terça-feira, 29 de junho de 2010

Fundamentos sobre a construção da personagem Hermógenes em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa

Carlos Alberto Rodrigues Pereira


O texto a seguir tem a finalidade de analisar alguns aspectos referentes à construção da narrativa em Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ressaltando o caráter dialógico desse processo narrativo e sua influência na elaboração do enredo, além de examinar a representatividade do antagonista Hermógenes no desencadeamento dos conflitos da história, segundo a visão do narrador Riobaldo.

1. Apresentação

Tendo diante de si um interlocutor que, numa certa medida, pode intervir no processo narrativo, sobretudo por meio de indagações, Riobaldo não é, portanto, um narrador a mais: até certo ponto, também a sua narração está sujeita a mudanças de direção, tanto quanto a sua trajetória de vida esteve. Afinal, é esse interlocutor o primeiro a se referir, no discurso, ao Urutu-Branco, cognome adotado por Riobaldo no período em que campeou à frente dos jagunços, antes conduzidos por Joca Ramiro. “Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o ‘Urutu-Branco’? Ah, não me fale. Ah, esse...tristonho, que foi - que era um pobre menino do destino...” (GS:V, p.33). Note-se que a pergunta sobre o famigerado Urutu-Branco, chefe de jagunços a quem coube comandar a vitória sobre Hermógenes, é feita ao narrador pelo ouvinte do seu relato, abrindo-se, dessa maneira, a hipótese de esse receptor não desconhecer completamente o enredo a ser percorrido. Nesse caso, se o destinatário a quem o narrador se dirige, solicitando-lhe opiniões que transitam entre assentimento para suas certezas e elucidação para suas dúvidas, já possui alguma informação prévia sobre aquele homem, cuja história resvala o mito, parece-nos cabível inferir que esse indivíduo com quem Riobaldo confabula exerce uma função ativa, em certa medida, na construção do discurso.

Com efeito, o caráter intersubjetivo próprio do ato de narrar, em Grande Sertão: Veredas, constitui um fator preponderante nas relações que se estabelecem entre as estratégias configuradas no enunciado e a natureza dialógica que caracteriza a construção da narrativa, sobretudo porque essa natureza “enfatiza o alocutário; refere-se abundantemente à situação alocutiva; joga com vários quadros de referência simultaneamente; caracteriza-se pela presença de elementos metalingüísticos e pela freqüência das formas interrogativas” (DUCROT: 2001, p.276).

Além disso, a intenção de Riobaldo não se limita a simplesmente reproduzir em linha reta os eventos que, embora passados, permanecem vivos na memória e presentes como objeto de questionamento. Interessa-lhe, sobremaneira, mais do que a simples reconstrução de sua jornada, a oportunidade de, ao novamente percorrê-la por meio da narrativa, entendê-la em sua dimensão mais secreta para, quem sabe, agora sim, poder de fato encerrá-la.

Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco - é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso - por estúrdio que me vejam - é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia (GS: V, p.26).

Por essa razão, o procedimento discursivo se desloca incessantemente do plano da trama, no qual as peripécias se desdobram em direção ao desfecho inevitável, ao plano digressivo das especulações filosóficas e/ou metafísicas, em que as inquietações provocadas pelos acontecimentos encerrados permanecem entreabertas. Ao mesmo tempo, ao dar início ao seu relato, propriamente dito, in media res, isto é, “por eventos situados num momento já adiantado da ação, recuperando depois os fatos anteriores por meio de uma analepse” (REIS & LOPES: 2002, p.199), apesar de a utilização desse recurso discursivo ser recorrentemente deliberada - inclusive, é claro, em se tratando do autor implícito que elabora o depoimento de Riobaldo - no caso do personagem-narrador tal opção deixa transparecer a presença de um fator contingencial, característico do diálogo espontâneo entre indivíduos. Dessa forma, diante da intenção declarada do interlocutor de “devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe” (GS: V, p.41) - como Riobaldo a sintetiza - o mesmo passa a inventariar uma série de lugares pelos quais já passou, e que o visitante poderia igualmente conhecer:

Lhe mostrar os altos claros da Almas: rio despenha de lá num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatú - já ouviu o senhor gargaragem de onça? A garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o céu embranquece - neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim... (GS: V, p.42).

É Riobaldo retornando, pelo discurso, aos cenários de uma outra época, até chegar a determinado ponto em que tempo e espaço convergem para a mesma lembrança. Nesse momento, inaugura-se o plano intradiegético da narrativa, aqui entendido, a partir da conceituação de Genette, como o “universo espácio-temporal no qual se desenrola a história” (REIS & LOPES: 2002, p. 107).

Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatú moreno; meu, em belo, é o Urucúia - paz das águas... É vida!... Passado o Porto das Onças, tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou. Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a pé, para não acabar os cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes de se deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles foram meus dias (GS: V, p.43).

Portanto, a trajetória narrativa de Riobaldo se inicia no encontro entre ambientes distantes no tempo e ações ali decorridas, guardadas intactas no espaço da reminiscência - como se, sob a ótica do narrador, todos os momentos fossem agora e todos os lugares fossem aqui. Mais adiante, vemos avançar o tempo da narrativa, por meio do deslocamento geográfico e cronológico da ação, até uma passagem de complicação do enredo, às vésperas da primeira tentativa de travessia do Liso do Sussuarão - território comparável ao inferno dantesco - o qual separava os antigos homens de Joca Ramiro, comandados então por Medeiro Vaz, do paraíso almejado da vingança.

Digo: outro mês, outro longe - na Aroeirinha fizemos paragem (...) Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso do Sussuarão - a dentro, adiante, até ao fim. - “E certo é. É certo” - Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem miúda palavra. (GS: V, pp.49-51).

Todavia, a despeito das ingerências, tanto do elemento externo personificado pelo alocutário, quanto das divagações derivadas do próprio locutor, em Grande Sertão: Veredas, a prevalência de uma estratégia narrativa progressivamente elaborada e a preocupação de Riobaldo em cumpri-la com o devido rigor estão bastante claras. “Com meu amigo Diadorim me abraçava, meu sentimento ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas” (GS: V, p.37). Noutro momento, a consciência desse narrador quanto à discrepância entre a disposição cronológica dos eventos e o posicionamento que ocupam no âmbito da memória e, por correspondência, no nível narrativo, é declarada por meio de um paradoxo. “Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas antes delas acontecerem...” (GS: V, p.47).

Assistimos, portanto, entre as páginas de Grande Sertão: Veredas, à constituição ontológica do narrador, isto é, à consolidação do processo narrativo desenvolvido por Riobaldo, e aos procedimentos por ele escolhidos - de acordo com as diretrizes interiores e exteriores que se apresentam - rumo à construção do discurso e à conseqüente recriação dos conflitos ainda latentes.

2) Construção do enredo

Em Grande Sertão: Veredas, a estruturação da narrativa é dividida, por assim dizer, em duas partes. A primeira se inicia, ao nível da trama, como já destacamos na apresentação desse trabalho, numa cena pertencente à complicação do enredo, durante a estada dos homens de Medeiro Vaz, por “umas semanas”, numa fazenda próxima às margens do rio Urucuia. Tempo de lembranças deleitáveis para o narrador Riobaldo, tanto quanto as águas do rio preferido, em razão da oportunidade de conviver mais de perto com Diadorim e aproveitar as pequenas epifanias que o amigo lhe ensinava a experimentar, apenas pela observação atenta das belezas ao redor.

Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular - cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira...e o bem-te-vi que dizia, e araras enlouquecidas. Bom era ouvir o mom das vacas devendo seu leite (GS: V, p.19).

A partir desse ponto, Riobaldo prossegue a narração até o momento de sua primeira passagem, junto com os companheiros, então sob as ordens de Zé Bebelo, pelas Veredas Tortas, onde se encontra o “Paredão”, cenário no qual se desenrolaria, no futuro da narrativa, o embate final com Hermógenes e a derrota definitiva do matador de Joca Ramiro. Desse lugar predestinado, as recordações do narrador são as piores possíveis, como se os rumores da guerra já pudessem ser captados ou como se ali tivessem ficado para sempre. Nesse momento em que a enunciação adquire um tom proléptico - indicativo do que viria a acontecer, equivalente ao já acontecido - encerra-se a parte inicial da narrativa.

Mesmo o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro da meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho...O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem (GS: V, pp.81-82).

Na segunda parte, Riobaldo recua a história até a sua infância e a conduz de volta ao Paredão, dessa vez no dia do enfrentamento decisivo, mantendo, portanto, a linearidade do enredo, da introdução ao desfecho.

A primeira parte, na visão de Riobaldo, constitui a essência de sua trajetória. “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo” (GS: V, p82). No entanto, por insistência do interlocutor, cujas considerações podemos somente presumir, o narrador retoma a sua empresa, a partir dos primórdios das façanhas que entretecem o destino, a fim de decifrar a engrenagem que o movimenta.

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe (GS: V, p.84).

A propósito, dentro desse contexto, Hermógenes se constitui, ao longo de toda a narração, na presença da tragédia futura: bastaria uma bala na testa do “pactário” para que toda a história pudesse ser escrita de outra maneira. “Porque é que eu tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo: se eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve tiro, bem certo, e corria, ladeira abaixo, caçava de meu sumir nesse vai-te-mundo” (GS: V, p.180). A narrativa, portanto, abrange não apenas o que foi feito, ou seja, as ações em si, mas também o que se pensou em fazer, e não se realizou.

Em todo caso, trata-se sempre de um discurso em construção, elaborado por um emissor que está aprendendo a contar a sua história no decorrer da própria execução da narrativa. “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (GS: V, p. 159).

3) Caracterização de Hermógenes.

Em relação ao universo dos jagunços, no interior do qual ações de violência eram muitas vezes banalizadas e a simples crueldade podia ser freqüentemente vista como uma demonstração de firmeza, Riobaldo se mantinha em geral a certa distância, como se sempre tivesse sido um estranho entre a maioria dos seus pares.

Um dia, agarraram um homem, que tinha vindo à traição. Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O senhor vige esses: comem o cru de cobras. Carecem. Só por isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Sô Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para estropelias, prática da vida. Ser ruim sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas com o tempo todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus (GS: V, pp. 146-147).

Trata-se do exercício da “lei do mais forte”, como ressalta Galvão (1986):

É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante por seu desempenho em eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis (p.21).

Pelo fato de não estar, naquele momento, completamente integrado a esse meio, Riobaldo conseguia conservar algum discernimento entre o certo e o errado, segundo determinada categorização de valores, o que lhe permitia, de certa maneira, perceber acontecimentos que se desenvolviam nas sombras das ações aparentes e antever as suas possíveis conseqüências. “Esse Hermógenes - belzebu. Ele estava caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube tanto disso, como naquele tempo” (GS: V, p.156).
Note-se, também, o esforço do narrador em apreender, pela linguagem, a figura imprecisa de Hermógenes, a qual sempre se constituiu, para Riobaldo, na personificação de uma incógnita.

Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela maldade. A qual que me aluava. O Hermógenes numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do quê? A cruz o senhor faça, meu senhor! (GS: V, p.203).

Não pretendemos, entretanto, caracterizar Riobaldo, maniqueisticamente, como representação alegórica do Bem no embate contra o Mal. Na verdade, Riobaldo também lutou um dia e ainda continua lutando, embora com outras armas, em função de seus próprios interesses, como observa Bolle (2004):

Com efeito, trata-se do discurso de um dono do poder (o discurso de Riobaldo) diante de um imaginário tribunal da história constituído pela classe dos letrados representada pelo doutor da cidade. O objetivo do agente do poder Riobaldo é que, no fim, ele seja absolvido - pelo interlocutor e pelo leitor (o ‘hipócrito leitor, seu semelhante, seu irmão’) (p.184).

Para Riobaldo, tentar entender Hermógenes resulta num dilema, pois se por um lado o matador de Joca Ramiro e Diadorim lhe causa repulsa, por outro, Riobaldo não tem como negar que também ele buscou o pacto com o demônio para se colocar em igualdade de condições com o traidor e assim poder derrotá-lo. “Será - mal pergunto eu ao senhor - que viajei este sertão com o Outro sendo meu sócio?” (GS:V, p.425). Portanto, nas reflexões de Riobaldo, a perseguição a Hermógenes continua. Ainda é preciso extirpar de dentro dele mesmo o grande inimigo.

4) Conclusão.

Nesse contexto dialógico a que nos referimos, a caracterização da personagem Hermógenes pode ser considerada um produto híbrido, visto se constituir, ao mesmo tempo, de aspectos contrastantes e de outros semelhantes ao modo de ser do narrador. Na perspectiva que Riobaldo tem de Hermógenes, trata-se de um antagonista, no sentido de os caminhos por eles escolhidos os terem levado para lados opostos. É também o nome do destino que ele devia cumprir, pois liquidar Hermógenes era a missão que lhe estava reservada. “A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes - naquele dia, naquele lugar” (GS:V, p.508). Entretanto, Hermógenes também representa o que permanecerá inacabado; a encarnação de um enigma que desafia conclusões.

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