto2, no próprio interior dos esquemas da ação, sob a forma do
“vivenciar”.
A personagem narrativa, como temos visto ao longo do que foi exposto, vai
tomando forma e espessura semântica gradativamente, através das combinações e articulações
feitas no nível discursivo. O enunciador, enquanto centro gerenciador de todo o discurso, vai
dirigindo o olhar e o entendimento do leitor pela maneira como disponibiliza as informações.
Vejamos, então, para melhor compreender toda essa teoria, como é que se dá a configuração
da subjetividade das paixões, na personagem de Fernando Seixas, antagonista do romance
Senhora, de José de Alencar.
A análise: configuração das paixões
Privilegiaremos em nossa análise dois focos de investigação, um de ordem
sintáxica e o outro de ordem semântica, na tentativa de melhor ilustrar o que tentamos expor
acima. Antes disso, porém, paremos para pensar na organização diegética do romance em
questão: Aurélia, uma moça rica, decide comprar um marido, ou melhor, resolve comprar
Fernando Seixas como marido. Junto a seu tio Lemos, arquiteta todo um esquema para que
seus planos possam concretizar-se. Na noite de núpcias descobrimos, assim como o próprio
noivo, Fernando, que tudo não passava de um plano de vingança, resultado da decepção
2. Mesmo pensando nos discursos em que a emissão de valores e juízos é bastante explícita, quando nos
voltamos ao discurso da ação, podemos verificar que a manipulação, na maior parte das vezes, é feita de forma
implícita e disfarçada, sugerindo uma falsa autonomia às personagens.
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causada, no passado, por este último à heroína de nossa história. Estabelecida a verdade dessa
união que os obrigava a uma convivência difícil e exasperada, as figuras centrais dessa
história, Aurélia e Fernando, passam a viver conflitos internos, que os dilacera entre a razão e
a paixão. No final Aurélia rende-se a seu amor por Fernando e todos terminam felizes para
sempre, como não poderia deixar de ser nos romances da época do Romantismo.
Mesmo tendo resumido drasticamente todo o universo diegético do romance
em questão, podemos apreender os principais núcleos operativos que sustentam e dão base à
narrativa. Em termos estruturais, a narrativa em questão pode ser assim resumida:
1. ESTADO 1 (situação Inicial): Aurélia, por desejo da mãe, procura um noivo e ela e
Fernando apaixonam-se. Ou seja, o sujeito operador, persuadido pelo destinatário
(manipulador), sai em busca do objeto modalizado pelo dever-fazer e passa a um estado de
conjunção com seu objeto-valor.
2. TRANSFORMAÇÃO 1 (acontecimento perturbador): Fernando rompe com Aurélia para
firmar compromisso com uma moça rica. Ou seja, o sujeito do fazer (S1) transforma o
estado conjuntivo do sujeito de estado (S2) em um estado de disjunção com o objeto valor.
3. INTENSIFICAÇÃO (agravamento): Aurélia descobre que foi trocada por dinheiro: S2
continua em disjunção com seu objeto-valor.
4. TRANSFORMAÇÃO 2 (luta): Aurélia recebe uma herança e, rica, compra Fernando
como marido para vingar seu amor escarnecido. O sujeito operador recebe a competência
necessária para realizar a performance que o levará a ficar conjunto de seu objeto-valor.
5. ESTADO 2 (situação final): Aurélia e Fernando, após muitos desentendimentos, rendem-se
ao amor que sentem um pelo outro. A sanção concretiza-se e o sujeito passa a um estado
conjuntivo com seu objeto-valor.
Vejamos agora esse mesmo resumo estrutural pensado a partir do esquema
passional canônico, proposto por Greimas e Fontanille. Lembremos que a primeira etapa, a da
constituição, refere-se à fundamentação do ser do sujeito do estado; a segunda, a da
disposição, ao estado inicial e à convocação dos dispositivos modais; a terceira, a da
sensibilização, assinala a categoria tímica na qual o sujeito discursivo torna-se sujeito que
sofre3; a quarta etapa, a da emoção, corresponde ao momento da tensão, da patemização
propriamente dita, que atualiza e prolonga a etapa anterior; e por último a etapa da
moralização, responsável pelo julgamento axiológico da emoção. Assim, temos:
1. ESTADO 1 (constituição): Aurélia é uma moça simples, honesta, carinhosa,
abnegada e apaixonada. Enquanto Fernando é um moço pobre, mas ambicioso,
refinado e prático (a praticidade, aqui, pensada em termos de racionalidade, ser
racional).
2. ESTADO 2 (disposição): Aurélia e Fernando apaixonam-se. Desse modo, levando em
conta o revestimento discursivo, Aurélia enquanto sujeito está em uma relação conjunta
com seu objeto-valor, o amor idealizado; enquanto Fernando está disjunto de seu objetovalor,
porque embora apaixonado também, a moça em questão é pobre, não
correspondendo positivamente à sua busca.
3. INTENSIFICAÇÃO (sensibilização): Partindo do estado descrito acima, fica fácil
percebermos o embate entre a categoria tímica básica do discurso: PASSIONAL X
RACIONAL – figurativizada na oposição AMOR X DINHEIRO.
3 Para a semiótica o termo sofrer está despido de qualquer investimento semântico depreciativo, significando
apenas “aquele que é afetado por determinada situação, ação ou realidade”.
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4. ESTADO 3 (emoção): Aurélia, enlouquecida de paixão, decide comprar seu casamento
com Fernando, para vingar-se. Fernando, apaixonado e humilhado, decide resignar-se a seu
martírio, em nome de sua honra.
5. ESTADO 4 (moralização): Aurélia confessa seu amor a Fernando, que declara à “esposa”
que o dinheiro dela os separaria para sempre, provando a ela, portanto, a integridade de seu
caráter.
Nesse segundo esquema, percebemos o crescente desenvolvimento da
subjetividade das personagens, que tem sua fonte na própria constituição do ser, ou seja, a
unicidade da personagem está calcada nos valores do ser que ela assume e que determinam
suas ações. Para compreender melhor como isso acontece, passemos à análise individual da
personagem escolhida, Fernando Seixas:
É um moço que ainda não chegou aos trinta anos. Tem uma
fisionomia tão nobre, quanto sedutora; belos traços, tez finíssima, cuja
alvura realça a macia barba castanha. Os olhos rasgados e luminosos, às
vezes coalham-se em um enlevo de ternura, mas natural e extreme de
afetação, que há de torná-los irresistíveis quando o amor os acender.
(ALENCAR, 1974, p. 28)
• Análise sintáxica
Como visto, as paixões que afetam uma dada personagem, ou seja, seus
conflitos interiores, sua subjetividade e expressividade, aparecem no discurso como efeitos de
sentido provenientes da configuração e combinação das estruturas modais que "movimentam"
os valores-base da narrativa. Todo o conflito (que envolve tensão e foria), o fazer
interpretativo (subjacente ao jogo entre ser x parecer) e a "verdade" (impressão de vida real,
vida própria) que configuram a subjetividade do ser fictício estão calcados nesses valores
fundamentais, que não só regem, mas dão sentido a todos os elementos da estrutura narrativa.
Para a análise do processo de construção da subjetividade de Fernando Seixas,
privilegiaremos dois momentos do enredo: um, referente ao momento em que Fernando se vê
dividido entre seu amor por Aurélia e a conveniência de um compromisso com Adelaide
Amaral; o outro, referente ao momento em que Fernando toma consciência da verdadeira
razão que o uniu a Aurélia novamente. A nosso ver, são exatamente nesses dois enunciados de
estado do percurso narrativo de Seixas, que podemos identificar os estados mais conflitantes
das organizações modais que o configuram, enriquecendo e complexificando aquilo que
chamamos de "estados de alma" da personagem. Além disso, parece ser nesses dois
momentos que contendem com maior tensão os valores que estão na base do relato de
Senhora: /passional/ x /racional/, /amor/ x /dinheiro/.
É importante ressaltar que, para a análise das paixões, o que verdadeiramente
nos interessa não é a transformação em si, a passagem de um estado a outro, e sim o próprio
estado. Em outras palavras, o que de fato importa é a relação juntiva entre o sujeito do fazer e
seu objeto-valor. Vejamos:
ENUNCIADO 1 (PN1 ® PN2 ): Embora goste realmente de Aurélia, Fernando,
ciente da vida que levaria ao lado dela e seduzido pelas vantagens do casamento com uma
moça rica4, desfaz seu compromisso com Aurélia para assumir o noivado com Adelaide
Amaral. Nesse sentido, Fernando vê-se disjunto da mulher que realmente ama, mas conjunto
de seu objeto valor, a riqueza, o dinheiro.
4. O destaque dado visa acentuar o que de fato interessa para análise, ou seja, o estado da personagem estudada.
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ENUNCIADO 2 (PN2 ® PN3): Apesar de ter-se submetido a uma nova
proposta de casamento de conveniência, Fernando casa-se com Aurélia, apaixonado, disposto
a lhe oferecer um amor sincero e verdadeiro. Mas consciente da verdadeira razão que os uniu,
o ressentimento da moça, vê-se conjunto a mulher que ama e a vida que sempre almejara, no
entanto, disjunto da possibilidade de viver essa vida e esse amor.
Feita a descrição dos enunciados, somos capazes agora de identificar os dados
que compõem o eixo paradigmático e o sintagmático, responsáveis pelo processo de
construção da subjetividade da personagem narrativa, lembrando que o primeiro diz respeito à
modalização do ser, que atribui ao sujeito o modo de existência, e o segundo, à ligação do
sujeito com seu objeto-valor, que modaliza o percurso narrativo da personagem e caracteriza
seus estados passionais.
Nesse sentido, dos enunciados citados acima podemos reconhecer o modo de
existência da personagem Fernando Seixas, estabelecido a partir dos valores que ele assume e
que, como vimos, determinam suas ações. Seixas é vaidoso, esperto, ambicioso, resoluto,
brioso e, acima de tudo isso, “racional”. Observemos que tanto no enunciado 1, quanto no
enunciado 2, bem como em todo o percurso da personagem, no romance Senhora, a
"racionalidade" configurada age como uma modalidade dominante, pondo todas as outras sob
sua gerência e dependência.
Definidos, portanto, os dados do eixo paradigmático, aquele que indica as
características do estilo passional do sujeito, seu "caráter", reflitamos um pouco acerca do
significado do vocábulo razão5, para estarmos aptos a compreender tudo que se representa ao
redor dos estados do sujeito, já que é a racionalidade o aspecto dominante na constituição do
"ser" de Fernando:
RAZÃO: [Do lat. ratione.] s.f. 1. Faculdade que tem o ser humano de
avaliar, julgar, ponderar idéias universais; raciocínio, juízo. 2. Faculdade
que tem o homem de estabelecer relações lógicas, de conhecer, de
compreender, de raciocinar; raciocínio, inteligência. 3. Bom senso; juízo;
prudência [...].
Voltando, mais uma vez, aos dois enunciados escolhidos para essa análise,
constataremos que em nenhuma das ocasiões, Fernando deixou-se "comover" pelo
sentimento, ao contrário, o que temos é um sujeito de estado que não se deixa levar pelo
emocional ao tomar suas posições. No entanto, vale lembrar que em nenhum momento da
narrativa, seja no rompimento com Aurélia, seja em sua nova união com ela, o discurso deixa
de passar ao leitor efeitos de sentido passionais. Se em um primeiro momento o leitor tende a
julgá-lo e condená-lo, em outro, sofre e torce por ele6. Mas sintaxicamente falando, o que nos
interessa nesse momento, é a verificação de que a racionalidade de Seixas não permite o
desenvolvimento de um excesso em sua estrutura modal. As "emoções" causadas pelo seu
"caráter" vaidoso, esperto e ambicioso acabam sendo neutralizadas pela característica
dominante, a da racionalidade. Além disso, não podemos esquecer que, no nível das estruturas
semionarrativas, o espaço modal articula o espaço fórico, colocando os valores fundamentais
em movimento e em jogo.
5. A característica dominante no "caráter" de Fernando Seixas é, sem dúvida, a racionalidade, que remete à
definição da razão. Optamos pelo estudo pormenorizado desse termo, pela maior riqueza e clareza de definições
que o dicionário propõe e que respondem mais claramente às necessidades de nosso estudo.
6. Essa questão, bem como sua explicação, será melhor desenvolvida na etapa seguinte, a da análise semântica,
por dizer respeito ao próprio modo de enunciação.
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A personagem configura-se, portanto, em uma esfera de circulação de ordem
tensiva, em que as modulações geradas pela intensidade do discurso, que ora recai para um
lado do eixo, ora para outro, estabelecem a relação básica entre sujeito e ambiente, garantindo
a "emoção" da personagem e do leitor. Atentemo-nos à afirmação de Greimas e Fontanille
(1993, p. 36-7):
De outro ponto de vista, na ausência de manifestação direta ou indireta
das modalizações, a observação das escolhas aspectuais dominantes permite
postular a existência desta ou daquela modulação dominante no nível
profundo, que teria sido convocada prioritariamente para a discursivização;
suposta essa modulação como predominante, pode-se então suspeitar e
prever que a organização modal, se houver uma em imanência, deveria estar
afetada ou orientada. Assim, a hesitação, que remeteria a uma modulação ao
mesmo tempo de abertura e suspensiva, permitiria prever um avatar
complexo do querer (querer e não-querer) e incitaria a buscar eventuais
traços específicos na manifestação discursiva. Igualmente, a agitação, como
forma aspectual superficial, trai um modo particular de modulação
suspensiva: o que proporciona a pura oscilação das tensões, o equilíbrio
insolúvel entre fusão e cisão: tal equilíbrio instável pode ser interpretado
como a coexistência de duas modulações cujos efeitos se anulam: por
exemplo, uma modulação de abertura e uma modulação de encerramento,
ou ainda, uma modulação cursiva e uma modulação pontualizante; só então
é que seríamos convidados a realizar a hipótese, no nível narrativo, de
confrontação modal, seja entre querer e saber, seja entre poder e dever;
tanto num caso como no outro, cercar-se-iam assim os contornos da
inquietude e da angústia.
Como bem explica o teórico francês, há casos (como o da nossa análise) em
que, mais do que as modalizações em si, são as escolhas aspectuais e a tensividade fórica que
fundam a dimensão passional da personagem. A confrontação modal dificulta a identificação
do modo de organização, convocando a manifestação discursiva muito mais do que nos casos
de uma manifestação direta das modalizações. Nesses casos, o que realmente importa para a
investigação do processo de construção da subjetividade são as modulações do percurso.
Reflitamos sobre o trecho que segue:
De um homem assim organizado com a molécula do luxo e do
galanteio, não se podia esperar o sacrifício enorme de renunciar à vida
elegante. Excedia isso a suas forças; era uma aberração de sua natureza.
Mais fácil fora renunciar à vida na flor da mocidade, quando tudo lhe sorria,
do que sujeitar-se a esse suicídio moral, a esse aniquilamento do eu.
Quando Seixas convenceu-se que não podia casar com Aurélia, revoltou-se
contra si próprio. Não se perdoava a imprudência de apaixonar-se por uma
moça pobre e quase órfã, imprudência a que pusera remate o pedido de
casamento. O rompimento deste enlace irrefletido era para ele uma coisa
irremediável, fatal; mas o seu procedimento o indignava. (ALENCAR,
1974, p. 88).
Observemos que a teoria proposta por Greimas e Fontanille, citada acima,
descreve com exatidão a configuração das paixões que caracterizam a personagem. O
confronto entre querer e não-querer, entre querer e dever, não-poder e dever, caracterizado
pela tensividade fórica dos valores /passional/ x /racional/ e /amor/ x /dinheiro/, garante os
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efeitos passionais da angústia e da inquietação. Além disso, as definições dicionarizadas
desses lexemas afetivos permitem comprovar a afirmação7.
ANGÚSTIA: s.f. [...] 2. estado de ansiedade, inquietude; sofrimento,
tormento 2.1 PSIC estado de excitação emocional determinado pela
percepção de sinais, por antecipações mais ou menos concretas e realistas,
ou por representações gerais de perigo físico ou de ameaça psíquica 2.2
PSIC medo sem objeto determinado 2.3 PSICN reação do organismo a uma
excitação impossível de ser assimilada, desencadeada pelo bloqueio da
consecução da finalidade de uma pulsão ou pela ameaça de perda de um
objeto investido por uma pulsão [...]
INQUIETAÇÃO: s.f. 1. estado de inquieto, do que se acha em
agitação 2. estado de preocupação; desassossego que impede o repouso, a
paz, a tranqüilidade; nervosismo 3. ato de preocupar-se com o que está além
dos seus conhecimentos [...]
Estender a análise ao léxico passional permite-nos compreender com clareza o
que se "acumula" em torno da relação juntiva, ou seja, permite-nos identificar e descrever o
estado do sujeito operador, conseqüentemente os "estados de alma" da personagem, além de
evidenciar a perplexidade da configuração modal de seu percurso. Assim, o que chega ao
leitor como sentimento e vida, é o resultado de uma estrutura modal, mais do que isso, o
resultado de uma configuração sintáxica (significante) que ganha sentido no produto
semântico (significado).
Voltando nossa atenção para o ENUNCIADO 2, referente à nova união entre
Fernando e Aurélia, veremos que acontece o mesmo. Assim como no enunciado anterior,
trata-se da formação de uma configuração modal conflituosa e contrastiva, de que resultam os
mesmos "sentimentos" acima descritos: angústia, agitação e inquietude, que colocam o sujeito
operador em um estado de crise, em um estado suscetível e abalável, mas em cujo embate
domina a razão.
Vimos, no entanto, que mais do que as modalizações do percurso, o que
caracteriza as paixões da personagem são as modulações da estrutura modal. Assim, em uma
posição ondulante entre os valores que movimentam a narrativa, principalmente nesse
segundo enunciado, a personagem se vê em constante conflito entre o querer e o dever,
fazendo variar o valor investido no objeto, que passa de desejável, a temível e impossível,
dando conseqüentemente margem a outras figuras passionais, como o desejo, o ciúme e a
paixão8.
O sujeito, conforme seja o objeto modalizado em "desejável", "atraente" ou
"impossível", aparece de fato como uma seqüência de identidades modais diferentes. E esses
diferentes modos de existência do actante narrativo surgem no interior das configurações
passionais, enriquecendo e complexificando a "alma" do ser fictício.
É importante observar que, em nenhum momento, ao falar sobre Fernando e
seu comportamento, o narrador menciona explicitamente as características que lhe são
atribuídas: a personagem vai adquirindo sua densidade semântica e passional apenas nas
relações com seus objetos e/ou com os outros sujeitos que compõem a narrativa, o que faz
recordar a metáfora usada por Greimas e Fontanille (1993), ao dizer que as paixões como um
"perfume" exalado por todos os poros do discurso.
7. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
8. No sentido mesmo de um sentimento arrebatador, tal como consagrado pela cultura, e não no sentido estrutural
adotado pela semiótica.
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O "ser" da personagem narrativa, portanto, é um efeito de discurso, e seja por
pressuposição, catálise, ou por configurações culturais, a "vida" da personagem, sua
existência (modal, passional) e sua própria competência para agir constroem-se, sempre, a
partir da configuração e manifestação desse discurso.
O que vimos até aqui explica a impressão de vida que a personagem transmite
ao leitor. Contudo, a dimensão passional que a envolve não se limita a seu estado interior, vai
além, pois seduz o leitor, fazendo com que este não só se identifique com certos sentimentos,
mas seja capaz, ele mesmo, de sentir e experimentar os efeitos passionais. Essa sensibilização
passional que afeta o leitor provém do próprio discurso, das estratégias discursivas e textuais
diretamente relacionadas ao sujeito da enunciação, que acaba por criar um "percurso
modalizado", em que se envolve o enunciatário.
Passemos, portanto, a uma segunda análise, agora de ordem semântica, para
identificar e compreender os modos de presença do enunciador, bem como as formas de
manipulação que ele engendra no interior do discurso, verificando por fim o efeito de sua
narração no processo de construção da subjetividade da personagem analisada.
• Análise semântica
Para estudar o enunciado narrativo, podemos compará-lo a uma engrenagem,
em que o enunciador é o responsável por toda estrutura construída, enquanto o enunciatário
fica responsável pela força que coloca essa estrutura em movimento. Ou seja, mesmo sendo o
primeiro o responsável por toda a estrutura narrativa, com seus cálculos de sentido e seus
efeitos, é necessariamente o segundo que identifica e conecta os sentidos desse discurso.
Atentemos, porém, que embora seja a "força" a responsável pela movimentação da
"engrenagem", não é ela que define o movimento e sim a estrutura pré-determinada. Falamos
aqui do modo de persuasão do enunciador, de sua manipulação sobre o "entendimento" do
enunciatário, que às vezes de tão inerente à própria estrutura narrativa, passa desapercebida,
sendo ela, no entanto, a responsável pela disposição e direcionamento da apreensão do
sentido, por parte do leitor.
Continuemos a pensar nessa engrenagem, para melhor compreender o processo
construtivo da subjetividade da personagem Fernando Seixas. Quando pensamos na análise
feita há pouco, a de ordem sintáxica, constatamos que as rodas da engrenagem já foram
construídas, faltando porém os "dentes", que ligam umas às outras, para que elas possam
movimentar-se, ou seja, produzir sentido. E é exatamente na constituição desses "dentes" que
nos deteremos a partir de agora.
Reflitamos acerca dos seguintes dados: o jogo entre passional e racional,
como dito anteriormente, está na base da construção da narrativa, quando o enunciador parece
euforizar o primeiro elemento, disforizando o segundo. Vimos também que as ações de
Fernando, em todo seu percurso narrativo, são dirigidas pela razão e não pela emoção, o que o
coloca no pólo negativo da oposição, ou seja, no pólo disforizado. No entanto, embora o
julgue, o leitor não chega a condená-lo, ao contrário, afetado pelo discurso, compreende-o e
acaba sofrendo e torcendo por ele.
Esse fato, um tanto quanto paradoxal, não passa de um recurso de persuasão
do discurso passional, em que o enunciador quer e espera que o enunciatário torça pela união
dos apaixonados, que sofra e se angustie como as personagens, buscando incessantemente
pelo final feliz, pelo fim do sofrimento, o que certamente não ocorreria, caso o leitor
condenasse o comportamento de Fernando. Desse modo, de uma forma ou de outra, o
narrador sempre justifica as atitudes disfóricas da personagem, seja colocando-o como o
produto de uma sociedade corrompida, portanto, na posição de vítima, seja "sugerindo" a
inocência do pensamento da personagem. Ao mesmo tempo em que o coloca como vilão,
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justifica suas ações, e a personagem passa então à posição de vítima. Contudo, o
conhecimento da verdadeira "essência" de Seixas fica limitado aos espectadores dessa
história, já que, para Aurélia, Fernando é visto sim como um homem ambicioso, interesseiro e
sem sentimentos. Esse mal-entendido garante ao enunciador a adesão afetiva de seu
enunciatário em relação a Seixas, que espera, aflito, pela dissolução do mal-entendido.
Outro ponto significativo a ser explorado, nesse sentido, diz respeito à sutil
ironia usada pelo narrador na maioria dos trechos selecionados acima: observe que o discurso
irônico, como explica Bertrand (2004, p. 70), “baseia-se na tensão entre uma significação
manifesta, cujo modo de presença é realizado, mas cujo grau de assunção é fraco, e uma
significação induzida, cujo modo de presença virtual impõe inversamente uma assunção
enunciativa forte”. Ou seja, o tom irônico adotado pelo enunciador ao se referir a aspectos do
caráter de Fernando, acrescenta ao entendimento do leitor uma orientação apreciativa do
discurso que vai muito além do sentido conscientemente apreendido. Dessa forma, o sentido
irônico estabelece um distanciamento entre o enunciador e a personagem, garantindo maior
autonomia e verossimilhança às características apreendidas, que passam a “funcionar” como
“perfume” (para lembrar Greimas e Fontanille) da própria personagem e não do discurso
construído.
É importante ressaltar, ainda, que as considerações e ressalvas feitas pelo
narrador vêm entremeadas à narração dos fatos, como se fossem apenas maiores detalhes
desses últimos, e dessa maneira, o enunciatário apreende tais sentidos sem perceber. Nesse
sentido, quando se dá conta, o leitor já tem uma imagem patêmica da personagem, sem
conseguir explicar direito como nasceram tais sentimentos, mais ou menos como acontece na
vida real, quando gostamos ou desgostamos das pessoas muitas vezes sem saber o porquê,
donde vem a ilusão de “vida real” dos seres fictícios.
Outro fator também importante e que deve ser levado em consideração, quando
pensamos na enunciação passional, tem a ver com o uso estratégico do tom da narração, que
mencionamos acima. Por exemplo, ao referir-se aos reais motivos das atitudes de Fernando, o
narrador parece assumir um tom de "justiça seja feita":
Este pânico da pobreza apoderou-se de Seixas, e depois de trabalhá-lo
o dia inteiro, levou-o na manhã seguinte à casa do Lemos, onde efetuou-se a
transação, que ele próprio havia qualificado, não pensando que tão cedo
havia de tornar-se réu dessa indignidade.
A uma justiça, porém, tem ele direito. Se previsse os transes por que ia
passar durante a realização do mercado, e especialmente no ato de assinar o
recibo, talvez se arrependesse. Mas arrastado de concessão em concessão, a
dignidade abatida já não podia reagir. (ALENCAR, 1974, p. 51).
Seixas não a contrariava. Conservando-se em casa ao alcance da voz e
ao aceno da mulher, poupava-lhe o desgosto de o ver.
Entrava isso na resolução que havia tomado, mas não era sem grande
esforço e luta acérrima, que obtinha de si permanecer ao lado dessa mulher
para a qual se havia tornado, ele o sentia, verdadeiro flagelo.
Uma razão poderosa o retinha, devemos supor, e tão forte que subjugava a
todo o instante a revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia de
desdém da qual era alvo. (ALENCAR, 1974, p. 154).
Haverá quem acuse Seixas, de ter, no momento em que a mulher lhe
fazia confissão de seu amor e lhe oferecia um perdão espontâneo, proferido
aquela palavra que envolvia um insulto cruel.
Ele próprio, que pouco antes não achava uma expressão bastante eloqüente
para sua revolta, ali estava agora arrependido, com os olhos compassivos,
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fitos na mulher, que abria uma janela, e encostava-se à sacada para banharse
na brisa e na treva da noite.
[...]
Até o momento da revelação afrontosa, seu procedimento podia ser
repreensível ante uma moral severa, mas não ia além de um casamento de
conveniência, coisa banal e freqüente, que tinha não somente a tolerância,
como a consagração da sociedade.
Desde porém que esse casamento de conveniência fora convertido em
um mercado positivo, ele julgava uma infâmia para si, envolver sua alma e
afundá-la nessa transação torpe.
[...]
Foi nessa disposição de espírito que penetrou-o, como lâmina de um
estilete, a frase comprei-o bem caro, que o lábio de Aurélia vibrava com
viva entonação. Não ouviu mais nada; fez-se em sua consciência um imenso
deserto que enchia a só idéia do mercado aviltante.
O pensamento que o dominara antes da valsa, e que um enlevo
passageiro havia sopitado, ressurgiu.
Ele refugiou-se no sarcasmo, que desde o casamento era um derivativo
às sublevações de sua cólera. Sem intenção de injúria, somente como acerba
ironia, soltou a palavra de que se arrependera. (ALENCAR, 1974, p. 186-8).
Com esse tom, colocado de forma sutil no discurso, o narrador impede a
condenação da personagem por parte do narratário, é como se dissesse: "antes de o julgarmos,
conheçamos os motivos que o levaram a agir desse modo, para que não sejamos precipitados
ou injustos", garantindo assim a adesão afetiva do leitor.
Aproveitando ainda os trechos selecionados, podemos também nos reportar ao
uso da figuratividade que dá concretude às sensações. Notemos que expressões como
“dignidade abatida”, “luta acérrima”, “revolta de seus brios, magoados pela aversão cheia
de desdém da qual era alvo”, “olhos compassivos”, “banhar-se na brisa e na treva da
noite”, “disposição de espírito que penetrou-o como lâmina de um estilete”, “fez-se em sua
consciência um imenso deserto” permitem ao leitor, a partir de uma ordem sensorial, não
apenas saber mas apreender com maior sensibilidade as sensações da personagem,
compreendendo conseqüentemente o seu íntimo, seus estados de alma. A essa percepção,
através dos sentidos, a semiótica chama “estesia”. Se voltarmos aos exemplos citados acima,
perceberemos que as “figuras das sensações”, usadas pelo enunciador, fazem com que os
sentidos se aliem na apreensão do sentir, permitindo que o leitor, convocado pela enunciação,
penetre no íntimo da personagem, partilhando seus “estados de alma”. Assim, como explica
Ana Claudia de Oliveira (1995, p. 234), “o enunciatário, desse modo, participa do desenrolar
das ações, reage às tensões, julga-as e, apaixonadamente, responde aos efeitos discursivos
mesmo que seu fazer nada possa transformar”.
Quanto ao modo de narrar, o trabalho com as focalizações também pode ser
encarado como uma estratégia discursiva na composição da sensibilidade da personagem.
Saindo do externo para explorar e expor o interior da personagem, o seu modo de ver as
situações, o narrador ilusoriamente dá vida própria a Fernando, que não é mais somente
aquele que age, mas aquele que sente e "percebe" o mundo em que vive. Nesse sentido, os
elementos emocionais e afetivos do discurso não são expressos no conteúdo em si, mas sim
nas formas da enunciação e, nesse caso, no uso do discurso indireto. O narrador, ao utilizar o
discurso indireto, caracteriza a configuração subjetiva da personagem enquanto expressão,
razão pela qual esse tipo de discurso tem uma tendência analítica. Além disso, é na alternância
das “vozes” que se constrói a produtividade semântica do texto. Mesmo não abdicando do seu
estatuto de sujeito da enunciação, o enunciador, no que diz respeito à produção dos efeitos de
sentido, acaba por jogar sobre a personagem a responsabilidade daquilo que é dito e/ou
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pensado, já que a “voz da personagem” acaba por penetrar a estrutura formal do discurso do
narrador, imprimindo ao relato um tom de objetividade. Ou seja, com o uso desse tipo de
discurso, o narrador, de forma mais ou menos difusa, continua a manipular, selecionar,
resumir e interpretar a fala e/ou os pensamentos das personagens. Contudo, aliado a um tipo
de focalização (onisciente ou interna), que dá autonomia à personagem, faz isso de forma
implícita, levando seu enunciatário a crer na “objetividade” e “transparência” de sua narração.
Pensando ainda no modo de presença do narrador, chamamos a atenção para
uma estratégia bastante discreta, mas poderosa e eficaz. Trata-se da emissão de juízos que o
narrador faz sobre o que narra, revelada no uso de certos adjetivos, substantivos, verbos, que
funcionam como uma cobertura figurativa passional. Esses elementos são distribuídos no
discurso com se fossem parte inerente à própria história que é contada, sendo, no entanto, de
responsabilidade do “eu” que narra. E essa sua percepção, colocada no discurso, acaba por
definir a imagem patêmica da personagem criada pelo leitor. Além disso tudo, acrescentando
à personagem suas próprias impressões e interpretações, o narrador acaba por enriquecer o
universo de significação dos seres fictícios. Lendo atentamente os trechos abaixo, percebemos
como isso acontece:
Seixas, emérito conhecedor da Rua do Ouvidor, começou a
especificar alguns dos contrastes de que se recordava; abstemo-nos porém
de reproduzir suas observações, que ressentiam-se de singular
mordacidade.
Esse tom cáustico não era natural ao mancebo, cuja índole benévola e
afável, nunca passava de uns toques de fria ironia. Ele próprio já notara em
si essa alteração de seu caráter, e achava um sainete especial em saturar-se
do fel que tinha no coração. (ALENCAR, 1974, p. 120 - grifos nossos)
Seixas, como homem de sociedade que era, conhecia a natureza de
tradição apenas, ou quando muito de vista. As árvores, as flores, as
perspectivas, eram para ele ornatos, que se confundiam com tapetes,
cortinas, trastes dourados e toda a casta de adereços inventados pelo luxo.
À força de viverem em um mundo de convenção, esses homens de
sociedade tornaram-se artificiais. A natureza para eles não é a verdadeira,
mas essa fictícia, que o hábito lhes embutiu, e que alguns trazem do berço,
pois aí os espera a moda para fazer neles presa, transformando-lhes a mãe,
em uma simples produtora de filhos.
Freqüentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e
brisas, de que tirava imagens para exprimir a graça da mulher e as emoções
do amor. Pura imitação: como em geral os poetas da civilização, ele não
recebia da realidade essas impressões, e sim de uma variada leitura.
Originais somente são aqueles engenhos que se infundem na natureza,
musa inexaurível porque é divina. Para isso é preciso, ou nascer nas idades
primitivas, ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.
Naquele momento, porém, assistindo ao romper do dia, ali no meio do
jardim, Seixas sentia que [...] (ALENCAR, 1974, p. 110-11 - grifos nossos).
Os trechos mostram o modo de ver do narrador, que embute no discurso suas
próprias impressões e julgamentos acerca da personagem que descreve. Observemos que no
segundo exemplo essa intrusão é bastante explícita, o narrador pausa seu relato para incluir
todo um pensamento. Ele vai muito além do relato, exprimindo seu modo de ver e pensar o
caráter de homens como Seixas, emitindo mesmo uma crítica pesada à sociedade que, para
ele, ao que parece, corrompe toda a sensibilidade humana. Não há dúvida de que, nesse
trecho, o enunciador descarrega sua indignação com tal fluência, acentuando a oposição que
vê entre o “homem natural” e a sociedade (posição bastante peculiar ao Romantismo).
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Afetado pela situação que ele próprio constrói, esse narrador ultrapassa os limites de sua
narração, inserindo no discurso um aspecto avaliatório.
Além disso, nessa dialética de vínculo e oposição ao meio, a consciência que
projeta as personagens toma a forma da ironia, caracterizando um modo ambíguo de propor e,
ao mesmo tempo, transcender o ponto de vista “da personagem”. Longe de serem inoperantes,
portanto, essas características e julgamentos acrescentados pelo narrador, influem o modo de
ver do enunciatário, servindo como dispositivos passionais, que multiplicam e propagam os
arranjos dos simulacros, além de mostrar um narrador afetado e também apaixonado. Em
resumo, o que temos tentado mostrar é que, além da modalização narrativa, há no discurso
uma “sensibilização passional”, construída e dirigida pelo próprio enunciador. Assim, as paixões que emanam das estruturas discursivas, projetam-se sobre os sujeitos, sobre os objetos e até mesmo sobre suas funções, dando "vida e sensibilidade” a todo o discurso.
É importante ressaltar, porém, que a sensibilização passional do discurso e a
modalização narrativa não podem ser separadas9, porque são co-ocorrentes e é impossível compreender uma sem a outra. Além disso, como chamam a atenção Greimas e Fontanille (1993), o conceito de articulação é a primeira condição para falar do sentido enquanto significação.
Quanto à análise do processo construtivo da subjetividade de Fernando Seixas,
podemos concluir finalmente que as modulações passionais que lhe garantem a
expressividade ultrapassam as simples combinações de conteúdos modais, organizados
estruturalmente. Essas modulações, manifestadas por efeitos de sentido, parecem provir de arranjos estruturais de outro tipo, explicados somente pela organização do próprio discurso,como pudemos constatar na análise apresentada.

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