terça-feira, 29 de junho de 2010

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM BRÁS CUBAS

RESUMO:Analisando a transmutação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, para o cinema, nas adaptações Brás Cubas (1985) e Memórias Póstumas (2001),observamos os recursos utilizados pelos diretores, a fim de recriar a personagem Brás Cubas, construindo-
a. Rosenfeld (CANDIDO et al, 2004) esclarece que a personagem é construída conforme o ‘olhar’do autor textual, o qual a caracteriza, dando-lhe forma e voz. Os estudos de Renata Palottini (1989)acerca da personagem teatral e de Antônio Cândido (2004) sobre a personagem de ficção, auxiliam na análise da construção verbal e imagética da irônica personagem machadiana, feita por meio do discurso e
metadiscurso instaurado pelo narrador. Com base nas teorias destes e de outros autores, o presente trabalho tem por objetivo explicitar como se dá a construção da personagem nas obras literária e cinematográficas supracitadas.


Estamos habituados a falar sobre o discurso objetivo do narrador,
ressaltando sempre ser esse a mola mestra da narrativa, porém, conquanto
o discurso – objetivismo – seja importante para a distinção entre ficção e
realidade, é “a personagem que com mais nitidez torna patente a ficção, e
através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza” (ROSENFELD;
CÂNDIDO et al., 2004, p. 21).


* Germana da Cruz Pereira - Mestranda em Teoria da Literatura
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco



O romance ganha vida devido à personagem, isso porque funciona
como elemento de identificação do leitor com o texto, pois com ela o
leitor se entrega para mergulhar no universo ficcional, deixa-se levar pela
imaginação. O narrador funciona como veículo de transmissão da história,
por meio da narração, mas é a personagem que o leitor adota, e ‘encarna’,
para viver o romance como se estivesse em sua pele, como se fosse ela.
Para que haja a identificação do leitor/espectador com uma
personagem, ela e todo o contexto em torno do qual existe necessitam ser
coerentes. Vale lembrar que imaginação e fantasia são distintas de falsidade.
A personagem é imaginação do autor e, quando coerente, não é falsa, é
apenas simulacro. Uma personagem incoerente, fugindo à verossimilhança1
interna da obra, gera descrença e enfado e compromete a existência do
romance ou filme enquanto obra de arte.
Para um aprofundamento sobre a personagem observemos primeiramente o conceito de Aristóteles (1997), que a define como mímese, como cópia do ser humano. Compartilhando da visão aristotélica sobre personagem, Pallottini (1989, p. 5) afirma que essa seria “a imitação, e, portanto, a recriação dos traços fundamentais de pessoa ou pessoas, traços selecionados pelo poeta segundo seus próprios critérios”.
Pallottini (1989, p.11), esclarece, ainda, que personagem e pessoa
apresentam os mesmos traços, sendo que a primeira é uma pessoa
imaginária e para a sua construção “o autor reúne e seleciona traços
distintivos do ser – ou de seres – humano, traços que definam e delineiem
um ser ficcional, adequado aos propósitos do seu criador”. Percebemos
que, nesse jogo construtivo, criador e criatura são a imagem e semelhança
um do outro, melhor, a criatura é a imagem do que seu criador deseja
mostrar e de seu público potencial.
Agora, ressaltemos que a personagem se define com clareza apenas
no desenrolar da ação ou do acontecimento no tempo, visto que seus atos
e diálogos esclarecem sobre ela e dão credibilidade ao dito pelo narrador.
Porém, as objectualidades e a história, em si, necessitam de algo
mais. Na realidade, a apresentação dos fatos e personagens na literatura e,
esporadicamente, no cinema, ocorre de maneira que o narrador toma por
vezes o espaço da personagem, devido à matéria-prima de ambas as artes:
palavras e imagens, as quais, como afirma Rosenfeld (CÂNDIDO et al.,
2004, p. 31), são as “que ‘fundam’ as objectualidades puramente intencionais,
não as personagens”. Por esse motivo, as personagens podem ser
dispensadas durante alguns instantes, para que o narrador mostre as
nuances da história.
1 Referindo-se à dramaturgia clássica Patrice Pavis (apud PALLOTTINI, 1989, p. 20) esclarece que
verossimilhança ”é o que, nas ações, nos caracteres, na representação, parece verdadeiro ao espectador”.
Embora Pavis não tenha se dirigido diretamente ao romance ou ao cinema, entendemos cabível
nessas artes seu conceito.
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Mesmo podendo ser retirada da narrativa por certo tempo, um
romance, por mais narrativo que se proponha a ser, não existe sem
personagem. Essa que, como dissemos, dá vida e importância ao texto,
haja vista obras como Hamlet, Don Quixote de La Mancha, Grande Sertão:
Veredas e Dom Casmurro, vivas até os dias atuais no imaginário dos leitores,
devido a suas personagens com palavras e atos marcantes. Como não
recordar, por exemplo, os olhos de ressaca de Capitu? Ou as incertezas de
Riobaldo? Ou, ainda, as encrencas em que se metia o fidalgo Don Quixote?
Ao falar sobre a personagem ao longo dos séculos, Antônio Cândido
(2004, pp. 54-55), ressalta:
Pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais comunicativo da
arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII,
XIX e começo do XX; mas que só adquire pleno significado no
contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção estrutural é o
maior responsável pela força e eficácia de um romance.
O teórico, ao abordar a importância da construção estrutural do
romance, remete nos ao que havíamos dito sobre a coerência e
verossimilhança da história. Esses dois elementos estão intimamente
relacionados, pois, imaginemos uma narração: um filme de época, passado
no século XVIII, por exemplo, no qual as mulheres fossem tomar sol na
praia trajando biquíni. Ao deparar-se com a cena, o espectador sentiria o
impacto causado pela incoerência entre o período retratado e as vestimentas,
o que o deixaria descrente com relação à história, isso para não questionar
se as pessoas daquele tempo iam ou não à praia para tomar sol. Damos o
exemplo não para mostrar que a narração deve ter um cunho de realidade
ou ser verídica, mas que necessita, como pré-requisito para atingir seu
objetivo enquanto texto ficcional, ser verossimilhante2 , pois somente assim
envolverá o leitor/espectador em suas teias.
Antônio Cândido ainda defende que a grande revolução sofrida pelo
romance no século XVIII foi a mudança do “enredo complicado com
personagens simples, para o enredo simples com personagens
complicadas”. Enredo simples pode ser entendido como coerente e uno, e
a nomenclatura usada para personagem, simples e complicada, refere-se
ao que Forster (1969, pp. 54-55) chama de planas e redondas.
2 Ao falar sobre verossimilhança textual, Riede (1980, p. 67) revela que o texto deve adequar-se à
cultura em que está inserido, pois “cada modelo de cultura tem sua orientação, que se exprime por
uma escala determinada de valores, por uma relação do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘alto’ e do
‘baixo’”. Como exemplo dessa verossimilhança ajustada à cultura receptora temos as explicações
sobre o trabalho de Nida (RODRIGUES, 2000), principal tradutor da Bíblia para vários idiomas,
revelando a impossibilidade de colocar o ritual do sacrifício de cordeiros a Deus se o público alvo da
tradução forem os esquimós, visto que eles não conhecem tal animal.
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Para Forster, personagens planas são aquelas reconhecidas facilmente
pelo leitor (essa é a vantagem delas), pois não sofrem mudanças ao longo
da história, visto que são construídas em torno de uma única qualidade ou
idéia; e personagens redondas são as que estão em constante mutação, são
complexas e surpreendem o leitor com suas ações, por isso não duram
muito em suas memórias, embora haja exceções.
Por serem as teorias, em sua maioria, provenientes de reflexões
voltadas para o texto literário, nos referimos aos receptores como ‘leitores’.
Ressaltamos, contudo, que, devido à proximidade das técnicas e
características da criação e das personagens na literatura e no cinema,
principalmente por ser este uma arte híbrida na qual várias outras artes se
inter-relacionam e se complementam, ao tratarmos das teorias a respeito
da personagem, não há necessidade de distinguir e enfatizar se literária ou
cinematográfica. Entendemos que as teorias aqui apresentadas abrangem
os dois universos, e quando isso não ocorrer, mostraremos as divergências.
Devido às ligações entre literatura, cinema e teatro, por conta da existência
de adaptações de um meio semiótico para outro, e à escassa bibliografia
sobre a construção da personagem literária e fílmica, utilizamos, para nosso
estudo, teóricos que escreveram sobre esse aspecto relacionado ao teatro,
os quais trazem pensamentos e reflexões que se adequam à relação
intersemiótica.
Ao falar sobre a construção da personagem, Beth Brait (2004)
considera a existência de duas formas segundo as quais ela acontece: quando
o narrador é a câmera e quando a personagem é a câmera. Por meio de
uma analogia com o cinema, Brait mostra as diferenças de pontos de vista
na construção. Ao funcionar como câmera, o narrador constrói a
personagem a partir do seu exterior, com exceção do narrador onisciente,
o leitor tem acesso a informações reduzidas com relação ao íntimo delas;
já quando a personagem é a câmera, começa sua construção para o leitor
desde o interior, visto que por suas próprias palavras, intenções e ações,
vai se caracterizando.
Renata Pallottini (1989, p. 12), num estudo de grande relevância sobre
a construção da personagem, mostra-nos, detalhadamente, como é feito o
construto de modo a tornar a personagem verossimilhante:
O autor, na criação de um personagem, desenha um esquema de ser
humano; preenche-o com as características que lhe são necessárias,
dá-lhe as cores que o ajudarão a existir, a ter foros de verdade. Uma
verdade, é claro, ficcional. Não se trata de ter um personagem que seja
a cópia real de uma pessoa qualquer, viva, existente, conhecida do
autor. Mas de criar um ser de ficção, que reúna em si condições de
existência; que tenha coerência, lógica interna, veracidade. Um ser
que poderia ter sido, não necessariamente um ser que é.
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A autora ressalta que a personagem não necessita existir na realidade,
mas precisa de características coerentes com o mundo ficcional no qual
está inserido, para suscitar a identificação e imersão do leitor/espectador.
Ao falar sobre a profundidade e construção da personagem,
Rosenfeld (CÂNDIDO et al., 2004, p. 35-36) esclarece que
É precisamente o modo pelo qual o autor dirige nosso ‘olhar’, através
de aspectos selecionados de certas situações, da aparência física e do
comportamento – sintomático de certos estados ou processos psíquicos
– ou diretamente através de aspectos da intimidade das personagens –
tudo isso de tal modo que também as zonas indeterminadas começam
a ‘funcionar’ – é precisamente através de todos esses e outros recursos
que o autor torna a personagem até certo ponto de novo inesgotável e
insondável.
Muito se fala e debate sobre os processos utilizados pelo escritor
para a criação de suas personagens, mas, e se observarmos como o narrador
constrói essa personagem? Quais recursos discursivos ele utiliza para tal
empreitada? É a esse aspecto em particular sobre o qual nos debruçaremos
nesse estudo feito sobre a transmutação da obra literária Memórias Póstumas
de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, para o cinema, nas adaptações
cinematográficas Brás Cubas (1985) e Memórias Póstumas (2001), observando
os recursos utilizados pelos diretores a fim de recriar de forma imagética
o apresentado no texto literário.
EU, BRÁS CUBAS
Se nosso intuito é falar sobre personagem, que falemos em Brás
Cubas, do romance e das adaptações cinematográficas, objeto de nossa
pesquisa. E, como diria nosso defunto autor, trataremos dos aspectos mais
importantes, da essência da vida, melhor, da construção dessa personagem.
Por ser o autor textual, e inclusive tomar a obra para si ao assiná-la,
a personagem liberta-se da tutela do autor para criar vida, ganha uma
independência dentro da obra, fato que permite ao narrador fazer seu
relato como desejar.
Justificamos, inicialmente, com as palavras de Antônio Candido (2004,
p. 64), a visão do autor textual ao narrar suas memórias, ao se olhar, a fim
de que possamos entender, pelo menos em parte, seu pensamento ao
construir-se, pois
Poderíamos dizer que um homem só nos é conhecido quando morre.
A morte é um limite definitivo dos seus atos e pensamentos, e depois
dela é possível elaborar uma interpretação completa, provida de mais
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lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória,
embora as mais das vezes arbitrária.
A citação acima explica o fato de o narrador julgar sua personagem,
ou seja, ele mesmo, já que, agora morto, pode lançar-lhe um olhar mais
geral e crítico, embora brando. É por meio desse olhar que o leitor/
espectador vê construindo-se Brás Cubas, personagem de caráter fútil e
volúvel cultivado desde criança, quando educado cheio de regalias e
vontades. A obra literária mostra a expectativa que seu nascimento causara
na família e sua formação, inclusive as tentativas frustradas da mãe em
transformá-lo num homem de bem, íntegro e religioso, já dando indícios
do futuro adulto descrente e cético.
As duas produções cinematográficas também retratam essa fase,
conforme veremos a seguir, enfatizando detalhes narrados no livro, como
as brincadeiras, peripécias com o aval do pai.
A construção de Brás feita por Julio Bressane em sua adaptação
acontece desde sua enfermidade, mostrando alguém moribundo e
desinteressado da vida, solitário pelos cantos escuros da casa, até a escolha
do ator que o encarnou, visto que, em geral, interpreta personagens
cômicas, irônicas e com certo tom de deboche, características que marcaram
o Brás Cubas idealizado pelo diretor.
(BRESSANE, 1985)
André Klotzel, em sua adaptação, também inicia a construção da
personagem no leito de morte, contudo, assim como na obra literária,
recebendo a visita de Virgília, a qual revela a primeira característica de
Brás, ao dizer: “Ando a ver se ponho os vadios para a rua” (1997, p. 23).
Dita cena chega aos espectadores por meio da narração do defunto-ator,
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que aparece sentado numa cadeira, observando o desenrolar das imagens
do que está contando como se estivesse assistindo a um filme. Ademais,
as várias pessoas que figuram no quarto de Brás reforçam a idéia da morte
como espetáculo, necessitando ser assistido por todos.
Percebemos que Bressane coloca apenas um ator para o papel,
enquanto Klotzel, para diferenciar as etapas – juventude, velhice e morte
– trabalha com dois atores, estratégia que demonstra a preocupação com o
espectador, pois, se não houvesse a troca de atores conforme as fases
passadas, ficaria, assim como na adaptação de Bressane, difícil distinguir a
passagem do tempo apenas por meio das imagens. Além disso, Klotzel
usa a maquiagem para estabelecer nítida distinção entre Brás Cubas e o
defunto-ator.
Em Bressane e em Klotzel a apresentação da personagem acontece,
assim como no livro, através de uma seqüência de cenas: a partir do bebê
Brás, o espectador é induzido a montar os retalhos de um caráter em
formação, em que o menino, realmente, ‘é o pai do homem’. Vemos o
menino Brás mostrar seu lado burguês, ao fazer de um negro seu cavalo,
e sua educação, ao subir as saias das escravas para vê-las nuas, demonstrando
de que terra e com que regalos “nasceu esta flor”. Uma criança, como
muitas outras, inconseqüente e mimada, capaz de, como no episódio do
senhor Vilaça com D. Eusébia, denunciar um sigiloso enlace amoroso como
vingança por Vilaça tê-lo feito esperar demais a sobremesa.
Na seqüência, aparece o jovem Brás iniciando sua vida de amores e
desamores. O primeiro amor, Marcela, mostrada como uma mulher
madura e movida pelo interesse, ao lado de um jovem, cego de paixão,
capaz de dar-lhe tudo, se não fosse a interferência de seu pai. A cena em
que Brás Cubas conta-lhe que será mandado para a Europa e a chama para
partir com ele, prova o quão era ingênuo frente às artimanhas da vida:
- Embarco daqui a três dias. Vem comigo?, pergunta Cubas.
- Três dias?, pergunta Marcela olhando-o pelo canto do olho, Vou...
(ASSIS, 1997; BRESSANE, 1985; KLOTZEL, 2001)
Brás é mandado à força pelo pai e sem Marcela, contudo, Klotzel
enfatiza como rapidamente o rapaz se recupera da perda da mulher amada
e conhece os prazeres proporcionados pela vida de estudante em Lisboa e
na Europa em geral, por onde, depois de formado, viaja com mulheres,
belas companhias que encontrava em cada país por onde passava.
Bressane, de maneira explícita, mostra como a personagem principal
é facilmente manipulada por outrem, como se deixa enganar quando ‘ama’,
indícios de inexperiência. Mas mostra também como era astuto, quando
mais velho, não se deixando dominar pela vontade e persuasão alheias,
como no episódio da divisão da herança de seu pai.
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Passagem de grande relevância para esta análise a cena da partilha
dos bens logo após a morte de Bento Cubas, seu pai.
(BRESSANE, 1985)
Brás, sua irmã e o marido são postos numa mesa, o casal de um lado
e o maduro protagonista de outro, aludindo uma competição de quebra de
braço, a qual vence aquele que tem o pulso mais forte, possível alusão à
teoria do humanitismo.
Livro e filmes apresentam um enredo que não chama atenção por si
só, visto que trata de situações corriqueiras vividas por um homem comum
da sociedade carioca. Mas, se considerarmos ser esse um defunto contando
suas memórias, alegando a busca por uma maneira de passar o tempo na
eternidade da morte, a obra ganha um peso que recai sobre a personagem.
O foco do romance voltado para a personagem e o fato de ela ser dúbia foi
uma das características responsáveis pelo ingresso de Memórias Póstumas de
Brás Cubas no rol dos grandes romances modernos, inclusive inaugurando
o uso dessas peculiaridades na literatura brasileira.
“O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no
enredo”. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas “enredo e personagem
exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre
dele, os significados e valores que o animam” (CÂNDIDO, 2004, pp. 53-
54). Ao conhecer Brás Cubas, o leitor/espectador não conhece o indivíduo,
mas o retrato da sociedade na qual se espelha: é o individual exprimindo a
coletividade.
As personagens, ao falar, revelam-se de forma mais completa, por
esse motivo o próprio defunto narra a trama e, através de suas palavras, o
leitor/espectador conhece a ele e sua personagem principal, Brás Cubas.
Ao construir sua personagem utilizando as palavras, no livro, e as palavras
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e imagens, nos filmes, o narrador demonstra tê-la arquitetado física e
psicologicamente, projetando-a, contudo, como indivíduo ‘real’, completo
em suas características.
Embora, após fazer a leitura ou assistir às adaptações, o leitor/
espectador reconheça o projeto completo chamado Brás Cubas, a
personagem é apresentada de maneira fragmentada e incompleta, pois sua
construção, por ser manipulada pelo narrador, não ocorre de forma direta
e precisa, mas é oscilante, aproximativa e descontínua, assim como a
narração.
Existem, conforme Antônio Cândido (2004, p.61), duas famílias de
personagens, as de natureza e as de costumes3 . Considerando essa classificação,
podemos enquadrar Brás Cubas como uma personagem de natureza, pois
não se apresenta de forma bidimensional, como a personagem de costumes,
mas com uma íntima terceira camada responsável por deixar algo obscuro
e incógnito ao leitor/espectador. No cinema, essa camada aparece de maneira
mais sutil, porém mais facilmente percebida, visto que as imagens
denunciam qualquer tentativa mais aprofundada de simulação.
Rosenfeld (CÂNDIDO et al., 2004, p. 30), ao esclarecer a relação
entre o ator e a personagem no teatro brechtiano, revela que “quando
Brecht pede ao ator que não se identifique com a personagem, para poder
criticá-la, põe um foco narrativo fora dela, representado pelo ator que
assume o papel de narrador fictício”.
Através dessa afirmação, chegamos a duas conclusões: uma com
relação à obra literária e outra sobre a adaptação feita pelo diretor Júlio
Bressane. A primeira é que, visando a certo distanciamento a fim de criticála,
existe o defunto-autor, que ressalta conhecer os tempos, em sua evolução
ou em seu retrocesso, apresentados por Pandora, bem como reprovar
algumas atitudes do jovem Brás, chegando a caracterizá-lo como “um fiel
compêndio de trivialidade e presunção” (ASSIS, 1997, p.55). A segunda
conclusão diz respeito à atuação de Luis Fernando Guimarães, visto que, à
diferença das atuações de Petrônio Gontijo e Reginaldo Farias, em Memórias
Póstumas, não permite a identificação e confusão entre ator e personagem
devido à ironia e cinismo exacerbados em sua representação. Júlio Bressane
(2000, p. 50), falando sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, diz que “é a
ironia, um processo de investigação, mais intelectualmente que o humor,
que é mais líquido e imprevisto, que rege a expressão desta voz de alémtúmulo”.
No cinema observamos, parafraseando as palavras bíblicas, que o
verbo se faz imagem. A personagem, até então formada por palavras, se
materializa num ator e se cristaliza em imagens com força suficiente para
3 Em seu artigo sobre a personagem de ficção Antônio Cândido ressalta que esta nomenclatura era
utilizada já no século XVIII por Johnson.
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difundir de maneira mais rápida e duradoura as nuances da personagem.
Para Rocha Filho (1986, p. 13) o fundamental para uma personagem
dramática “é que ela absorva a ação, a conduza, tomando para si as palavras
e intenções do autor”. Podemos perceber exatamente isso nas adaptações
aqui analisadas, pois as personagens apresentam traços nos quais lemos o
estilo do autor, nesse caso diretor, porém, sem a personalidade individual
de cada ator ao interpretar Brás Cubas, a elaboração da personagem em
cena ficaria comprometida.
Os atores Luís Fernando Guimarães, Reginaldo Farias e Petrônio
Gontijo (jovem Brás), com suas particularidades, são imprescindíveis para
a construção e composição da personagem por eles interpretada, visto que
conseguem, à sua maneira, conservar seu tom literário, como no episódio
em que Bento Cubas propõe a política e o casamento a Brás. Esse episódio
aparece nos filmes revelando, por meio do jogo de câmera e do tom dos
diálogos, a personalidade mais debochada e irônica da personagem de Júlio
Bressane (Luís Fernando) e a personagem mais sóbria de Klotzel (Gontijo),
que não deixa de ser irônica, diferenciando-se somente pelo fato de o
diretor usá-la como tempero e não como leitmotiv.
Não respondi logo; fitei por alguns instantes a ponta do botim; declarei
depois que estava disposto a examinar as duas coisas, a candidatura e
o casamento, contanto que...
- Contanto que?
- Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso
ser separadamente homem casado e homem público...
- Todo homem público deve ser casado, interrompeu
sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres; estou por tudo;
fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o parlamento são a
mesma coisa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação,
contanto que...
- Contanto que?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.
(ASSIS, 1997, p. 60)
(BRESSANE, 1985) (KLOTZEL, 2001)
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O caráter da personagem principal é apresentado na obra literária e
nas produções cinematográficas por meio das suas atitudes diante das
situações. É o caso do casamento, para o qual o pai tenta persuadi-lo, agindo
Brás de maneira displicente e debochada diante dos argumentos do senhor
Cubas. Na primeira cena mostrada acima, o enquadramento da câmera
enfatiza os pés do rapaz, indicando que, se quisesse, poderia escolher o
rumo de sua vida, não necessitando seguir indicações de outrem. Na
segunda cena, a constante observação do defunto-ator de Klotzel, que faz
interrupções para esclarecer suas atitudes quando vivo, e as feições mais
comedidas de Gontijo.
Se o filme, ao colocar as palavras ultrapassando as limitações impostas
pelo seu emprego somente nos diálogos, torna-se “campo aberto para o
franco exercício de uma literatura falada” (GOMES; CÂNDIDO et al.,
2004, pp. 109), então percebemos que Brás Cubas e Memórias Póstumas
apresentam o uso dessa literatura de maneira impecável, principalmente
para construir a personagem. Nos dois filmes, a ‘literatura falada’ pode
ser encontrada no discurso monológico do narrador e nas falas das
personagens, praticamente idênticas às do livro. Na adaptação de Klotzel o
narrador é mais incisivo, pois atravessa todo o filme fazendo comentários,
principalmente metadiscursivos, e dando explicações ao espectador, a
exemplo da imagem anterior, assim como na obra literária.
Em Memórias Póstumas, encontramos a ‘verdadeira’ face de Brás Cubas
ao ouvi-lo dizer que “tinha chegado aos quarenta anos e não era pai nem
ministro. Não era nada”, pois toda a superioridade que deixaria transparecer
adiante ao fazer o balanço de sua vida, afirmando sair lucrando por não ter
tido filhos, não passa de mais uma de suas simulações, visto que, na verdade,
sempre almejara um cargo político e deixar descendentes.
Para que a personagem seja construída a contento na produção
cinematográfica, o roteiro trazendo as indicações de como deve ser a atuação
dos atores, assim como na peça teatral, é de suma importância.
As indicações a respeito de personagens, que se encontram anotadas
no papel ou na cabeça de um argumentista-roteirista-diretor,
constituem apenas uma fase preliminar de trabalho. A personagem
de ficção cinematográfica, por mais fortes que sejam suas raízes na
realidade ou em ficções pré-existentes, só começa a viver quando
encarnada numa pessoa, num ator.
(GOMES; CÂNDIDO et al.,2004, p. 114)
Essa encarnação da personagem na pessoa conta tanto com o auxílio
de laboratórios e workshops feitos pelos atores antes do início das gravações,
visando a sua imersão no mundo da personagem, quanto com as indicações
para atuação, presentes no roteiro. Exemplo disso aparece quando
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observamos o roteiro de Memórias Póstumas, escrito e dirigido por André
Klotzel, do qual escolhemos a cena em que o defunto-autor observa Brás
Cubas e Virgília num encontro íntimo para mostrar como o roteiro
apresenta o texto e as orientações, e o resultado imagético da personagem,
neste caso, o defunto-ator.
(KLOTZEL, 2001)
Seqüência 97
Fantasma de Brás no canto do quadro. Ao fundo, completamente
fora de foco, vemos os vultos de Brás e Virgília. Pode-se perceber
sutilmente, pelos gestos e sons, que os dois transam. O Fantasma,
completamente constrangido, não encontra palavras para explicar aquilo.
Ele tem muitas hesitações, ensaia começar a falar mas se breca. Dá um
sorriso mas fica sem graça.
(O Off da Sequência seguinte poderá ser dado aqui).
Notemos que a maneira como deve agir, o olhar, a expressão do
rosto, tudo está indicado pelo diretor no roteiro. Lógico que não podemos
tirar o mérito do ator em compreender o que está em palavras e dar seu
toque ao encarnar a personagem, pois se não houver um profissional que
encarne o papel realmente como instruído, o resultado será comprometido.
Paulo Emílio Sales Gomes (CÂNDIDO et al., 2004, p. 117), ao falar
sobre a modernidade e temporalidade da personagem, ressalta que:
A vitalidade da personagem literária, novelística ou teatral, reside no
seu registro em letras, na modernidade constante de execução
garantida por essas partituras tipográficas. A personagem registrada
na película nos impõe até os ínfimos pormenores o gosto geral do
tempo em que foi filmada.
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Mas, e quando falamos num filme de época? Poderemos perceber a
época em que foi produzido? Certamente que não, pois o período retratado
remete a um tempo passado e não ao período em que foi filmado, embora
percebamos alguns traços da estética do diretor, fato que pode funcionar
também como marca de uma época. Num filme que trate do tempo em
que está inserido, temos, por meio do figurino, dos diálogos, dos
movimentos das personagens, o gosto e costumes do tempo em que foi
filmado.
Em Brás Cubas, Júlio Bressane ironiza o retrato feito por um filme
de época ao colocar Luís Fernando Guimarães e Regina Casé, numa cena
de Brás e Marcela, confirmando:
- Mas num pode aparecer minha calcinha que a minha calcinha é de
lycra, minha calcinha num é de época.
-Minha cueca também num é de época.
(BRESSANE, 1985)
Como dissemos anteriormente, as personagens devem se mostrar
coerentes aos leitores/espectadores, para que não quebrem a
verossimilhança e não comprometam a catarse. Sua diegese necessita
observar os padrões aceitos pelo seu tempo e por seus receptores.
O ESQUELETO SE FAZ OUVIR...
Através da análise do funcionamento narrativo da obra cinematográfica
e das técnicas de produção utilizadas, podemos identificar como a
personagem literária Brás Cubas foi construída pelos diretores Júlio
Bressane e André Klotzel.
p. 43-57
5 6 Revista Trama - Volume 3- Número 6 - 2º Semestre de 2007 -
Assim como no livro, Brás Cubas é construído através de uma
narrativa não-linear, em tom memorialístico, começando por sua morte,
o leitor conhece desde o seu nascimento até a fase adulta. Tal forma de
construção é também conhecida como flashback, a rememoração de algo. A
narrativa possui uma estrutura, onde há uma subversão da ordem natural
dos acontecimentos, o fim passa a ser início e este, fim.
Os contextos objectuais, como afirma Rosenfeld (CÂNDIDO et
al., 2004), vão aos poucos constituindo e produzindo Brás vivo, porém,
por serem produzidos pelo defunto-autor, constituem-no também através
de seu próprio discurso.
Percebemos que, embora as estéticas da obra literária e das obras
cinematográficas sejam bem diferentes, os diretores preocuparam-se em
construir a personagem por meio de suas atitudes e do discurso e
metadiscurso do narrador, deixando ecos da obra adaptada, mantendo o
estilo de Brás Cubas.
Se retornarmos a reflexão sobre verossimilhança, podemos afirmar
que, seja esqueleto ou defunto, o autor textual dessas Memórias, literárias
ou fílmicas, a construção de si e de Brás vivo dá-se de forma coerente,
fazendo com que o leitor/espectador possa deixar-se levar e acreditar na
criação de um personagem-sujeito4 chamado Brás Cubas.

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