Resumo: Nesta dissertação, o objetivo é investigar a construção das personagens femini-nas por Ana Maria Machado (1942 -), em textos literários para leitores diferenciados. Para tanto, analisamos nove livros de literatura para crianças, jovens e adultos: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Menina bonita do laço de fita (1984), Isso ninguém me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo é comigo (1999), Alice e Ulisses (1983), Tropical sol da liberdade (1988) e A audácia dessa mulher (1999). Verificamos aspectos da construção das personagens femininas, por meio de elementos estruturais e temático-formais dos textos, bem como o caráter emancipatório da produção literária da escritora, já que a estrutura dos textos lidos possibilita a interação entre texto e leitor. Consideramos como os leitores são convidados a experienciar e questionar valores estabelecidos pela sociedade em que vivem e elucidar como a leitura dessas narrativas influencia na formação do leitor, pois elas criam espaços e lacunas que podem ser preenchidos com os dados da experiência de cada indivíduo. Com base nas análises realizadas, percebemos a presença relevante da figura feminina, no mundo ficcional de Ana Maria Machado, já que as crianças se confirmam nas personagens adolescentes e nas adultas. Diante do estudo empreendido observamos que o leitor não sai ileso, pois seu horizonte de expectativas, ao incorporar-se ao horizonte oferecido pelas obras, propicia um novo conhecimento, promovendo a ampliação de seu horizonte inicial de expectativas. Esta pesquisa, de caráter qualitativo-interpretativo e bibliográfico, também contribuirá para a ampliação dos estudos de literatura dessa natureza.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS,LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)
SÍLVIA MARIA RODRIGUES NUNES CANTARIN
E AS MENINAS CRESCERAM: A CONSTRUÇÃO DA PERSONA-GEM FEMININA NAS OBRAS DE ANA MARIA MACHADO
MARINGÁ - PR 2008
SÍLVIA MARIA RODRIGUES NUNES CANTARIN
É muito comum que os romancistas con-tem como seus personagens os surpre-endem, de vez em quando, agindo por conta própria. E é verdade, a gente não manda neles e tem que permitir que si-gam por onde queiram. De certo modo, essa experiência de criar vidas alheias se parece muito com o trabalho do sonho [...] Mas digo isso também porque não quero mentir para quem me lê, não além do ine-vitável ato de fingimento que é qualquer ficção. É honesto lembrarmos que essas vidas são inventadas, essas situações são criadas, mas nosso encontro nestas pági-nas, seu e meu é real. Ana Maria Machado
SUMÁRIO
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................11
1.1.Como tudo começou..................................................................................11
CAPÍTULO II – FUNDAMENTOS HISTÓRICO – TEÓRICOS....................23
2.1. Um encontro com a literatura...................................................................23 2.1.1.Concepções de Literatura e Literatura Infanto-Juvenil.......................27 2.1.2. Literatura Infanto-Juvenil e sua origem ..............................................27 2.1.3.Literatura:pontos e contrapontos..........................................................30 2.1.4. Literatura infanto-juvenil e pós-modernidade.....................................36 2.1.5. Literatura e formação do leitor ............................................................38 2.2. Os caminhos da teoria: a recepção e o efeito .......................................41 2.2.1. Jauss e a estética da recepção ............................................................41 2.2.2. Iser e a teoria do efeito .........................................................................45
CAPÍTULO III – CONTEXTUALIZAÇÃO DE ANA ...............................................50
3.1. Caminhos de Ana.....................................................................................50 3.2. Ana produzindo conhecimento ..............................................................52 3.3. Leitores de Ana o interesse da crítica sobre Ana Maria Machado.......54 CAPÍTULO IV – NA TRILHA DAS PERSONAGENS FEMININAS DE ANA........68 4.1. Ana e as meninas arrojadas....................................................................69 4.1.1.As crianças.............................................................................................70 4.1.2.Bem do seu tamanho:perspectivas do tamanho grande ou pequena?. ............................................................................................................................70
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4.1.3.Bisa Bia Bisa Bel: menina moleca.. .....................................................82 4.1.4.Menina bonita do laço de fita – desconstrução do preconceito........89 4.2. As adolescentes decididas de Ana ........................................................97 4.2.1. Isso ninguém me tira – emancipação feminina e adolescência.......98 4.2.2. Tudo ao mesmo tempo agora – inclusão social...............................102 4.2.3. Amigo é Comigo: adolescência e amizade .......................................107 4.3. As mulheres audaciosas de Ana ..........................................................114 4.3.1. Alice e Ulisses: tradição e ruptura ....................................................114 4.3.2.Tropical sol da liberdade: exílio político e reencontro .....................127 4.3.3.A audácia dessa mulher: histórias dentro da história .................... 136 CAPÍTULO V: CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................ 145 5.1.As semelhanças e diferenças entre as personagens femininas de Ana ...................................................................................................................... 145 5.2.E as meninas cresceram ......................................................................151
CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES INICIAIS A literatura é uma das mais antigas e mais duradouras manifestações do espírito hu-mano. Ana Maria Machado - 1999.
1.1. Como tudo começou...
Não há nenhuma definição de arte que seja acabada ou definitiva. Isso re-vela que a convivência com a criação e com o conhecimento artístico é uma expe-riência sem fim: quanto mais indagamos e identificamos a singularidade da arte, mais questionamos a natureza da criação. Acontece que ela, tentando sempre fisgar o que há de mais relevante na realidade, parece seguir o próprio curso da vida no que ela tem de múltiplo e variável, transitório e absoluto, imediato e uni-versal. Entretanto, a arte tem traços bastante característicos e registrar a condição humana é a sua própria razão de ser, pois uma das suas mais legítimas funções é atuar no processo de humanização do indivíduo. No caso específico da arte literá-ria, Candido (1982, p. 249) ressalta: ―A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante‖. Não que a literatura modifique imediata-mente o mundo em que vivemos, mas, ao menos, ela aprofunda e inquieta a sen-sibilidade do leitor para uma vida que pode sempre ser humanamente modificada. É sob o ponto de vista do potencial humanizador da literatura que propo-mos esta dissertação. Este trabalho pretende estudar, na obra de Ana Maria Ma-chado, questões relacionadas à construção da personagem feminina. Para tanto, serão analisados nove títulos da escritora: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Menina bonita do laço de fita (1984), Isso ninguém me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo é comigo (1999), Alice e U-lisses (1983), Tropical sol da liberdade (1988) e Audácia dessa mulher (1999).
O nome de Ana Maria Machado surgiu não somente pela projeção que a escritora tem na literatura brasileira, reconhecida por diversas premiações nacio-nais e internacionais. Na verdade, o interesse pela obra da escritora data do Cur-
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so de Especialização1, especificamente, devido ao livro Bisa Bia Bisa Bel (1982). Em consonância com a proposta defendida por esta dissertação, tal leitura, na infância, pode influenciar na formação de seres humanos mais sensíveis e críti-cos. Com a crença de que um indivíduo de qualquer idade, ao ler ou ouvir uma história, dialoga não só com quem escreve, mas com uma visão de mundo, enfa-tizamos a preocupação especial com a formação do leitor de qualquer fase, seja ela infantil, juvenil ou adulta. Nessa linha, afirma-se o essencial: a literatura como manifestação da arte. Assim, a leitura ultrapassa o simples olhar e vai além, o leitor se aventura no des-conhecido em busca de uma melhor compreensão do mundo. A base dessa rela-ção está em que, num texto, há duas pontas importantes: autor e leitor. Se, por um lado, a escrita se configura como um veículo transmissor de informação, a leitura é um meio de aquisição do que passa ao redor das pessoas no contexto em que vivem. A leitura não se restringe à palavra escrita, é, portanto, um ato social. Tra-taremos, nesta dissertação, de um tipo de leitura textual mais ampla que a busca de informações em um jornal ou a depreensão de implícitos em uma propaganda. O objeto de estudo para os próximos capítulos são textos plurissignificativos, é literatura, portanto, é arte. Não é intenção, nesta pesquisa, discutir se devem ser usados ou não os adjetivos ―infantil‖ e ―juvenil‖, e toda a carga semântica que eles abarcam, aos textos literários selecionados para esse público. A escolha das nove obras analisadas advém da importância que elas têm na produção literária da escritora e do intuito de observar as construções das per-sonagens femininas em momentos diferentes desse percurso. Estas histórias, na maioria das vezes, protagonizadas por crianças, ado-lescentes e adultos, são produzidas por adultos que transmitem, consciente ou inconscientemente, valores e padrões de comportamento que poderão ser assimi-lados pelos leitores.
A partir da leitura dos textos de Ana Maria Machado, percebemos a riqueza de sua produção literária e a importância das obras dirigidas ao leitor, seja ele
1 Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu”, Especialização em Literatura e Ensino: A formação do leitor, área de concentração de Letras, com carga horária de 360 horas, nas FIO - Faculdades Integradas de Ouri-nhos, com início em 09 de março de 2002 e término em 06 de setembro de 2003.
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criança, jovem ou adulto. As narrativas da autora aguçam a imaginação do leitor, levam-no a vivências inusitadas e provocam, ainda, um olhar múltiplo sobre as possíveis e diversas realidades sugeridas por seus textos. Ao privilegiar o estudo da personagem, compreendemos como Antonio Candido, que: Em todas as artes literárias e nas que exprimem, narram ou re-presentam um estado ou estória, a personagem realmente ―consti-tui‖ a ficção (CANDIDO, 1968, p. 31, grifo do autor). O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam (CANDIDO, 1968, p.54). Sem a personagem, o texto não flui, não tem vida, não há ritmo, pois é em torno dela que giram as ações e intrigas relatadas e toda a atenção do leitor está centrada no desfecho que ela terá na história. O leitor tenta rastrear, ao longo da narrativa, os segredos das personagens, podendo até ocorrer certa identificação dele com algumas delas, assim como confirma Beth Brait (2004, p. 9): [...] Curiosamente, esses mesmos leitores que acreditam separar com clareza a vida da ficção, mesmo que muitas vezes apreciem mais a ficção que a vida, teriam algumas dificuldades para negar que já se surpreenderam chorando diante da morte de uma per-sonagem. As personagens de uma narrativa são seres fictícios, criaturas de papel e tinta moldadas pelo escritor por meio de traços recolhidos da realidade e traba-lhados pela imaginação. Inseridas em um mundo construído que segue uma coe-rência interna, as personagens se subordinam a ela, agindo e reagindo de acordo com as regras de funcionamento desse universo possível. Sua movimentação determina o andamento da ação - o enredo existe por meio das personagens que nele ganham vida.
Portanto, pretendemos encontrar nessas obras personagens femininas múltiplas e complexas, características muito comuns no romance moderno, como esclarece Candido (1968, p. 59): ―o romance moderno procurou, justamente
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aumentar cada vez mais esse sentimento de dificuldade do ser fictício, diminuir a idéia do esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista‖. A realização desta dissertação se justifica pela importância da autora e de sua obra no contexto da produção contemporânea de literatura infanto-juvenil e adulta, pois ela é uma das mais importantes escritoras do país. A partir de sua extensa produção, do valor qualitativo presente em suas obras e da constatação de que conta com uma produção significativa também do ponto de vista quantita-tivo, sentimos a necessidade de desenvolver um trabalho sobre o enfoque dado à construção das personagens femininas em suas obras. Estabelecendo um recorte nas possibilidades de leitura que o conjunto da obra da escritora carioca provoca, pretendemos avaliar o modo de construção da figura feminina, considerando, especialmente, se é estereotipada ou se exerce uma função emancipadora no mundo ficcional, ou, ainda, se esse conjunto de informações sobre a menina, a adolescente e a mulher denunciam uma socieda-de plena de preconceitos e desrespeito às diferenças. Pretendemos, ainda, elucidar como a leitura das obras constantes no cor-pus desta dissertação pode influenciar a formação do leitor, pois elas criam espa-ços e lacunas que leitores de qualquer idade podem preencher com os dados da própria experiência. Dessa forma, foram formulados os seguintes questionamentos: Como essas personagens são compostas: de forma estereotipada ou inseridas no seu tempo, questionadoras, emancipadoras? Quais estratégias, apelos formais e temáticos conferem o caráter emancipatório e renovador a suas obras? Quais os recursos estilísticos utilizados na construção dessas per-sonagens, bem como sua densidade psicológica? Quais traços das personagens infantis podem ser observados nas personagens adolescentes e adultas?
O objetivo geral desta pesquisa é reconhecer o processo de construção das personagens femininas em obras infantis, juvenis e adultas, e o estudo des-sas personagens, considerando aspectos estéticos, estruturais e temáticos.
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Tais estudos estão embasados teoricamente na Estética da Recepção e na Teoria do Efeito, em obras de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Regina Zilber-man; em autores que enfocam o estudo da personagem, tais como Antonio Can-dido e Beth Brait; e no estudo do narrador, como Mieke Bal. Como reconhecimento da importância da escritora para a literatura desti-nada a públicos diferenciados, no Brasil, é crescente o número de pesquisas que abordam temáticas relacionadas aos seus livros. Na coleta de dados, constatamos que a produção literária de Ana Maria Machado vem despertando interesse como objeto relevante de estudo no âmbito acadêmico, como atestam as várias pesquisas suscitadas, que podem ser catalo-gadas sob a forma de Dissertações de Mestrado e de Teses de Doutorado. Se-gundo a pesquisa realizada no banco de teses da CAPES, foram encontradas vinte Dissertações e quatro Teses sobre Ana Maria Machado, sendo que uma delas foi defendida na Alemanha ou que estudam obras escritas pela autora, con-forme discriminação abaixo, segundo uma ordem cronológica: 1. CERBINO VICTORIA WILSON COELHO. A seriedade do brinquedo - Era uma vez um tirano.
CAPÍTULO II – FUNDAMENTOS HISTÓRICO-TEÓRICOS
Por sua própria natureza, a criação artísti-ca procura caminhos de inconformidade e ruptura. Ana Maria Machado, 1999. Quando resolvemos realizar esta pesquisa, consideramos importante, nes-te capítulo, enfocar questões sobre a natureza e as funções do texto literário e os aspectos referentes à leitura e ao leitor, o qual dá vida e significação à obra de arte. Com isso em mente, empreendemos uma abordagem crítico-teórica, resga-tando conceitos sobre literatura, literatura infanto-juvenil e formação do leitor. Este estudo está dividido em duas partes que se ligam e se encontram no sentido de um gradativo estreitamento do assunto em questão. No tópico intitula-do: Um encontro com a literatura - enfocamos algumas concepções de literatura e a polêmica engendrada pelas contradições existentes no interior das próprias conceituações de literatura. Em seguida, apresentamos abordagens de caráter mais geral sobre con-ceitos relacionados à literatura infantil e juvenil, bem como seu surgimento na Eu-ropa e no Brasil e, na seqüência, a literatura infanto-juvenil e a pós – modernidade e a formação do leitor. Neste mesmo capítulo, abordamos a estética da recepção, a teoria do efei-to e os leitores. Para empreender esse percurso, explanamos, inicialmente, acer-ca de como a estética da recepção e a teoria do efeito podem contribuir para a formação dos futuros atores sociais. 2.1. Um encontro com a literatura [...] a literatura, por fazer um uso estético da palavra, experimenta o que ainda não foi dito, inventa algo novo, propõe protóti-pos [...] Ana Maria Machado, 2001.
[Digi-te uma citata-ção do do-cumento ou o re-sumo de uma questão in-te-ressante. Você pode po-sicicioo-nar a caixa de texto em qualquer lu-gar do do-cumento. Use a gui
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No encontro com qualquer forma de arte (re-presente-ação da realidade), os seres humanos têm a oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua própria experiência de vida. Dentre as manifestações artísticas, a literatura ocupa um papel de destaque, porque tem como matéria-prima a palavra. É exatamente a palavra que garante especificidade ao humano, por ser o veículo de elaboração e sistematização do pensamento. Em face da realidade transitória, passageira e, até mesmo, fugaz, a literatu-ra é a possibilidade de representar simbolicamente, na dimensão de quem escre-ve e no ângulo de quem lê, a vida que realmente vivemos ou as personagens que, imaginariamente, inventamos dentro de nós. De certa forma, pode se dizer que a literatura é motivada pelo medo ancestral de esquecer, recuperando, na arte da palavra, um modo de ser feliz. Como invenção, como ficção, como cria-ção, a literatura aponta para o que poderia ter sido e só provisoriamente ainda não é. No ensaio A literatura contra o efêmero (2001), o escritor e crítico italiano Umberto Eco lança luzes sobre as funções da arte da palavra, um bem imaterial. Em seu percurso, reafirma que a literatura, em princípio, ―não serve para nada, mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas‖ (p. 12). A gratuidade da arte da palavra, entretanto, não é tão simples como apa-renta, por extrapolar finalidades meramente informativas e de fruição. Ainda, a-crescenta Eco, ―os grandes livros‘ contribuíram para formar o mundo‖ (2001, p. 12, grifo nosso). Essa especial forma de arte convida o leitor ao exercício da ima-ginação e da recriação de significados, de modo que se possam estabelecer no-vas relações entre as pessoas e o mundo, intermediadas pela palavra.
Conceituar literatura instiga teóricos e críticos desde a Antigüidade greco-latina. Pode-se dizer que Aristóteles (384 a.C.) com o conceito de mimese (do grego mímesis – imitação), destacou-se nos estudos acerca do assunto. A partir desse princípio, enfatizou-se o viés cognitivo da literatura, uma vez que se enten-dia a arte como recriação da realidade. Nessa linha, séculos depois, o crítico e professor de teoria cultural da Universidade de Oxford, Terry Eagleton, detém-se na mesma questão. Em um livro de referência na área de estudos literários, Teo-ria da literatura: uma introdução (1997), o crítico dedica toda a parte inicial da o-
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bra a um percurso histórico sobre os conceitos atribuídos à literatura. Para o en-foque desta dissertação, interessa o fechamento do capítulo, transcrito a seguir: Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a litera-tura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideo-logias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros (EAGLETON, 1997, p. 22). Nesta leitura, cumpre destacar a relação estabelecida por Eagleton (1997) entre literatura, ideologia e poder. Esse trinômio enfatiza a importância da literatu-ra, sobretudo, no que diz respeito à construção de valores que uma sociedade vai adotar como parâmetro, em um determinado momento histórico. Para Antonio Candido (1982), a literatura promove um espaço de derivação e retorno. Por ser um movimento dialético, proporciona um espaço de debate en-tre pessoas diferentes, já que o texto literário configura-se como uma transposi-ção do real a partir de como o autor vê o mundo. Teresa Colomer (2001), concebe literatura de modo singular: a literatura é porosa. Assim como Antonio Candido, trata a literatura como reconfiguração do real, pois ela muda o mundo a partir de seu ponto de vista – a literatura é e não é o mundo. Enfatiza, ainda, a capacidade formativa da literatura, pois todo o conhe-cimento do mundo está no texto. Como propõe debates humanos, tem de ser considerada um patrimônio extremamente positivo, porque possibilita um reco-nhecer-se. Para Antoine Compagnon (2001), literatura é um conhecimento especial e, segundo Aristóteles, tem duas finalidades: instruir ou agradar e o prazer de a-prender na origem da arte poética. Também absorve a função de compreender e regular o comportamento humano e a vida social.
Para Zilberman (1990), a literatura, além de despertar a fantasia no leitor, provocando seu mundo interior, também faz nascer um posicionamento intelectu-al. Mesmo que o mundo representado no texto pareça afastado no tempo, produz um reconhecimento em quem lê e faz o leitor refletir sobre seu cotidiano. Ao a-crescentar conhecimentos diferenciados, ele irá socializar sua prática com a leitu-
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ra, tirar conclusões com outros leitores, enfim, a leitura promove o diálogo, a troca de experiências e a diversidade de preferências. Sabemos do elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres huma-nos e faz transcender as barreiras do tempo, pois propicia a sensação de sermos parte da experiência coletiva através do tempo e do espaço. Portanto, é a maior conquista da cultura e nada contribui mais para renová-la, a cada geração, do que a literatura. O que a literatura deu à humanidade, então? Um de seus primeiros legados foi, sem dúvida, a linguagem. O que seria da humanidade sem romances? Isso também vale para o indivíduo, pois pessoas que nunca lêem ou lêem muito pouco, podem até falar muito, mas dispõem de um repertório mínimo de palavras para se expressar. Assim, nenhuma disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. Outro motivo para se conferir a ela um lugar de destaque na vida das pessoas é o fato de que, sem ela, não haveria senso crítico - verdadeiro motivador de mudan-ças históricas e de liberdade, pois a literatura propõe mudanças históricas e ques-tionamentos acerca do mundo em que vivemos. Podemos dizer que, de certa forma, a literatura apazigua a insatisfação e-xistencial, nem que seja apenas por um momento. No momento da leitura, o leitor se considera diferente: mais rico, feliz, intenso, complexo e lúcido, porque a litera-tura permite viver em um mundo onde as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde o sujeito se liberta do tempo e do espaço, onde se podem come-ter excessos sem castigo. Desta maneira, a vida imaginada dos romances é provavelmente melhor: mais bonita, diversa, compreensível, até perfeita, e, quem sabe, seja esta a maior contribuição da literatura: lembrar que o mundo pode ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar. O texto literário estimula a imaginação e a insatisfação, refina a sensibilida-de e ensina o caminho para a liberdade, garante uma vida mais rica e intensa.
Por toda sua capacidade inventiva, a arte literária é sempre ficção, no sen-tido de realidade imaginada e criada pela palavra, sem necessariamente precisar ser comprovada com o real. Entretanto, por mais alegórico, fantasioso, absurdo que seja um conto, um poema ou uma novela, o texto literário mantém estreitos
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vínculos com a realidade humana e só o homem, na sua existência real, é seu foco de interesses e atenção. Este talvez seja o traço mais generosamente humano da literatura e sua própria razão de existir – expressar a profundidade da dor e da alegria, a luta e a desistência, o amor e o desencontro, a morte e o retorno, o misterioso e o prosai-co, o desejo e a frustração, a liberdade e a descoberta, a fome e os excessos, a persistência e a fuga, a imobilidade e a peregrinação, contribuindo, assim, para a formação ética, estética e histórica do homem em permanente processo de des-coberta e revelação. 2.1.1. Concepções de literatura e literatura infanto-juvenil Mergulhar no universo da literatura in-fanto-juvenil é adentrar a magia, o reli-gioso, o filosófico, o mundo real e ima-ginário, a arte e a ciência. Ana Júlia Gonçalves Matiazo, 2003. 2.1.2. Literatura Infanto-juvenil e sua origem A Literatura Infantil surgiu como reflexo de transformações sociais e, desde sua origem, estimula uma reflexão que procura definir suas normas no contexto das artes em geral. Essa preocupação se deve à especificidade do gênero, pois destoa de outras formas de manifestação artística, já que em sua g é marcada pelo adjetivo que a caracteriza. Por isso, observamos uma luta entre o conceito de literatura enquanto construção lingüística, definida por sua autonomia, e o de-signativo ―infantil‖ que invoca um leitor determinado, assim, o gênero é obrigado a ―atender aos interesses‖ desse receptor.
A compreensão desse impasse começa a se delinear com traços mais níti-dos, quando nos situamos na origem da questão, no momento em que surgem na Europa, textos escritos destinados ao público jovem. A origem da literatura para crianças está associada a fatos econômicos e sociais. Os primeiros escritos literá-
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rios para o público infantil foram produzidos, no final do século XVII e durante o século XVIII, período em que a Revolução Industrial é deflagrada. A Revolução Industrial determinou o crescimento político e financeiro das cidades e a industrialização teve como reflexo direto a decadência do sistema medieval, baseado no feudalismo e na valorização do poder rural. Substituindo os senhores feudais, a burguesia se afirma como classe social urbana, incentivando a consolidação de instituições que a auxiliem a atingir as metas desejadas. Entre essas instituições, destacam-se a família e a escola, porque surgia, naquele mo-mento, uma nova concepção de criança e de família. O Estado Absolutista, inte-ressado em romper a unidade do poder dos feudos, passa a estimular um modo de vida mais doméstico e menos participativo publicamente. Para tanto, surge um estereótipo familiar baseado na organização patriar-cal e no modelo familiar nuclear. Com a desestruturação da família burguesa, que agora não mais se importava com os elos de parentesco para a sua ascensão, surgiu a estrutura ―unifamiliar privada‖. Esse novo ideal familiar mantinha vínculos afetivos mais fortes entre seus membros. Somente depois dessa mudança de concepção, começou a se pensar em uma literatura para as crianças, pois, até o século XVII, elas eram vistas como adultos em miniatura, portanto era inevitável uma educação dirigida a elas, surgindo, então, a organização escolar. Todavia, naquela época, a literatura baseava-se em uma formação de cu-nho pedagógico, ou seja, incutia normas e valores a serem seguidos pelas pes-soas para poderem viver de maneira correta no meio social em que se encontra-vam. Isso pode ser percebido pela posição hierárquica do adulto frente às crian-ças. Naquele contexto social, conforme destaca Zilberman (1987, p. 18): ―[...] Cri-ança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e te-mem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles pró-prios, ser e temem tornar-se‖. Essa postura é típica da classe burguesa que desejava, com tais atitudes, manter a dominação das camadas sociais inferiores, a fim de que elas a servis-sem e continuassem agindo de acordo com seus interesses e ideais.
Em uma sociedade em que o processo de modernização é flagrante em virtude da industrialização, cabe à escola adequar o jovem a esse novo quadro
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social. Isso é feito, inicialmente, por meio da alfabetização, habilitando a criança a consumir as obras impressas que proliferavam no século XVIII. Com essa visão, abre-se um espaço novo para a criança. No âmbito esco-lar, ela passa a ter acesso a uma literatura previamente selecionada pelo adulto, com o intuito de reafirmar valores e normas e assegurar a formação de indivíduos passivos e obedientes. Dessa forma, a escola também participou de uma ação manipuladora que foi introduzida através da própria literatura, reproduzindo o mundo dos adultos. Os primeiros escritos literários feitos para as crianças foram produzidos por educadores, tendo um forte caráter educativo, já que visavam à manipulação do indivíduo. Por conseqüência, essa produção literária não é entendida como ―arte‖, pois ela possui uma finalidade pragmática. As relações estabelecidas entre litera-tura e educação nem sempre foram positivas, já que as crianças e os jovens não querem aprender somente por meio dela. Por outro lado, a escola é um excelente lugar para que se desenvolva o gosto pela leitura e se mantenha um saudável diálogo entre o livro e seu destinatário mirim. Na literatura infantil, essa negatividade está fortemente presente, pois suas contribuições eram, inicialmente, apenas de cunho pedagógico, como já foi salien-tado. Tanto na literatura quanto na escola, a criança era vista como um ser inferi-or, que obedecia às normas e aos valores ditados pelos adultos, no caso da esco-la, pelo professor. Com essa formação pedagógica incutida nos livros de literatura infantil que, em sua grande maioria, trabalhava o individual através de persona-gens do tipo ―super-heróis‖, tanto a sociedade como a escola, negavam o aspecto social, afetivo, familiar e econômico das crianças.
No momento em que se negava uma educação voltada para o desenvolvi-mento da inteireza do ser, também se negava o direito de livre expressão. Isso, por sua vez, novamente, contribuía para a classe dominante continuar em evidên-cia e, tanto a sociedade como a escola eram partícipes do processo de manipula-ção das crianças, conduzindo-as ao acatamento das normas, sem questioná-las. Assim, de forma inquestionável e praticamente natural, estabeleceu-se um vínculo entre dominador e dominado que reproduzia o modelo capitalista de organização social. Portanto, a emergência dessa literatura associa-se, desde as origens, a uma função utilitário-pedagógica, as histórias eram elaboradas para se converte-
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rem em divulgadoras dos novos ideais burgueses. Dessa forma, a literatura infan-til esteve, durante praticamente todo seu percurso histórico, a serviço da ratifica-ção do cânone do poder: heterossexual, adulto e jovem, europeu, burguês, capita-lista, branco, católico e ocidental. Surge, então, o grande impasse que acompanhará todo o percurso de evo-lução do gênero: arte literária ou produto pedagógico - comercial? Tal impasse faz surgir um questionamento incômodo: se, de um lado, tantas concessões interfe-rem na qualidade artística dos textos, de outro, denunciam, sem concessões de qualquer grau, que a literatura não subsiste como ofício. Ou seja, sem abrir espa-ço para a mediação do leitor no seu processo de elaboração, a literatura não se socializa. No intuito de solucionar toda essa problemática, a literatura Infantil e seus estudos ganham importância. 2.1.3. Literatura: pontos e contrapontos A literatura – infantil, adulta ou senil, esses adjetivos não têm a menor importância – é constituída por textos que rejeitam este-reótipos. Ana Maria Machado, 2001. A literatura infanto-juvenil é uma das mais recentes formas literárias exis-tentes. No Brasil, surgiu quase na metade do século XIX. Em 1808, ao iniciar-se a atividade editorial no país, começa a publicação de livros traduzidos para as cri-anças. As traduções dos livros infantis, inicialmente, não eram adaptadas à reali-dade lingüística brasileira. Além disso, havia a preocupação pedagógica e a ne-cessidade de consolidação dos valores da aristocracia.
De caráter universal, prevalecia uma literatura de cunho moralista, própria do século XIX, direcionada à infância e à adolescência: formadora de caráter, de moral identificável, com modelos de virtude, amor e desprendimento a serem se-guidos pelas crianças e jovens. Os títulos já indicam o seu conteúdo: Modelos para os meninos ou rasgos de humanidade, piedade filial e de amor fraterno, pu-blicado em Recife em 1869 e que consiste numa coleção de historietas recheadas do código moral vigente; e As manhãs da avó : leitura para a infância, publicado
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pela Garnier em 1877, com várias histórias morais dedicadas às mães de família que norteariam seus filhos nos princípios , usos e costumes de nossa terra. Dentre os autores pioneiros que efetuaram uma Literatura comprometida com a transmissão de valores da época e com o didatismo escolar, destacam-se: César Borges (1824 -1891), com O livro do povo (1861); Abílio Antônio Marques Rodrigues (1826-1873), que publicou O método Abílio (1869); Hilário Ribeiro de Andrada e Silva (1847-1886), com A Série Instrutiva (1882); Júlia Lopes de Al-meida (1862-1934), com a obra Contos Infantis (1886); Zalina Rolim (1869-1961) e Francisca Júlia (1871-1920), com as obras Livro das crianças (1897) e O livro da Infância (1899). Outros nomes de grande destaque no universo escolar, durante o entre - séculos, foram: Felisberto de Carvalho - Livros de Leitura e Série Didática (1890); Romão Puiggari - Coisas Brasileiras (1893); Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto - Série Puiggari - Barreto (1895); Arnaldo de Oliveira Barreto - Cartilha das Mães (1895); João Kopke - Livros de Leitura (1895); Fausto Barreto e Carlos Laet - Antologia Nacional (1895) e Figueiredo Pimentel - Contos de Carochinha (1896). Outros escritores também se evidenciaram abundantemente na Literatura infanto-juvenil brasileira : Viriato Correia - Era uma vez (1908); Arnaldo de Oliveira Barreto - Biblioteca Infantil (1915) e Tales de Andrade - Saudade (1919) , mas, fora, sem sombra de dúvida, o escritor Olavo Bilac (1865-1918) uma das maiores expressões literárias do gênero infantil, no Brasil, no início do século XX. Olavo Bilac expressa bem a linha nacionalista no panorama do gênero in-fantil, onde se observam os esforços do escritor em disseminar uma cultura de civismo e patriotismo. Seu nome, conjuntamente com o de Afonso Celso, exprime os ideais do nacionalismo ufano, cujas idéias centrais giram em torno do amor à Pátria e à evocação ao militarismo.
Um dos grandes sucessos na literatura escolar brasileira fora Através do Brasil (1910), obra escrita conjuntamente com o educador Manuel Bonfim (1868/1932). O livro estrutura-se mediante a orientação nacionalista e segue o gênero ―viagem pedagógica‖, que iniciara na Europa, na segunda metade do sé-culo XIX. A grande novidade que o livro traz, à época, é a unidade narrativa. U-nindo o útil e o agradável, os autores desenvolvem as aventuras de dois irmãos
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órfãos e um amigo que, por várias circunstâncias, viajam pelo País. A narrativa, dando maior ênfase às terras do São Francisco, desencadeia informações históri-cas, geográficas ou de ciências naturais, e situações dramáticas e/ou pitorescas. Os valores ideológicos imbuídos em Através do Brasil expressam o idea-lismo da época, valores que se manifestam em torno do ideário nacionalista am-parado nas concepções filosófico-educacionais modernas, associados ao proces-so de expansão da escola, difusão e massificação da leitura literária às classes populares. Os intelectuais compartilhavam das mesmas inquietações sobre a proble-mática educacional; dedicando-se ao trabalho de escrever livros à instrução pri-mária. Para Lajolo (1982), Bilac e Bonfim detinham ―a faca e o queijo na mão: a-lém de uma edificante tarefa patriótica, uma promissora fonte de renda, assegu-rada pela facilidade com que seus livros seriam adotados‖. Além de Através do Brasil, Bilac escreve, em parceria com Coelho Neto, Contos Pátrios e A Pátria Brasileira. No gênero poesia infantil, publica Poesias Infantis (1904), obra de grande sucesso até a segunda metade do Séc. XX. E somente em 1920, Monteiro Lobato realiza um projeto diferente das pro-duções anteriores. Conforme Zilberman e Lajolo (1986) ressaltam, a produção literária de Monteiro Lobato confirma a preocupação estética e emancipadora do texto voltado para o público infantil em oposição ao projeto pedagógico. O Sítio do Pica-pau Amarelo, criação lobatiana, é o ponto de entrada de todas as narrativas, como exemplo: O saci (1921), Reinações de Narizinho (1931), O pica-pau amare-lo (1939), A chave do tamanho (1942), entre outras. Com efeito, uma contribuição lobatiana para a literatura brasileira está em não subestimar a capacidade de entendimento das crianças frente à realidade. Assim, o idealizador do Sítio assumiu uma posição ativa em relação ao quadro social e mostrou o mundo ao público infantil. Tal posicionamento estético e ideo-lógico é expresso pelo filósofo e escritor francês, Jean-Paul Sartre, no livro Que é a literatura, de 1989 (p. 21):
O escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. [...] a fun-
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ção do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. No livro, em que discute sobre quem escreve e para quem se escreve, Sar-tre aponta a necessidade de engajamento por parte do escritor, sugerindo justa-mente o posicionamento assumido por Lobato, que manifesta, sobretudo, através das contundentes perguntas de Emília, a idéia do questionamento de valores por parte de todos, inclusive, das crianças. Nessa mesma perspectiva, em um livro de referência para os estudos de li-teratura para crianças e jovens, Literatura infantil: teoria, análise, didática (2000), Coelho enfatiza o potencial da arte da palavra como agente de transformações da mentalidade: É no sentido dessa transformação necessária e essencial (cujo proces-so começou no início do século XX e agora chega, sem dúvida, às eta-pas finais e decisivas) que vemos na literatura infantil o agente ideal pa-ra a formação da nova mentalidade que se faz urgente (p. 16). Nas décadas posteriores, ocorre crescente produção literária que responde aos mecanismos culturais, políticos e econômicos e se apresenta uma expansão no consumo e na produção de livros. A partir dos anos 60, surge, na literatura, uma multiplicidade de recursos que parece recuperar imagens de um país dividido: de um lado, os que se benefi-ciavam das novas medidas implantadas pelo regime militar, de outro, aqueles que o combatiam à mão armada e a maioria da população que sofria com os baixos salários. Assim como a literatura não infantil, cujo espaço era a representação crítica da realidade, a Literatura Infantil da época procura ingressar nesta tendên-cia. A aproximação entre a literatura infantil de hoje da não infantil aconteceu por meio da temática urbana, da linguagem e da maneira de produção e circula-ção dos livros. Segundo Zilberman e Lajolo (1986) foi por meio das imagens cons-truídas do Brasil presentes nas obras escritas para crianças, que se identificam à ideologia pela qual a literatura infantil contemporânea aproxima-se da não infantil.
Para a felicidade do mercado editorial e dos leitores, muitos escritores de qualidade se destacaram com títulos para o público infantil, porque resolveram
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investir na formação de uma nova mentalidade. De fato, nesse cenário, são mui-tos os nomes que anunciam a influência lobatiana, como Ruth Rocha, Lygia Bo-junga, Ziraldo e, dentre outros, a autora escolhida para este trabalho. A esse res-peito, Ana Maria Machado reflete: Somos um país que teve Monteiro Lobato, então um bando de gente que cresceu lendo e vivendo o universo lobatiano foi virando gente grande e começou a mostrar as marcas disso — justamente essa capa-cidade de não se isolar a fantasia do real (1995, p. 51apud BASTOS). O diálogo da literatura infantil contemporânea com a literatura adulta se dá, ainda, através de recursos semelhantes, tais como o resgate de formas regionais de cultura, como fizeram Jorge Amado e Ariano Suassuna, reelaborando formas de novelas antigas e a estrutura de cordel. A literatura infantil também lança mão dessas recriações nos anos 70. No caminho da metalinguagem, a literatura se tematiza, como nas obras de Clarice Lispector, ou patrocina diálogos e reescritas como em Ana Maria Macha-do, em História meio ao contrário (1978). Nessa narrativa, há reversão das expec-tativas, garantindo a receptividade do texto, invertendo e revertendo os elementos dos contos de fadas tradicionais. No entanto, é a partir dos anos 80 que se dá o boom da literatura infanto-juvenil. Nesse panorama, contextualiza-se a produção literária de Ana Maria Ma-chado, tanto nas obras de cunho infantil e juvenil quanto nas de temas diversos. As obras da escritora, através das personagens e das situações criadas, questio-nam valores, desmantelando preconceitos, principalmente, sobre o enfoque dado à mulher. Cabe à literatura infantil não só iniciar o ser humano no mundo literário, mas ser um instrumento de sensibilidade e uma possibilidade de despertar a consciência, expandindo a capacidade de ver o mundo, sem que, para isso, este-ja a serviço de algum intuito.
Até bem pouco tempo, a literatura infantil era considerada como um gênero secundário, vista pelo adulto como algo pueril (nivelada ao brinquedo) ou útil (forma de doutrinação). A valorização da literatura infantil, como formadora de consciência dentro da vida cultural das sociedades, é bem recente. Com base
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nessas considerações, pode-se depreender a importância da literatura infantil, pois apresenta um potencial de manipulação de ideologias em formação. O movimento da pós-modernidade que, simbolicamente, nasceu com o es-touro da bomba de Hiroshima sobre as rupturas modernas, trouxe mudança de perspectiva nas artes e nas sociedades. A profusão de notícias, a tecnologia vir-tual, o simulacro, a erotização, a ausência de valores e o individualismo são al-gumas marcas dessas transformações do pensamento ocidental. Em plena era da informação, do chamado "Quarto Poder" - os meios de comunicação, os valores passam a ser questionados, dentre eles, a noção de centro. Percebe-se um movimento descentralista e uma valorização dos grupos marginais, das minorias. Nesse sentido, os silenciados pelo cânone, como minori-as étnicas e mulheres, começam a questionar suas posições em relação ao po-der. Abordar qualquer assunto ligado à criança, em se tratando de ocidente, significa tematizar uma minoria, desconsiderada na visão elitista e canônica. Co-mo outras minorias, a criança não tem direito à voz, não dita valores; pelo contrá-rio, é dependente e conduzida por quem detém o poder econômico: os adultos. A literatura para crianças, por muito tempo, reproduziu esse modelo canô-nico. A pós-modernidade, com toda sua linha crítica, incita aos questionamentos em qualquer manifestação da cultura, inclusive, no âmbito da literatura. Dentre nomes de relevo na produção literária infantil brasileira contempo-rânea, figuram autores como Ligia Bojunga, Ruth Rocha, Ziraldo e Ana Maria Ma-chado, já citados, e Sylvia Orthof, Ricardo Azevedo e outros. Os textos desses escritores não apresentam uma visão pronta, mas um convite para partir "do mundo da leitura para a leitura do mundo". Como esta dissertação privilegia Ana Maria Machado, cabe destacar sua declaração no prefácio do livro Contracorrente (1999, p. 7): Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, a-liás. Contra os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento livre. E contra a correnteza que na água ten-ta nos levar para onde não queremos ir. No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado contra a corrente, na maio-ria das vezes. Quando as maiorias começam a virar uma avassa-ladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar como aquilo poderia ser diferente.
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Vale destacar que Ana Maria Machado tanto em Contracorrente (1999) como em Texturas (2001), destaca que o importante realmente, ao abordar litera-tura infantil, é o substantivo ―literatura‖ e não o adjetivo ―infantil‖. Assim, ressalta que literatura infantil diz respeito àquela que também pode ser lida por crianças. Segundo a escritora permite aumentar o campo semântico do substantivo literatura, já que de maneira geral não carrega a noção de que in-clui livros destinados aos jovens. Portanto, não se trata pura e simplesmente de livros somente para crianças, porém antes de tudo, trata-se de literatura - de nar-rativas que ao rejeitar o estereótipo, primam pela invenção. 2.1.4. A literatura infanto-juvenil e pós-modernidade Entre 1950 e 1960, notou-se que o Modernismo tinha se tornado centrali-zador, clássico e canônico. O Pós-modernismo caracteriza-se como uma reação ao elitismo do Modernismo. Conforme Leyla Perrone-Moisés (1998, p. 183): ―A definição do pós-moderno se faz, quase sempre, pela forma negativa, a partir de um feixe de traços filosóficos ou estilísticos opostos aos modernos‖. O pós-modernismo pode ser considerado um ―movimento‖ estético e filosófico, com Ni-etzsche, Lyotard, Foster e outros, que começou na segunda metade do século XIX e vem, talvez, até os dias de hoje. A literatura pós-moderna mostra um rompimento com a desconstrução da linguagem, da identidade e da própria escrita. Os traços ditos pós-modernos são: heterogeneidade, diferença, fragmentação, indeterminação, relativismo, desconfi-ança nos discursos universais dos metarrelatos, identificados como totalitários, e o abandono das utopias artísticas e políticas.
O pós-modernismo pode ser visto sob duas vertentes, denotando um perí-odo que analisa a situação da cultura da sociedade ocidental a fim de mostrar o conjunto da expressão popular e da comunicação de massa, bem como destacar as manifestações culturais da época atual na história da infra-estrutura econômica e industrial. A segunda vertente seria como gênero ou estilo estético: termo analí-
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tico-descritivo com convenções técnicas e metodológicas próprias, crítica à lin-guagem, à identidade, à verdade. Podendo ainda ser aplicado a outras manifesta-ções culturais além da ficção, como à arquitetura, à pintura, etc. Percebe-se que, no final do século anterior, transformou-se a concepção de identidade que sofreu sensíveis mudanças por influência do descentramento. Essa mudança de eixo em relação ao cânone implica dissolução de fronteiras e imprime transformações essenciais no campo cultural, com reflexos na literatura. Em função da fragmentação também no âmbito social, há um descentra-mento do sujeito e uma interpenetração dos discursos. Através dos múltiplos olha-res sobre a realidade, a filosofia ocidental se baseia na legitimação interesseira das estruturas de poder: a oposição binária entre o bem e o mal justifica e perpe-tua a divisão da sociedade em um grupo de homens poderosos e em uma maioria de ―outros‖, constituídos de negros, pobres e mulheres. Toda a filosofia ocidental se constitui em um artifício para servir os interes-ses dessa minoria que detém o poder econômico mutuamente excludente. Pela ótica do pós-moderno, o ser é fragmentário por excelência e o discurso oficial é subvertido por vozes minoritárias deixadas, até então, à margem. Dessa forma, as tendências multiculturalistas intensificadas a partir da dé-cada de 80 promovem o descentramento cultural, emergindo a preocupação com a valorização dos produtos culturais locais e sua relação com as demais culturas, sem hegemonias. Como resultado, outros estados, fora do binômio Rio de Janeiro - São Paulo, estão se assumindo enquanto produtores de cultura brasileira e não como meros receptores. Assim, o mundo contemporâneo se vê aniquilado em indícios múltiplos e fragmentários, enquanto o ser humano encontra-se em uma busca intensa de si mesmo. Nessas inúmeras possibilidades, promove-se uma união entre a arte e a vida, o cotidiano está sendo desnudado nas ínfimas peculiaridades e crueldades. A mídia se encarrega disso.
As adversidades políticas não mergulharam o país em uma calmaria cultu-ral, ao contrário, as décadas de sessenta e setenta assistiram a uma produção cultural bastante intensa em todos os setores. Assim, a produção contemporânea deve ser entendida como as obras e movimentos literários surgidos nessas déca-das e que refletiram um momento histórico caracterizado, inicialmente, pelo auto-
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ritarismo, por uma rígida censura e enraizada autocensura. Seu período mais crí-tico ocorreu entre os anos de 1968 e 1978, durante a vigência do Ato Institucional nº 5 (AI-5). Somente após sua extinção, o país passou por uma progressiva nor-malização. No que diz respeito à literatura, na pós-modernidade, as formas não estão prontas nem definidas e a fragmentação da narrativa é latente. O pluralismo e o ecletismo de estilos são a norma, por isso o leitor pós-moderno deve preencher as suas lacunas, uma vez que as produções são intertextuais e reinventam um novo real. Diante do exposto, o leitor deve usar sua imaginação, interagir com os sen-tidos. Acontece, então, uma excelente união entre as propostas pós-modernas e o real propósito da literatura infantil, juvenil e adulta, pois seu objetivo primordial é mexer com o imaginário de crianças, adolescentes e adultos, bem como contribuir para formar leitores críticos e criativos.
2.1.5. Literatura e formação do leitor
Celebrar a democracia significa também não tolerar a intolerância. Ana Maria Machado, 2001 Durante a ditadura militar no Brasil (1964 – 1985), muitos autores brasileiros encontraram na literatura infantil o espaço para expor seus questionamentos e protestos contra a política de repressão imposta pelo governo. Tudo isso só foi possível porque a literatura infantil sempre foi considerada um gênero menor, sem maiores perigos, coisa de mulher e, portanto, não era alvo do olhar incisivo dos censores. Vários autores denunciavam, através de textos dirigidos ao público infantil, os abusos de poder e a realidade político-social do país. Ana Maria Machado, em seu livro de artigos, Texturas (2001, p. 81), registra bem esse momento do qual participou ativamente:
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[...] por incrível que pareça, os militares não deram a menor impor-tância aos livros para criança. [...] E acabou ocorrendo algo ines-perado: foi justamente a partir do AI-5 que houve o chamado bo-om da literatura infantil brasileira [...]. A responsabilidade de produzir para o público infantil e juvenil é muito mais preocupante, pois as histórias revelam, em suas entrelinhas, todo um código de ética. O conceito de infância mudou, as relações culturais mudaram e, como re-flexo de tudo isso, a literatura mudou. Não se entendia mais a criança como um ser a ser moldado em um adulto exemplar. Sempre que se discutem questões relativas ao incentivo à leitura, surge o problema do valor financeiro de cada exemplar e da falta de poder aquisitivo da maioria da população brasileira. Não é por falta de dinheiro que não se lê e, sim, por falta de uma tradição cultural nesse sentido. Ana Maria Machado revela seu percurso de leitora a escritora e frisa que sua família era de origem humilde, mas valorizava a leitura como ferramenta de ascensão social. A perspectiva de Ana Maria Machado sobre o poder da leitura perpassa por essa formação familiar. Em Texturas (2001), revela-se uma concepção de leitura que acaba por se tornar o cerne da poética de Ana Maria Machado en-quanto escritora para crianças: Se a boa leitura garante a possibilidade de ascensão social e a tomada de uma parcela de poder, desenvolvendo a capacidade de ler entrelinhas e pensar pela própria cabeça, pode ser muito peri-goso para os privilegiados assegurar a imersão da população em um ambiente de bons livros (MACHADO, 2001, p.184). Nelly Novaes Coelho (2000) levanta várias características de estilo e estru-tura referentes à literatura infantil / juvenil contemporânea. A maioria delas é refle-xo das tendências pós-modernas, como a abordagem de temas e recursos anti-gos a fim de integrá-los as novas estruturas. Algumas particularidades sobre tema e forma de traços pós-modernos, se-gundo Coelho (2000):
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Seqüência narrativa – procuram-se propor problemas a serem soluciona-dos de maneiras diferentes, muitas vezes, co-participativamente, ao invés de apresentar respostas prontas. Personagens – emergem as individualidades que se incorporam ao grupo-personagem, com tendência à valorização de grupos, patotas, a persona-gem-coletiva. Surge o espírito comunitário e a individualidade do herói está pouco presente. As soluções apresentadas durante a efabulação depen-dem da colaboração de todos. Identifica-se, por vezes, uma individualidade não integrada no grupo. Nesse caso, presencifica-se a personagem questi-onadora que põe em xeque as estruturas prontas, um convite à reflexão. Voz narradora – mostra-se mais consciente da presença de um leitor pos-sível, em um tom mais familiar e até de diálogo. Não cabe mais tratar o lei-tor como receptor da mensagem, pois não há passividade. A perspectiva é de interlocutor, em tempos de valorização da análise do discurso e da pragmática. Ato de contar – crescente valorização da linguagem e todos os processos a ela relacionados. São freqüentes as abordagens metalingüísticas, com histórias falando de si mesmas e de seu fazer-se. Espaço – pode ser um simples pano de fundo para personagens ou parti-cipar da dinâmica da ação narrativa. Percebe-se uma preocupação cres-cente de mostrar as relações existentes nesse espaço, a fim de conduzir à reflexão. Nacionalismo – busca das origens para definir a brasilidade em suas mul-tiplicidades culturais, com identificação não só sul-americana como africa-na. Procura delimitar uma nova maneira de ser no mundo: a brasileira. Exemplaridade – deixa de ser usada somente com intenção pedagógica e passa a revelar a ambigüidade natural do ser humano, sem maniqueísmos. Tende a ser uma maneira de propor problemas a serem resolvidos e esti-mular a optar conscientemente nos momentos de agir.
Muitas características apresentam-se como marcas pós-modernas e as encontramos na maioria das obras infantis, juvenis e adultas de Ana Maria Ma-chado.
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2.2. Os caminhos da teoria: a recepção e o efeito Como nosso objetivo de análise consiste em reconhecer a construção das personagens femininas nas obras de Machado, não podemos deixar de destacar a recepção crítica do corpus delimitado, a fim de observarmos se os textos con-formam o leitor, traduzem regras de conduta, por meio de um narrador autoritário, ou, mesmo, se as narrativas apresentam um caráter emancipatório, pela organi-zação e multiplicidade de pontos de vista que emergem do texto, assegurando ao leitor a liberdade de escolha. Sob esse aspecto, valemo-nos dos estudos de Hans Robert Jauss e Wolf-gang Iser, sobre a Estética da Recepção e a Teoria do Efeito, que atribuem à lei-tura uma natureza emancipatória, quando: ―A experiência da leitura logra libertá-lo [o leitor] das opressões e dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o o-briga a uma nova percepção das coisas‖ (JAUSS, 1994, p. 52).
Para Jauss2, a literatura não desempenha um papel meramente reprodutor, pois pode modificar as percepções de vida do leitor, uma vez que ele é o respon-sável pela atualização da obra literária. 2.2.1. Jauss e a estética da recepção A estética da recepção é a teoria da literatura formulada por Hans Robert Jauss e seus colegas da Escola de Constança, no final da década de 60, desen-volvida a partir do trabalho A história da literatura como provocação à teoria da literatura (1994) que retoma a problemática da história da literatura.
Jauss coloca em discussão, por não compartilhar com a orientação da es-cola idealista ou da escola positivista, a construção de uma história literária, uma vez que ambas não realizam seus estudos embasados na convergência entre o aspecto histórico e o estético, criando, assim, um vazio entre a literatura e a histó-ria. A inexistência desse nexo resulta, portanto, em pesquisas que se preocupam
2 Teórico alemão Hans Robert Jauss proferiu uma aula inaugural na Universidade de Constança, em 1967, em que elaborava pesada crítica às formas tradicionais da História da Literatura e lançava as bases do que viria a ser a Estética da Recepção.
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apenas com as obras e seus autores, deixando à margem o terceiro elemento do circuito literário, os leitores. Segundo Jauss, as demais teorias limitam-se a compreender o fato literário no âmbito da estética da representação e da produção, isso significa a exclusão da dimensão da leitura e do efeito, que é a privilegiada pela Estética da Recep-ção. O propósito desta é apresentar uma visão diferenciada da história da literatu-ra pautada na historicidade da obra de arte literária, já que ela ―não repousa em uma conexão de ‗fatos literários‘ estabelecida post festum, mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores‖ (JAUSS, 1994, p. 25, grifo do autor). Sob esse ponto de vista, a estética da recepção toma como objeto de in-vestigação o receptor. Isso exige dela a construção de uma nova concepção de leitor que assume, então, ―seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhe-cimento estético quanto para o conhecimento histórico: o papel de destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa‖ (JAUSS, 1994, p. 23). Com a mudança do foco de investigação para a recepção, o fato literário passa a ser descrito a partir da história das sucessivas leituras por que passam as obras, as quais se realizam de um modo diferenciado através dos tempos, por-que, a obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um moem umento a revelar monologicamente seu Ser atempo-ral. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das pa-lavras e conferindo-lhe existência atual (JAUSS, 1994, p. 25).
Desse modo, a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre li-teratura e leitor, acarretando um processo de interação entre eles, cujo grau de perenidade depende dos referenciais estético-ideológicos que os configuram. Em face da natureza dialógica dessa relação, a obra literária só permanece em evi-dência enquanto puder interagir com o receptor. O parâmetro de aceitação é o horizonte de expectativas, composto pelo sistema de referências que resulta do conhecimento prévio que o leitor possui do gênero, da forma, da temática das o-
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bras já conhecidas e lidas e da oposição entre as linguagens poética e pragmáti-ca. O sistema de referências, contudo, não se restringe aos aspectos estéticos da obra, pois, no ato da leitura, também entra em jogo a experiência de vida do leitor. Entre a leitura de uma obra e o efeito pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado. No processo de realização da leitura literária, o horizonte de expectativas do leitor pode ser satisfeito ou quebrado por uma determinada obra. Dessa rela-ção de satisfação ou ruptura de horizontes, pode-se estabelecer a distância entre a expectativa do leitor e sua realização, denominada por Jauss de distância esté-tica, que indicará o caráter artístico da obra. Ocorrendo a satisfação, a obra caracteriza-se como sendo ―arte culinária‖, ou de mera diversão, isto é, literatura de massa, visto que não exige nenhuma mudança de horizonte, servindo apenas para reforçar as normas literárias e soci-ais em vigor. Em virtude dessas reações, Jauss formula a seguinte teoria: somente a quebra ou a ruptura de expectativas será indicativa do valor estético de um texto, cuja avaliação, a partir da distância estética, se torna bastante independente da visão particular do crítico. Tal postura, para Regina Zilberman (1989), aproxima Jauss dos formalistas e estruturalistas, pois esse critério recupera o efeito de estranhamento da obra de arte literária proposto por tais teorias. Portanto, a reconstrução do horizonte de expectativas possibilita, às obras consideradas clássicas, o retorno do seu viés emancipador, perdido por causa do processo de canonização, que as tornaram incapazes de suscitar novos questionamentos.
Reconstruir os horizontes de expectativas de uma obra em relação ao pro-cesso de produção e recepção sofrido por ela em épocas distintas significa en-contrar as perguntas para as quais o texto constitui uma ou mais respostas. A ló-gica da pergunta e da resposta é o mecanismo da hermenêutica que permite i-dentificar o horizonte de expectativas do leitor e as questões inovadoras a que o texto apresenta uma ou mais respostas, como também mostrar como as compre-ensões variam no tempo. Assim, o sentido de um texto é construído historicamen-
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te, descartando-se a idéia de sua atemporalidade. É a partir do confronto desses dois pólos que a distância estética pode ser estabelecida. Partindo desses princípios, as grandes obras são as que, permanentemen-te, provocam nos leitores, de diferentes momentos históricos, a formulação de novas indagações que os levem a se emanciparem em relação ao sistema de normas estéticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela literatura é fruto do seu caráter social, pois, para Jauss, a interação do indivíduo com o texto faz com que o sujeito reco-nheça o outro, rompendo, assim, com o seu individualismo e promovendo a am-pliação dos seus horizontes, proporcionada pela obra literária. A experiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dile-mas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma no-va percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibi-lidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do compor-tamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, a-brindo, assim, novos caminhos para a experiência futura (JAUSS, 1994, p. 52). A estética da recepção, portanto, é o instrumental teórico adequado para fundamentar, a partir dos conceitos de recepção, horizonte de expectativas, dis-tância estética e lógica da pergunta e da resposta, a análise das personagens femininas nas narrativas de Ana Maria Machado, que constituem o corpus deste trabalho. A fim de se compreender o processo de produção - recepção da obra lite-rária infantil, juvenil e adulta, tendo como referência o leitor e com base nos con-ceitos selecionados da estética da recepção, é possível delinear o horizonte de expectativas das crianças, adolescentes e adultos de diferentes classes sociais. Esse horizonte é materializado em normas literárias e concepções de mundo, presentes nas narrativas infantis, juvenis e adultas reproduzidas nos textos literá-rios escolhidos. Uma das tarefas da teoria recepcional, em conformidade com Zil-berman (1989), é a reconstrução desse horizonte, objetivando explicitar a relação da obra literária com o seu público.
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2.2.2. Iser e a teoria do efeito
O conceito de leitor implícito, desenvolvido por Wolfgang Iser3, representa uma conquista importante para a estética da recepção. Para ele, a fonte de auto-ridade da interpretação é tanto o texto como o leitor, pois se trata de uma constru-ção. Assim, o texto busca designar instruções para a produção de um significado e o leitor produz o seu próprio significado, já que o sentido do texto é algo produ-zido por um processo de interação entre as duas partes (texto e leitor) indepen-dentes. O papel do texto é designar orientações para a produção de um sentido, que, no caso da literatura, é o objeto estético: Nesse sentido, a seleção, a partir do qual se constrói o texto literá-rio, possui caráter de acontecimento, e isso porque ele, ao intervir em uma determinada organização, elimina sua referência (ISER, 1996, p. 11). Dessa forma, o papel do leitor é seguir tais instruções ou orientações e produzir o seu significado. Então, "sentido" não representa algo, é um aconteci-mento: ―O caráter de acontecimento do texto se intensifica pelo fato de que os elementos selecionados do ambiente do texto são por sua vez combinados entre si‖ (ISER, 1996, p. 11), pois o texto não pode ser visto como um todo, mas como a convivência de vários pontos de vista. O leitor o percebe de uma maneira glo-bal, uma vez que a experiência da leitura não se dá apenas pelo texto em si, nem só pela subjetividade do leitor, porque se trata da junção destes dois fatores que permite o processo de construção de significado, ou sentido, no texto.
Para Iser, os textos literários são distintos dos não literários, especialmente dos científicos, pela presença de "vazios" ou "intervalos" que acabam sendo pre-enchidos pela "disposição individual" do leitor. Assim, a estrutura do texto permite modos diferentes de alcançar seu potencial, o leitor deve construir suas cone-xões, as sínteses que individualizam o objeto estético. Então, o autor valoriza a imaginação criativa do leitor, por exemplo, ao lermos um romance, deparamos
3 Wolfgang Iser, explorando os caminhos abertos por Hans Robert Jauss, percebe que uma teoria da recep-ção conduz, necessariamente, a uma reflexão sobre o imaginário: a recepção não é primariamente um proces-so semântico, mas sim o processo de experimentação da configuração do imaginário projetado no texto. Pois, na recepção se trata de produzir, na consciência do receptor, o objeto imaginário do texto, a partir de certas indicações estruturais e funcionais. Por este caminho se vem à experiência do texto.
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com espaços a serem preenchidos pelo leitor. Diante da obra abstrata, cada es-pectador se projeta e interpreta de forma diferente, de acordo com seu próprio repertório. O autor concebe o texto como um objeto, sob um aspecto espacial, com uma determinada forma, e, sob um aspecto temporal, em que a produção de sig-nificado literário é um processo que o texto põe em movimento. O elemento subje-tivo não é arbitrário, pois é guiado ou moldado pelas estruturas do texto. E, mes-mo dentro desses limites, ele exige o exercício da liberdade de interpretação. Como o texto literário é detentor de sentidos múltiplos, sua teoria responde às críticas que realçam o papel dos leitores, pois estes possuem uma atuação predominante. Assim, o texto não contém um significado, e esse significado não é uma entidade, mas, sim, um acontecimento dinâmico. Por isso o texto desperta, no leitor "implícito", uma interpretação, a partir de seu próprio repertório, e esse repertório é constituído de experiências da vida so-cial, cultural, comunitária. Afinal, como toda linguagem é eminentemente social, o leitor passa a ter um papel mais atuante quando guiado pelas direções indicadas pelo texto, que é uma espécie de guia de orientação, ou seja, algo que se instru-mentaliza para possibilitar encontrar o sentido. Para Iser, não é preciso escolher entre o significado planejado e os signifi-cados de nossas subjetividades, pois, quando o leitor constrói sua estrutura de sentidos, ele está sendo fiel ao significado autoral, pois o significado de interpre-tação é necessário para a sua existência. Iser considera válido o estudo das dife-rentes interpretações do texto de um autor ao longo do tempo, como um estudo da estética. Então: [...] o texto é o processo integral, que abrange desde a reação do autor ao mundo até sua experiência pelo leitor.Nesse processo, no entanto, fases podem ser distinguidas, pois nelas acontece uma mudança daquilo que as precede (ISER, 1996, p. 13).
A importância do papel do leitor faz com que ele se beneficie mais da expe-riência literária, abrindo a oportunidade de olhar as "forças" que o guiam e o orien-tam. Essas forças são sistemas de pensamento que refletem a realidade e for-
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mam a base para a conduta de relações humanas. O distanciamento permite uma melhor visão dessas forças. Iser acredita que a literatura e a vida se completam, entretanto, a literatura não é mimética, ou seja, não é uma mera cópia representativa da vida. Ela permi-te um distanciamento que possibilita reconhecer as deficiências e os mecanismos do sistema social. Salienta, ainda, que a literatura põe em cheque noções con-vencionais de validez e coerência, promove mudanças e crescimento no indiví-duo, uma vez que a autoconsciência se desenvolve no processo da leitura. O significado do texto não está marcado dentro dele, mas sim no fato de li-berar o que está preso dentro de nós. Cada texto novo constitui seu próprio leitor, definindo a reciprocidade existente entre o significado constituído e o dado pelo autor e sua consciência no processo da leitura. Esta noção de concretização refere-se à atividade do leitor, responsável pelo preenchimento dos espaços de indeterminação contidos na obra. O texto prevê um leitor, implicitamente, que seria mais adequado para definir as estrutu-ras de sua pré-compreensão. Iser acentua um dos pontos teóricos básicos da Es-tética da Recepção, salientando que a obra literária é comunicativa desde a sua estrutura, pois necessita do leitor para a constituição de seu sentido. O autor trabalha com a noção de "estruturas de apelo do texto" que prede-terminam as reações do leitor. ―Por causa dessas estruturas, o leitor converte-se em um ponto chave da obra que só pode ser compreendida enquanto uma moda-lidade de comunicação‖ (ZILBERMAN, 1989). O conceito de leitor implícito, evocado pela estética da recepção, dirige uma abertura ao leitor, deixando claro que não se trata de abordar empiricamente a entidade leitor, mas diz respeito a um ser virtual, imprescindível para dar consti-tuição e sentido à obra que, isolada, não possui significado algum, torna-se inerte. O conceito de Wolfgang Iser de leitor implícito, contrariamente, enfatiza a dimen-são comunicativa inerente aos próprios textos. Desse modo, o leitor implícito de Iser não se refere a um leitor individual, empírico, ou a um leitor ideal do texto literário, mas sim a estratégias de comuni-cação do texto, que exercem certo controle, por convidar ou privilegiar específicas respostas.
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O leitor implícito é uma ação textual que, ativamente, confirma, interfere e rompe com um padrão de comunicação de uma cultura que está, presumidamen-te, internalizado por seu leitor. Iser se preocupa com o aspecto interativo da leitu-ra, em detrimento da tentativa de compreender a ação de leitores individuais que nunca poderão verificar suas respostas em uma situação face a face: ―Pois é só na leitura que os textos se tornam efetivos [...]‖ (1996, p. 48). Para o autor, a interação texto e leitor se refere a um leitor individual. O texto começa a transferência que, somente será bem-sucedida, se conseguir ati-var certas disposições da consciência do leitor – a capacidade de apreensão e de processamento. Portanto, as estratégias narrativas e as estruturas de apelo do texto consti-tuem-se de regras e instruções predeterminadas que auxiliam o leitor no processo de compreensão do texto. Para ativar a leitura, essas estratégias e estruturas dis-põem de mecanismos de orientação, uma espécie de "modos de usar", que guiam o leitor à interpretação, transformando o destinatário em uma peça básica para constituir sentido à obra, concebida enquanto modalidade de comunicação. Essas estratégias, além de contribuírem para discutir o campo da recepção na literatura, tornam-se relevantes. Os procedimentos teórico-metodológicos utili-zados para se entender essa relação dialógica sujeito-objeto estético podem ser-vir como referenciais para investigar o processo de construção das personagens femininas nas obras do corpus desta dissertação. Ao encerrar este capítulo, podemos detectar a importância da literatura na formação do ser humano, uma vez que possibilita reflexões, desde o momento em que tentamos defini-la: ―A historicidade da leitura reforça as transformações por que passa a literatura‖ (ZILBERMAN e MAGALHÃES, 1982, p. 78). As indagações suscitadas pelos textos literários, que inquietam a alma hu-mana, fazem com que reflitamos sobre a importância do seu estudo. O prazer de sua leitura deve ser propiciado para a maioria das pessoas, pois ―o leitor não é um ente passivo; a obra dirige-se a ele e a seus valores, sob a forma de um ques-tionamento‖ (ZILBERMAN e MAGALHÃES, 1982, p. 78). Para que isso ocorra, devemos investir na formação do leitor. Para tanto, abordamos a teoria da estética da recepção e a teoria do efeito, pois nos dão sus-tentação para prosseguir os estudos aqui propostos.
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Passaremos agora para a contextualização da autora em foco, pois isso possibilitará uma aproximação maior do leitor, no momento em que as obras fo-rem abordadas.
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CAPÍTULO III – CONTEXTUALIZAÇÃO DE ANA
Escrever é um ato solitário, um momento individual de expressão, uma trajetória par-ticular e única de quem escreve. Ana Maria Machado, 1999. Concluímos o capítulo anterior discorrendo sobre a literatura, literatura in-fantil e juvenil, desde seu surgimento, na Europa e no Brasil, até os dias atuais, a formação do leitor, bem como a importância da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito para embasar nossos estudos, encerrando, assim, o panorama histórico da literatura e da produção literária direcionada para diferentes leitores. Agora, canalizamos nossa atenção para a apresentação da escritora. Este capítulo está dividido em três partes, enfocamos, primeiramente, os dados gerais de Machado e de sua obra, a fim de melhor situar o leitor, no tópico intitulado: Caminhos de Ana. Uma vez apresentada a trajetória da autora, discorremos sobre as obras em que a escritora se dedica a produzir conhecimento: Ana produzindo conhecimento. Na seqüência, abordamos o interesse da crítica sobre sua produ-ção literária: Ana e seus leitores. 3.1. Caminhos de Ana Todo cidadão tem o direito de ter acesso à literatura e de descobrir como partilhar es-sa herança humana comum. Ana Maria Machado, 2001.
De acordo com o site www.anamariamachado.com/biografia/biografia Ana Maria Machado (Rio de janeiro – RJ, 1941), na vida da escritora, os números são generosos, pois são 33 anos de carreira, em torno de 130 livros publicados no Brasil e em mais de 17 países, somando mais de dezoito milhões de exempla-res vendidos. Os prêmios conquistados ao longo de sua carreira também são mui-tos; tudo impressiona na vida dessa carioca nascida em Santa Tereza, em pleno dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Vivendo atualmente no Rio de Janeiro,
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começou a carreira como pintora, objetivo primeiro, mas optou por privilegiar as palavras, apesar de continuar pintando até hoje. Durante a ditadura, no final do ano de 1969, depois de ser presa e ter di-versos amigos detidos, partiu para o exílio. Na França, tornou-se professora na Sorbonne. Nesse período, participou de um seleto grupo de estudantes, cujo mes-tre era Roland Barthes, e terminou sua tese de doutorado em Lingüística e Semio-logia sob a sua orientação. A tese resultou no livro Recado do Nome, que trata da obra de Guimarães Rosa. Voltou ao Brasil em 1972, e, escondida por um pseudônimo, ganhou o prêmio João de Barro, por ter escrito o livro História Meio ao Contrário, publicado em 1978. O sucesso foi imenso, gerando muitos livros e prêmios. Em 1993, tornou-se hors-concours dos prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Finalmente, a coroação, em 2000, ganhou o prê-mio Hans Christian Andersen, considerado o prêmio Nobel da Literatura Infantil Mundial, oferecido por International Board on Books for Young People. Em 2001, a Academia Brasileira de Letras lhe concedeu o maior prêmio li-terário nacional, o Machado de Assis, pelo conjunto da obra. E em 2003, Ana Ma-ria Machado foi eleita para ocupar a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, substituindo o Dr. Evandro Lins e Silva. Pela primeira vez, uma autora com uma obra significativa para o público infantil havia sido escolhida para a Academi-a. A posse aconteceu no dia 29 de agosto de 2003. Ela foi recebida pelo acadê-mico Tarcísio Padilha e fez uma bela homenagem ao seu antecessor. Quanto aos textos, Ana Maria Machado revela uma produção literária de qualidade e, com certeza, suas narrativas exercem grande poder na reestrutura-ção da sociedade e na transformação de valores e atitudes.
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3.2. Ana produzindo conhecimento Numa democracia, a gente tem que aceitar até mesmo os mais diferentes, mesmo a-queles pirados que querem ser iguaizinhos aos outros, se vestem igual, falam igual, pensam igual, e abrem mão do que só eles têm em particular. Ana Maria Machado - 2001 Atualmente, a produção da autora não está tão associada à literatura rotu-lada como infanto-juvenil, pois escreve também romances para adultos. Com i-números títulos publicados, foram vários anos de dedicação à literatura. As pres-sões da ditadura, já mencionadas nesta dissertação, favoreceram o universo in-fantil, com autores de qualidade como Ana Maria Machado. Plenamente consciente do valor da literatura e de que a palavra é poder, Ana Maria Machado se dispõe a escrever para interferir nesse processo. Em uma profusão típica da pós-modernidade, os leitores podem escolher entre mais de cem títulos para o público infantil e juvenil, oito romances para adultos, cinco li-vros de ensaios, a vertente virtual na Internet, além de muitas traduções, adapta-ções e palestras pelo Brasil e pelo exterior. Ressaltamos, então, a importância dos textos teóricos da escritora, conforme explanação a seguir. Em Recado do nome - Leitura de Guimarães Rosa (1976), que foi a Tese de doutorado de Ana Maria Machado, orientada pelo famoso semiólogo francês, Roland Barthes, ela faz a leitura da obra de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. Um texto indispensável para aqueles que pretendem fruir toda a riqueza do universo de Guimarães Rosa. Já em Contracorrente: conversas sobre leitura e política (1999), a escritora reúne uma coletânea de artigos e conferências, cuja preocupação principal é a literatura. Longe de tratar o assunto com excessos teóricos e tentativas de inter-pretações originais, Ana Maria Machado prefere o diálogo franco com o leitor. Os temas vãos se sucedendo, como nas conversas entre amigos: globalização, curi-osidade e coragem, leitura, livros e tecnologias.
No livro intitulado - Texturas: sobre leitura e escritos (2001), a autora tem o intuito de discutir leituras, livros e personagens. Então, Ana Maria Machado reuniu
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artigos, ensaios, palestras e até prefácios. São textos distintos, mas que, reuni-dos, formam um conjunto de idéias a respeito dessas questões. Em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Ana Maria Machado conta como, desde cedo, apaixonou-se por Dom Quixote. Conse-qüentemente, sentia-se bem acompanhada por Drummond e Robinson Crusoé, Clarice e Narizinho, Hemingway e Huckleberry Finn. O livro parte de premissas evidentes, mas nem sempre compreendidas: ler não é obrigação, é direito; clássi-co não é o que é velho, mas o que é eterno sem sair de moda; forçar a ler é ino-cular o horror a livro; para começar a ler os clássicos, não é preciso ler o original. Assim, a partir dessas quatro regrinhas básicas, Ana Maria Machado nos conduz por uma irresistível viagem pelo maravilhoso mundo dos clássicos. Por isso, em 2002, recebeu, por este livro, considerado ―O melhor livro Teórico‖, o Prêmio Ce-cília Meirelles, e, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (Teórico), o FNLIJ, em 2003, como ―Altamente Recomendável‖. Ao escrever Ilhas no tempo: algumas leituras (2004), Ana Maria Machado convida a descobrir e explorar o prazer da leitura. O livro é um registro de uma época e do que pensa uma escritora brasileira. São textos férteis que fazem bro-tar em nós um leque de sensações: reflexão, convívio, compartilhamento de idéi-as e ideais e, principalmente, prazer, o raro prazer de ler um bom texto. Machado fala de escrita, de livros, de leitura e de literatura. Ela trata igualmente de política, de cultura, de liberdade, de história e de histórias, é claro. No entanto, não esque-ce das pessoas que marcaram sua vida e logo compreendemos o que Ruth Ro-cha, Aluísio Carvão e Monteiro Lobato têm em comum. Aborda todos esses te-mas, propondo análises sobre o tempo e a sociedade contemporânea, sugerindo uma leitura de nós mesmos e da vida que vivemos. Balaio - Livros e leituras (2007) é o sexto volume dessas coletâneas. Neste livro, dividido em quatro blocos temáticos, a autora põe à disposição do público algumas observações anteriormente restritas às platéias de congressos, seminá-rios e encontros dos quais participou. Os textos tratam de temas diversos, alguns são sobre criação literária e a palavra escrita em geral, outros versam sobre cer-tas questões culturais contemporâneas.
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Publicou, ainda, o livro Romântico, sedutor e anarquista – Como e por que ler Jorge Amado hoje (2006), no qual provoca uma reflexão mais aprofundada sobre o romancista e defende como incontestável a qualidade das obras do escri-tor baiano, autor de uma literatura que ousou falar brasileiro. 3.3.Leitores de Ana: o interesse da crítica sobre Ana Maria Machado Não tenho compromisso com mensagem. Meu objetivo é contar uma história. Isso significa transmitir uma perplexidade, uma procura de sentido, perguntas e dúvidas. Não conheço história que não seja assim, para qualquer idade. Ana Maria Machado, 2005. Os estudos sobre os textos da escritora Ana Maria Machado revelam o re-conhecimento de seu compromisso e a importância de sua obra para crianças, jovens e adultos, ressaltando-se, principalmente, seu caráter inovador. A partir da década de 80, encontramos vários trabalhos publicados sobre a produção literária infantil e juvenil da escritora Ana Maria Machado. No livro Literatura Infantil e Juvenil: Das origens Orientais ao Brasil de Hoje (1981), Nelly Novaes Coelho, no Apêndice da segunda parte, item 20, cita a estru-tura em cadeia que Machado utiliza em sua obra, Uma Boa Cantoria (1980), em que tudo, desde as ilustrações, mostra a intenção da reinvenção de nossas tradi-ções. A escritora conta o caso do boiadeiro que chega cantando com seu carro de boi, em um reino onde o Rei havia proibido o canto. Desafiando tal proibição, o boiadeiro prossegue cantando e arrastando todos por onde passava e que o se-guiam, também, cantando. E a história prossegue até que, reunindo todo o povo, acabou por fazer cair a proibição do Rei, que também foi envolvido pela cantoria. Aí está uma alegre brincadeira que, no fundo, tem um amplo e significativo alcan-ce.
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Ainda na segunda parte da obra, O ―Álbum de Figuras‖ no Brasil, em que enfoca O atual panorama editorial na área da Literatura Infanto-Juvenil, Coelho destaca as obras de Ana Maria Machado: O gato do mato e o Cachorro do Morro (1980), da série Lagarta Pintada (Ed. Ática – São Paulo), como boas obras escri-tas nessa linha, em que a imagem é sempre portadora de uma ―mensagem‖ fa-cilmente captada pela criança, em histórias curtas e divertidas, em torno de uma ―situação‖ que atrai a atenção das crianças e na qual, os bichos são personagens. ―A imagem, sem dúvida é o foco do maior interesse da narrativa [...]‖ (1981, p.127). E entre os títulos que valem a pena registrar, ainda nessa linha de álbuns–de-figuras está uma obra de Ana Maria Machado: Era uma vez, três (1981). Se-gundo Coelho, entre dezenas de bons escritores, surgidos na década de 70/80, e que têm contribuído, das mais diferentes maneiras, para a descoberta dos novos caminhos da Literatura Infanto-Juvenil, está o nome de Ana Maria Machado. No Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira de Nelly Novaes Coelho (1984), o verbete Ana Maria Machado apresenta informações sobre a es-critora e algumas de suas obras publicadas desde 1977, dividindo-as em faixas etárias, fazendo a apreciação de cada uma delas. Ao todo, são elencados vinte livros da escritora: 1) Bento-que-bento-é-o-frade (1977), 2) Currupaco, Papaco (1977), 3) Severino faz chover (1977), 4) História meio ao contrário (1978), que foi premiada, ainda no original, com o Prêmio Jabuti/1978), 5) O menino Pedro e seu Boi Voador (1979), 6) Raul da Ferrugem Azul (1979), 7) O gato do mato e o ca-chorro do morro (1980), 8) O domador de monstros (1980), 9) Uma boa cantoria (1980), considerado por Nelly como uma pequena obra prima 10) O barbeiro e o coronel (1980), 11) Ah, cambaxirra se eu pudesse (1981), 12) Pimenta no cocoru-to (1982), 13) Bem do teu tamanho (1980), 14) Era uma vez três... (1980), 15), Era uma vez um tirano (1981), 16) De olho nas penas (1981), que recebeu a alta consagração do prêmio Casa de las Américas (Cuba), 17) Palavras palavrinhas palavrões (1982), 18) História de Jabuti sabido com macaco metido (1982), 18) Bisa Bia Bisa Bel (1982), que ganhou o Prêmio Maioridade Crefisul/1981, ainda no original, foi contemplado, também, com o Prêmio Literatura Juvenil/1982, con-cedido pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), 19) Um avião e uma viola (1982) e 20) O menino que espiava para dentro (1982), os dois últimos sem análises.
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Nelly Novaes Coelho (1984) ressalta que Ana Maria Machado, desde 1977, quando iniciou sua produção de literatura infantil, tem sido uma das escritoras mais premiadas entre nós. No livro, Literatura Infantil - Teoria. Análise. Didática, de Nelly Novaes Coe-lho (2005), a autora, no capítulo 3: A literatura infantil/juvenil brasileira no século XX - Linhas ou tendências da literatura infantil/Juvenil Contemporânea, diferencia linhas ou tendências de criação literária e seleciona cinco linhas básicas, que se desdobram em outras, classificando as obras de Ana Maria Machado, como se-gue: . Realismo crítico (participante ou conscientizante): obras atentas à realidade social e cuja matéria literária é orientada e filtrada por uma perspectiva político-econômico-social: o livro De olho nas penas (2005, p.156); . Realismo lúdico: obras que enfatizam a aventura de viver, as travessu-ras do dia-a-dia, a alegria ou conflitos resultantes do convívio humano: Bento-que-Bento-e-o-frade, Currupaco e O Domador de Monstros (2005, p.157); . Realismo humanitário: obras que, atentas ao convívio humano, dão ên-fase às relações afetivas, sentimentais e humanitárias: Bisa Bia Bisa Bel (2005, p. 157); . Maravilhoso satírico: narrativas que utilizam elementos literários do pas-sado ou situações familiares, facilmente reconhecíveis, para denunciá-las como erradas, superadas e transformá-las em algo ridículo. O humor é fato básico nes-sa diretriz: História meio ao contrário e Uma boa cantoria (2005, p.159); . Maravilhoso popular ou folclórico: contos, lendas e mitos: narrativas que exploram nossa herança folclórica européia e nossas origens indígenas ou africanas: História de jabuti sabido com macaco metido (2005, p, 160); . Maravilhoso fabular: situações vividas por personagens-animais, que podem ter sentido simbólico, satírico ou puramente lúdico: Pimenta no cocoruto (2005, p.160); . Linha da narrativa por imagens: livros que contam histórias através da linguagem visual, de imagens que ―falam‖: Coleção mico Maneco (2005, p.161).
A autora, na terceira parte de sua obra, intitulada A Literatura infantil – o vi-sual e o poético, no capítulo 2. Da Linguagem iconográfica à verbal, em que dis-corre sobre imagem/texto/leitor, relacionando as características dos livros infantis
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adequadas às categorias do leitor, especificamente, quando trata da Idéia-Eixo X Construção Formal, destaca as seguintes obras de Machado: . Ênfase na necessidade de amor e carinho: que é natural em todos os seres. Estímulo à amizade, à solidariedade. Valorização das relações eu/outro: Menina bonita do laço de fita (2005, p.215); . Os impulsos naturais na infância: os medos que precisam ser enfrenta-dos e superados, a curiosidade que faz parte do crescimento e amadurecimento do ser: Alguns medos e seus segredos e O Domador de monstros (2005, p.215); . Apelo à consciência ética e/ou crítica em relação ao respeito devido aos direitos naturais ou civis de cada um: Uma boa cantoria; Era uma vez um tira-no (2005, p.216). Na obra Um Brasil para crianças - Para conhecer a literatura infantil brasi-leira: histórias, autores e textos (1986), de Regina Zilberman e Marisa Lajolo, no capítulo IV, A Literatura Infantil Brasileira: Arte, Pedagogia, Indústria (1965-1980), as autoras falam sobre a metalinguagem, em como a literatura se tematiza a si mesma, ou então patrocina diálogos com outros textos, através de paródias e re-escritas, como na obra História meio ao contrário (1977), de Machado. Conside-ram tanto a metalinguagem quanto a intertextualidade procedimentos literários cujo significado pleno só ocorre a partir do momento em que o gênero no qual elas se manifestam já se solidificou, pois é primordial para relembrar aos leitores os textos nos quais se basearam as reescritas. Ainda na década de 80, em O que é Literatura Infantil (1986), Lígia Cader-matori discorre sobre Ana Maria Machado como uma das mais prolíferas autoras do gênero. Em História meio ao contrário (1977), narrativa que inverte e reverte os elementos dos contos de fadas tradicionais, a reversão das expectativas, sinal dos tempos, garante a receptividade do texto.
Destacamos no livro A literatura infantil na escola (1987) de Regina Zilber-man, no capítulo intitulado: O livro para crianças no Brasil, mais especificamente, no item 3. O exemplo da literatura brasileira, ressalta que a obra História meio ao contrário tematiza sua condição desde o início, a inversão do modelo do conto de fadas, pois inverte a seqüência narrativa, ao elucidar, no título, que as ações se desenrolarão ―meio ao contrário‖. Mesmo sendo ―meio ao contrário‖ o conceito de inversão é relativizado, porque não se trata de um elemento negativo e de outro
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positivo, assim, não há divisão maniqueísta. Machado verbaliza que o processo será diferente neste relato: ―Tem uma história que acabou assim. Mas este é o começo da nossa‖ (1977, p.71). E sintetiza em poucas linhas o desdobramento usual do conto de fadas, a fim de tornar evidente que o desenrolar da história será outro. Em um processo de renovação, esta obra transita no âmbito da natureza, ressaltando seu caráter benéfico. Por esta razão, converte-se no cenário por ex-celência para a formação da personalidade, de modo que as personagens, jovens e crianças, necessariamente, passam por uma transformação ao seu contato. Em O estranho mundo que se mostra às crianças (1983), Fanny Abramovi-ch fala das tentativas de participar do cotidiano da criança, acrescentando-lhe po-esia e humor, admitindo a dificuldade de compreender o seu universo mágico, de maneira lúdica e bela, como no livro O menino Pedro e seu boi voador (1979), escrito por Ana Maria Machado: Aí ficou mais divertido ainda. Porque a mãe de Pedro dizia coisas assim: - Será que ele tem cabelo azul da cor do céu e os braços cor do mar? - Não, mamãe, nada disso. Adivinha... - Será que têm lábios de rubi, dentes de pérola e cabelos de ouro? - Mamãe é um amigo, não uma vitrina de joalheria [...] (apud, A-BRAMOVICH, 1983, p. 23). A autora acrescenta ter constatado com alegria o crescimento (em quanti-dade e qualidade) de um grupo dos mais sólidos de autores que mais têm a dizer à criança, respeitando-a e fazendo-a crescer, por meio de suas narrativas, sem-pre contundentes, pertinentes e belas. Dentre os autores, está Ana Maria Macha-do, pois, segundo Abramovich, Machado discute com as crianças, através de seus livros, as questões de poder, de autoridade, das mudanças possíveis dos caminhos políticos, de modo compreensível e inteligente.
Em Literatura infantil – Gostosuras e bobices (1989), Fanny Abramovich, em um dos tópicos abordados - A Prosa Poética - diz haver muita beleza em al-gumas histórias infantis brasileiras, de pura prosa poética, e enfatiza que Ana Ma-ria Machado, ao contar, em O menino Pedro e seu boi voador (1979), o quanto a fantasia de uma criança é negada, ridicularizada, incompreendida e desvaloriza-
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da, mostra – lá no finalzinho – como ela surge vitoriosa e conquistadora. Ninguém acreditava na existência do boi voador... Pois então: Ficaram todos tão embevecidos com o boi voador que nem nota-ram que de repente toda aquela beleza virou surpresa. Ele sentou para comer, e beber com a fome e a sede de quem acabava de muito voar e brincar (apud, ABRAMOVICH, 1989, p. 92). E nas suas Dicas de Livros Infantis, nesta mesma obra, destaca quatro o-bras de Ana Maria Machado: O menino Pedro e seu boi voador (1979), História meio ao contrário (1977), Do outro lado tem segredos (1980) e De olho nas penas (1981). No Guia de leitura para alunos de 1º e 2º graus, Regina Zilberman e Maria da Glória Bordini (1989), apoiadas no resultado de uma pesquisa financiada pelo INEP/MEC, realizada pelo Centro de Pesquisas literárias da PUC-RS, constata-ram obstáculos na formação do leitor, como o desconhecimento, por parte dos professores, do acervo literário de obras destinadas ao público infantil e juvenil. Os textos que fazem parte do corpus selecionado foram analisados cuidadosa-mente, observando-se a sua construção lingüística e estilística. Assim, na parte inicial do guia, as autoras tratam da fundamentação teórica sobre a leitura e literatura para crianças e jovens, a comunicação de massa e a constituição de bibliotecas como vias de acesso mais comuns ao livro, no Brasil. O guia apresenta uma subdivisão por série para facilitar a consulta dos livros, com referências bibliográficas completas, descrição da narrativa, apreciação dos as-pectos estéticos e ideológicos. As pesquisadoras contemplaram o aspecto eman-cipatório dos textos literários. A última seção é constituída de um índice de gêneros e autores, o que faci-lita o manuseio do livro. Verifica-se, no guia, uma reflexão sobre várias obras de Machado, como o livro Alguns medos e seus segredos (1984), cuja temática a-borda o medo infantil. Quanto aos aspectos estéticos e ideológicos desse texto, conforme Zilberman e Bordini (1989) há nessa obra a tentativa de desmistificação dos medos infantis. As autoras ressaltam a ilustração em cores vibrantes, a qual facilita o acompanhamento visual do texto.
Na narrativa O Domador de monstros (1980), a linguagem é clara e a temá-tica principal do texto é mostrar como o medo pode ser banido quando se resolve
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enfrentar o que nos atemoriza. Já em O barbeiro e o coronel (1984), Machado explora os aspectos humorísticos, a temática é a supremacia da inteligência sobre a força, o autoritarismo é questionado e o poder ridicularizado, através de uma linguagem viva e espontânea. A obra O Menino que espiava pra dentro (1985) a história é contada de uma forma vibrante e comunicativa, por meio da riqueza de imagens e situações e da engenhosidade com que a seqüência da narrativa se intercala com as ilustra-ções criativas. O livro é um convite à reflexão para construir um mundo melhor com liberdade. No texto Mandingas da Ilha Quilomba (1984), Machado faz uma crítica ao autoritarismo. Embora assuma um caráter moralizante, o texto se destaca pela trama na qual realidade e fantasia não apresentam elementos precisos. Do outro lado tem segredos (1985) trata da discriminação de raças, o texto mostra um uni-verso de sensibilidade e simplicidade que, geralmente, não é retratado em histó-rias infantis. Lúcia Pimentel Góes (1984), em Introdução à literatura infantil e juvenil, no capítulo IV, mais especificamente no item 10: Histórias maravilhosas modernas, que tratam do maravilhoso dentro do real com intencionalidade crítica, destaca a obra Bisa Bia Bisa Bel (1982) que narra as aventuras de uma jovem que, quando descobre o retrato de sua bisavó, repensa a própria realidade, encontra sua iden-tidade e se situa melhor como mulher no mundo. Assim, apresenta uma análise da condição feminina em nossa sociedade. Discorre, ainda, sobre a obra De olho nas penas (1981) que narra a história de um filho de exilados políticos brasileiros e suas viagens por cinco países. A busca de sua identidade amplia-se para a busca do próprio sentir latino-americano. Segundo Góes, a leitura deste texto não é fácil, mas, nem por isso, menos enriquecedora.
Em Literatura infanto-juvenil – Um gênero polêmico, organizado por Sonia Salomão Khéde (1983), obra composta de onze textos, escritos por vários auto-res, todos discorrem sobre Literatura Infanto-juvenil. A organizadora escreve o primeiro texto da obra, intitulado: As polêmicas sobre o gênero, e explicita que os estudos reunidos na obra são caracterizados pela polêmica em torno da qual gira o tema e como, a cada dia, ganha espaço nas discussões contemporâneas, por
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relacionar-se com diversas áreas afins: pedagogia, crítica literária, bibliotecono-mia, psicologia, ilustração e, evidentemente, a indústria cultural. Khéde (1983, p. 9) afirma que: ―A literatura infanto-juvenil continua sendo uma questão de adultos que vão pensá-la partindo da necessidade histórica da revisão de como lhes foi imposto o próprio ato de ler‖. E, para aqueles que com-preendem a literatura infanto-juvenil como um gênero fechado, por questões his-tóricas, defende o lugar do leitor nesse processo, como modificador desse es-quema pré-fixado. Porém, para os defensores dessa opinião, há necessidade de distinguir literatura e educação, pois é este o ponto de conflito. Khéde apresenta a opinião de Ana Maria Machado: [...] tanto faz, ela não reage mesmo... E quando reage, não é chamada de criança, vira menor, pivete, trombadinha [...]. Quando se focaliza literatura para crianças, é costume afastar a luz do tex-to e fazê-la incidir sobre o receptor [...]. Confunde-se estético com ética, literatura com educação e acaba não se fazendo nem um nem outro [...], [...], Simplesmente, rasteiramente [...] porque litera-tura e educação são incompatíveis... Caminham em sentidos exa-tamente opostos (apud KHÉDE, 1983, p. 9). Ana Maria Machado questiona a literatura não rotulada, pois o sistema e-ducacional em nosso país tenta incutir, através de seus órgãos centrais, uma não diferenciação dos indivíduos, com o intuito de moldar pessoas, sem respeitar às características pessoais e culturais de cada um. Porém, a literatura deve ver a criança como o sujeito da ação e valer-se disso para permitir a mudança desse sistema. A literatura deve propiciar às pes-soas o questionamento, a crítica a esse sistema, pois o texto literário possibilita outras maneiras de conhecimento pelas várias formas de transgressão que apre-senta. Enfatiza que os autores de literatura infanto-juvenil contemporânea estão conscientes das singularidades dessa produção e tentam não reproduzir textos autoritários como os precedentes, apesar de não deixarem de tematizar o autori-tarismo. Isso constitui mais uma evidencia da existência do problema.
Em As aventuras do boi voador (1980), de Ana Maria Machado, a situação enfocada é que os mais velhos (donos do saber e do poder) são desmascarados,
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todos estão errados, só a criança é a dona da razão. Essa posição favorável é fruto também da dicotomia, porque, quando pende para a criança, resulta em um autoritarismo às avessas. Outra característica do gênero infanto-juvenil é a meta-história ou a anti-história. Ao desejar romper com a ordem tradicional nos planos interno e externo, os textos tendem a se tornarem paráfrases de outros: [...] E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre...Tem muita história que a-caba assim. Mas este é o começo da nossa (apud, KHÉDE, 1983, p. 13). Em História meio ao contrário (1978), pressupõe-se o conhecimento de ou-tros textos tidos como tradicionais, para que se instaure o clima propício para a denúncia: Diante de tantos e tão tenebrosos perigos o Rei tratou de fazer o que sempre fazem os reis das histórias: nada. Quer dizer, tratou de arranjar quem fizesse alguma coisa por ele [...] para o questio-namento de arbitrariedades e preconceitos frutos da ideologia burguesa [...] a gente só sabe mesmo é trabalhar. Nenhum de nós entende dessas coisas de lutas e aventuras [...] (apud, KHÉDE, 1983, p.13). Conforme Khéde (1983), os textos infanto-juvenis se estabelecem, na mai-oria das vezes, sobre a dicotomia: dominador/dominado (adulto: criança). Os au-tores que escrevem para o público infanto-juvenil, em sua maioria, pertencem a grupos sociais privilegiados, incorporando, assim, a ideologia própria de sua posi-ção dentro da esfera social.
Na obra O texto sedutor na literatura infantil (1986), Edmir Perrotti, no capí-tulo 7, uma abordagem sobre a Geração 70 – Impasses e Renovação, discorre sobre o ―utilitarismo às avessas‖, enfatiza que o discurso utilitário procurou sem-pre oferecer, a crianças e jovens, atitudes morais e padrões de conduta a serem seguidos a fim de adaptar a criança e o jovem à vida social burguesa. Esperava-se dos autores da ―nova‖ literatura um questionamento de tal posição. Segundo o autor, no entanto, não foi bem isso que ocorreu. Ao contrário do que se esperava,
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em nível de discurso, detectou-se o uso utilitário como modelo do ―utilitarismo às avessas‖. Nesta narrativa, na verdade, questionam-se os valores burgueses, mas dentro dos padrões discursivos iguais aos usados pelo discurso utilitário. Dentre os vários escritores desta geração, Ana Maria Machado se utilizou do ―utilitarismo às avessas‖. Edmir Perroti (1986) reconhece ser, a autora, um dos nomes mais importantes do gênero. Premiada tanto no Brasil quanto no exterior, dedicou-se à renovação da literatura infantil, porém o empenho não foi suficiente para libertá-la do utilitarismo em algumas obras, ainda que às avessas, como na obra Raul da ferrugem azul (1979). Embora a perspectiva da autora seja radicalmente diferente da do autor tradicional em relação aos conteúdos propostos e de não deixar de ser um livro renovador, pois toma partido da criança, procurando valorizar os seus sentimen-tos, Perroti afirma que o discurso da obra não consegue realizar o salto em nível dos conteúdos, moldado segundo o modelo utilitário tradicional. Ou seja, o livro é ―utilitário às avessas‖, busca o ensinamento, exibe um modelo de criança ideal, revela preocupação em ensinar ao leitor formas de conduta. Ele enfatiza que a narrativa se sustenta no talento de Ana Maria Machado, que cuidou do discurso para não ser excessivamente doutrinário e explorou como ninguém, o humor, a-menizando o utilitarismo. Neste livro, a escritora parece querer ensinar crianças tímidas a se defenderem: [...] Raul da Ferrugem azul pretende instaurar uma nova ―ilusão‖, uma nova ―ordenação metódica‖ do mundo e das pessoas [...]. Por isso, a discussão levantada pelo narrador a respeito do papel do imaginário e, por extensão, da literatura, junto da criança, aponta para uma resposta normativa e utilitária quanto às respostas da-das pela tradição (PERROTTI, 1986, p. 125). Perrotti, prossegue sua explanação com exemplos extraídos do texto e fi-naliza, registrando que faltou no texto, um tratamento estético compatível com sua temática. Assim, a obra fica no meio do caminho entre a tradição e o novo.
O livro Ética, estética e afeto na literatura para crianças e jovens (2001), que tem como organizadora Elizabeth D‘Angelo Serra, destaca outra linha segui-da por alguns dos melhores autores: aquela em que fantasia e realidade se inter-penetram na discussão de temas relevantes. Como é o caso de Ana Maria Ma-
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chado, em História meio ao contrário (1978), na qual os elementos dos contos de fadas são decompostos e reconstruídos, invertendo as relações de poder. Nessa mesma obra, no texto escrito por Emília Gallego Alfonso, intitulado Despalavra e moralidade na literatura infantil em que enfoca o tema sobre ―as bombas inteligentes‖ e sua problemática, Alfonso cita Ana Maria Machado e a palestra que proferiu ante o perigo de extinção que ameaça a palavra escrita, na conferência de encerramento do 24º Congresso Internacional do IBBY, em Sevi-lha (1995). Na obra Ao longo do caminho (2003), Laura Sandroni publica uma seleção de resenhas sobre obras infantis e juvenis e cita Ana Maria Machado em vários momentos. O primeiro livro destacado por ela é Bento-que-bento-é-o-frade (1977), que é o primeiro livro escrito por Machado. Ao abordá-lo, tece comentários favoráveis em relação ao texto, pois, na época em que foi escrito, o Brasil estava na época da Ditadura Militar e pensar criticamente era proibido, quanto mais dis-cordar do sistema vigente. Sandroni ressalta que a escritora, assim como outros escritores conscientes de sua responsabilidade, criou histórias em que os heróis assumem atitudes de rebeldia ante a passividade reinante. Isso ocorreu em Ben-to-que-bento-é-o-frade: Seu personagem, Nita, é uma menina que a narrativa surpreende em pleno Bento-que-bento-é-o-frade com os amigos, na rua de uma cidade qualquer. Todos fazem tudo que seu mestre mandar sem discussão. Todos menos Nita. A cada ordem dada, ela res-ponde com uma indignação, um argumento. Sua visão das coisas é diferente, ela interpreta as ordens a seu modo. (SANDRONI, 2003, p. 50). Ao abordar o livro Bem do seu tamanho (1980), os comentários de Sandro-ni são favoráveis tanto à obra, que recebeu o prêmio Chinaglia, quanto à autora. Diz ser uma narrativa elaborada na qual se encontra todas as características que fazem de Ana Maria Machado uma das escritoras mais importantes do Brasil. Nessa narrativa, a escritora explora o ludismo das palavras para revisitar brinque-dos e costumes comuns às crianças do interior do Brasil. O ―enfoque valoriza as coisas simples e dá importância ao que realmente conta‖ (SANDRONI, 2003, p. 96).
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Em De olhos nas penas (1981), Sandroni (2003, p. 106) destaca a criativi-dade e a poeticidade da escritora: ―O poder criativo de Ana Maria Machado se evidencia ainda mais fortemente nesse texto. Sua força poética tem um tal vigor que muitos duvidarão de que seja literatura juvenil‖. Esta narrativa recebeu vários prêmios, dentre eles, Casa de las Américas, em Cuba, 1981. Continua sua explanação, enfocando várias obras escritas por Ana Maria Machado: Severino faz chover (1977), recomendando-a com entusiasmo; O me-nino Pedro e seu boi voador (1979), em que valoriza o imaginário e o resgate da fantasia; Raul da ferrugem azul (1979), livro que, considera Sandroni, é a afirma-ção da escritora como uma das melhores para crianças; Bem do seu tamanho (1980), em que destaca a fusão realidade/fantasia que Machado realiza de forma perfeita; Era uma vez três (1981) que, além da aventura do texto, propõe a des-coberta de um dos nossos maiores pintores. É preciso ressaltar os comentários que Laura Sandroni (2003) tece sobre a obra Bisa Bia Bisa Bel (1982): é o texto mais bem realizado da autora até então, é um livro delicioso, bonito e comovente. Aponta, ainda, A peleja (1986), obra que introduz a arte popular brasileira. San-droni comenta que Machado optou por uma narrativa em versos estruturada em redondilha maior – a métrica popular, inspirada na literatura de cordel, para mos-trar esculturas que reproduzem, com fidelidade, hábitos, bichos e festividades do Nordeste. No livro Questões de literatura para jovens (2005), organizado por Miguel Rettenmaier e Tânia M. K. Rösing, Fabiane Verardi Burlamaque, no texto Raul da ferrugem azul: uma experiência de leitura interdisciplinar, discorre sobre o traba-lho interdisciplinar desenvolvido com a respectiva obra de Ana Maria Machado, na Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. João Carlos Magalhães, na cidade de Sarandi - RS, município próximo a Passo Fundo-RS. O trabalho, chamado Pré-Jornadinha da escola, proporcionou o diálogo efetivo entre os alunos e as discipli-nas, por meio do livro Raul da ferrugem azul (1979), escolhido pelos professores. Burlamaque ressalta que os alunos ficaram envolvidos e encantados com a histó-ria por transportá-los para o mundo da fantasia, imaginando-se personagens.
Ana Maria Machado também é citada na obra À roda da leitura-língua e li-teratura no jornal proleitura (2004), o texto Às voltas com o narrador, escrito por Alice Áurea Penteado Martha, realça a importância do narrador e sua função no
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mundo narrado. Martha cita como exemplo de narrador liberal, o livro de Macha-do: O domador de monstros (1979), em que o narrador, mesmo fora da história, possibilita uma interação com o personagem Sérgio por se valer tanto da sua voz como de sua visão para contar a história. No mesmo livro, Ana Maria Machado é mencionada novamente no texto Li-teratura infanto-juvenil: útil, mas não utilitária - escrito por Neuza Ceciliato de Car-valho, em que aborda o papel que deve ter a literatura infanto-juvenil na escola. Nesse texto, ela evidencia o papel da escritora ao escrever contos de fadas reno-vados, pois o mundo real e o ficcional se mesclam de maneira criativa e crítica, atrelados à realidade social brasileira, e propiciam ao leitor uma tomada de posi-ção diante de padrões instituídos. Na obra Territórios da leitura – da literatura aos leitores (2006), no texto A visão premiada da infância: a legitimação do livro infantil, Cristine Zancani se pro-põe a investigar a visão da infância através das personagens que protagonizam as obras premiadas pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Destaca o livro Raul da ferrugem azul (1979) de Ana Maria Machado, que rece-beu o título de melhor publicação para criança, pois o protagonista é um menino que fica abalado quando descobre o aparecimento de manchas de ferrugem cada vez que ele deixa de agir. Assim, comenta Zancani, Machado inicia a história com um problema inusitado e, dessa maneira, prende a atenção do leitor para tentar resolver a difícil situação instaurada no mundo narrado. Não esgotamos os trabalhos sobre a recepção crítica literária das obras de Ana Maria Machado, mas, a partir dos textos que selecionamos, tentamos recons-truir os estudos sobre a produção infantil e juvenil dessa escritora. A partir da dé-cada de 80, inicia-se a recepção crítica sobre a produção de Machado, como pu-demos observar por meio do material coligido.
Em síntese, vimos, no decorrer deste capítulo, a trajetória de Ana Maria Machado, falamos um pouco de sua vida, dos trabalhos desenvolvidos antes de ser escritora, como enveredou pelos caminhos da literatura e mostramos um pou-co de seus livros focados em produzir conhecimento. Para concluir, destacamos o interesse da crítica literária em relação a sua produção. A explanação foi realiza-da para que o leitor pudesse se situar em relação à escritora e às obras que serão
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analisadas na seqüência. Assim, em vista das considerações delineadas, convém procedermos à análise interpretativa e comparativa do corpus.
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CAPÍTULO IV – NA TRILHA DAS PERSONAGENS FEMININAS DE ANA
Se falo como mulher, ando como mulher, sinto como mulher, sem dúvida olho o mundo e escrevo como mulher. Mas não sei de que modo essa minha escrita será diferente e não me preocupo em saber, prefiro seguir fazendo o que sempre fiz e lidar com a criação intuitivamente. Ana Maria Machado, 1999. Terminamos o capítulo anterior discorrendo sobre a vida e a obra da autora e acerca do interesse da crítica sobre a sua produção literária, encerrando, assim, a apresentação de Ana Maria Machado e de sua obra ao público leitor. Cabe, neste momento, canalizarmos nossa atenção na análise do corpus proposto. Em vista das explanações feitas anteriormente a respeito da autora, pude-mos visualizar algumas de suas várias peculiaridades: a Ana estudante de belas Artes, a Ana jornalista e exilada política, a Ana dona de livraria, a Ana produzindo conhecimento, a Ana escritora de obras literárias para leitores diferenciados, a Ana palestrante, a Ana membro da Academia Brasileira de Letras. É concentrando-nos na Ana - escritora que abordamos, nos tópicos seguin-tes, a análise da construção das personagens femininas em suas narrativas, le-vando em conta a estrutura temático–formal e a linguagem e estabelecendo um diálogo com as teorias de Jauss e Iser, com o auxílio de estudos sobre a perso-nagem de Candido e do narrador, com Mieke Bal. Ressaltamos que a meta principal nesta dissertação é a personagem de ficção, sempre complexa e múltipla porque, na sua construção, é possível combi-nar inúmeros elementos de caracterização, os quais se podem dizer, incontáveis, quando comparados aos traços humanos detectados no modo de ser cotidiano das pessoas. ―O próprio cotidiano, quando se torna tema de ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação limite do tédio, da angústia e da náusea‖ (CANDIDO, 1968, p. 46).
A composição desses elementos, organizados dentro de uma determinada lógica, cria a ilusão do ilimitado, fazendo com que uma figura humana simples e
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comum, como a criança, a adolescente e a mulher de Ana Maria Machado assu-ma uma potencialidade de sentimentos, um espaço sem fronteiras, assim: Graças à seleção dos aspectos esquemáticos preparados e ao ‖potencial― das zonas indeterminadas, as personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a sua concreção in-dividual; e mercê desse fato liga-se a experiência estética, à con-templação, a intensa participação emocional (CANDIDO, 1968, p. 46; grifo do autor). Com certeza, não será possível esgotar as inúmeras possibilidades de a-bordagem do texto literário, mas podemos suscitar reflexões acerca da obras da autora. Iniciamos com as análises das obras direcionadas ao público infantil: Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia Bisa Bel (1982) e Menina bonita do laço de fita (1984). Em seguida, enfocamos as narrativas destinadas ao leitor juvenil: Isso ninguém me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), Amigo é comigo (1999). Para concluir este capítulo, serão analisadas as produções literárias dire-cionadas ao leitor adulto: Alice e Ulisses (1983), Tropical sol da liberdade (1986) e A audácia dessa mulher (1999). Dentre as abordagens propostas, procuramos salientar como as narrativas estudadas contribuem para a formação do leitor, a partir do modo como ele é es-timulado a preencher os ―vazios‖ presentes nas estruturas dos textos. 4.1. Ana e as meninas arrojadas A leitura não é apenas uma porta para mundos mágicos e maravilhosos, é tam-bém uma ferramenta de sucesso. Ana Maria Machado - 1999 A produção literária infantil tem como intuito principal despertar nas crian-ças o gosto pela leitura e ampliar os horizontes destes leitores:
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Sua função primeira é despertar, na criança e no jovem, o gosto pela leitura e permitir-lhes um contato com a realidade que o cer-ca. Seja prosa de ficção, poesia ou teatro, suas histórias abrangem aventuras subli-mes, trágicas, pitorescas, patéticas, de mis-tério, de ficção científica etc (SOUZA, 2006, p. 54). Podemos dizer que é nos primeiros anos de nossa infância que formamos o gosto pela leitura, portanto é preciso oportunizar a criança a chance de conviver com livros desde cedo, ‖não só com o livro como objeto, mas também com o texto do livro, o enredo, a história, mesmo que lida em voz alta por um adulto‖ (SAN-DRONI, 2003, p. 11). As narrativas de Machado fomentam a imaginação, a inda-gação e oferecem outras realidades possíveis que propiciam fisgar este leitor tão ávido por aventuras. É evidente, então, que todo esse processo de aproximação à leitura deve ser realizado ainda na primeira infância. Entretanto, isso não significa que o contato com a literatura e a formação do hábito também não possam ocor-rer posteriormente. 4.1.1. As crianças [...] o imaginário expresso nos livros para crianças e jovens vem cobrir compensações da sociedade para suas frustra-ções e tensões, e isto é válido tanto para os adultos que produzem os livros como para os jovens que os lêem. Maria Alice Faria, 1999 4.1.2.Bem do seu tamanho (1980): perspectivas do tamanho - grande ou pe-quena?
Bem do seu tamanho (1980) relata a história de uma menina, Helena, que não sabe se é grande ou pequena, porque seus pais falam que ela é grande para isso e pequena para aquilo. Nessa dúvida, ela sai para viajar em busca de uma resposta. Helena realiza uma trajetória, menina - mora no campo - espaço bastan-te limitado e incapaz de responder a sua incessante indagação: ‖Eu quero mesmo
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é saber como é que eu sou, se sou grande ou sou pequena‖ (MACHADO, 1980, p.10). Podemos dizer que Bem do seu tamanho (1980) é um livro de respostas, assim: alguém tem uma dúvida e faz o possível para saná-la. Segundo Jauss: ―A história das interpretações de uma obra de arte é uma troca de experiências ou, se quisermos, um jogo de perguntas e respostas‖ (1989, p.63, apud, ZILBER-MAN). Na casa onde Helena mora há somente um espelho de parede, que a im-pede de ver todo o seu corpo. Então, ela resolve sair de sua casa para conhecer o mundo e tentar descobrir seu tamanho verdadeiro. Na viagem, arranja dois ami-gos, Tipiti e Flávia, e, juntos, vão em busca da resposta. O percurso das persona-gens é marcado por vários fatos: dormem na mata, conversam sobre o tamanho, a magia que as palavras possuem e se deparam com um espantalho, com o no-me de Pé da Letra. Esses acontecimentos e o desfecho da história propiciam o esclarecimento sobre a questão de Helena, pois, ao chegarem à cidade, justamente quando está ocorrendo uma festa e com muitas pessoas, conhecem um fotógrafo e um realejo que ajudam a esclarecer o questionamento da personagem. Helena chega à con-clusão de que tamanho é uma questão de perspectiva, é algo bastante relativo, pois as coisas e os seres não são estáticos e não permanecem sempre no mes-mo lugar, estão sempre se modificando. A narrativa é conduzida por um narrador onisciente. Helena é focalizada in-ternamente. Seus pensamentos e indagações são explicitados pelo narrador que tudo vê, interferindo e comentando não só as ações da protagonista, bem como das demais personagens: Mas como o corpo de Bolão já estava tão maduro que daí a pouco esborrachava e Helena queria continuar com seu Bolão, o jeito foi fazer um de abóbora – daquelas compridas, que dão voltinhas. Fi-cou até engraçado, imagine só, um boi de mamão feito de abóbo-ra e com o pescoço metido a enrolado (MACHADO, 1980, p. 7-8).
A visão do narrador, embora onisciente, confere relativa autonomia às per-sonagens, buscando não interferir na ação, apenas tecendo comentários e tradu-
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zindo certas concepções de mundo. Mesmo parecendo ser um comentário de ―a-dulto‖, o trecho destacado abaixo é perfeitamente aceitável como sendo de Hele-na: — Mas, pai, você não acha que mamãe vai ficar muito cansada? Já trabalhou o dia inteiro, ainda vai fazer um bolo, e no fim ainda precisa passar um vestido. — Não posso fazer nada. Isso é serviço de mulher. [...] — Estou falando com meu Boi de Mamão. Estou explicando a ele que serviço de homem dentro de casa é ficar sem fazer nada en-quanto a mulher faz tudo. E estou explicando a ele que é porque homem é forte. [...] O pai resolveu explicar: — É que homem sai de casa, trabalha o dia todo, fica cansado, traz as coisas para dentro de casa, comida, roupa. — Mulher também. A mãe ajuda a plantar feijão na roça, traz água do poço para dentro de casa, traz roupa lavada da beira do rio dentro da bacia. E agora está fazendo bolo enquanto você está aí enrolando seu cigarro de palha. — Você tá querendo o quê? Que eu vá passar roupa? Não faltava mais nada. — Se você é forte demais e não agüenta, não precisa ir. Não faz mal. (MACHADO, 1980, p. 11-12) Desta forma, sentimos que o narrador transfere sua visão de mundo para a personagem e transmite ao leitor a impressão de que a personagem fala por si mesma. Temos a nítida impressão de que Helena fala sem a mediação do narra-dor. Isso pode ser observado na espontaneidade da pergunta, por meio da simpli-cidade com que é formulada. Portanto, a opção por esse recurso narrativo, narrador em terceira pessoa, projetando-se na personagem, além de propiciar um encurtamento estético entre texto e leitor, permite ainda aproximar as diferentes visões das demais persona-gens, que se complementam. Esse foco narrativo possibilita um discurso coerente com os questionamentos que a narrativa propõe por meio da personagem Helena e, ao mesmo tempo, contempla a significativa intervenção das outras persona-gens no crescimento da protagonista. Convém destacar, ainda, o fato de Helena estar à procura de alguma coisa e não tê-la ao seu alcance. O narrador não dificulta sua busca, mesmo tendo uma visão onisciente, o desfecho da narrativa só ocorre com a ação da personagem na construção de seu crescimento interior.
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Para o enfoque aqui proposto, verificar como são construídas as persona-gens femininas em Bem do seu Tamanho, esse fato é de extrema importância, pois é através da personagem principal e de seus questionamentos que se de-senvolve toda a ação da narrativa e a outra personagem, Flávia, que Helena en-contra no caminho e se torna sua amiga, a ajuda na ampliação de seus horizon-tes. A composição de Helena, protagonista da história, dá-se a partir de suas indagações a respeito de seu tamanho, desencadeando toda a ação da narrativa. Ela faz indagações sobre a realidade na qual está inserida e, assim, decide sair de casa em busca das respostas que a perturbam e, com isso, aproveita para co-nhecer o mundo: E era sempre assim. Na hora de ir ajudar no trabalho da roça, ela já era bem grande. Na hora de ir tomar banho no rio e nadar no lugar mais fundo, ela era ainda muito pequena. Na hora em que os grandes ficavam de noite conversando no terreiro até tarde, ela era pequena e tinha que ir dormir (MACHADO, 1980, p. 6). Assim, Helena sai em busca dela mesma e de sua identidade, ‖eu quero mesmo é saber como é que eu sou, se eu sou grande ou sou pequena‖ (MA-CHADO, 1980, p. 10). A construção da protagonista reside em sua capacidade de surpreender o leitor e é por essa capacidade que podemos classificá-la como personagem esfé-rica. Conforme Candido (1968, p. 63), essas personagens são ―organizadas com maior complexidade e, em conseqüência, capazes de nos surpreender‖. Apesar de viver em um espaço limitado, Helena é capaz de se questionar e também ao mundo em que vive, culminando com sua saída de casa para achar suas respos-tas: - Não estou dizendo que ninguém tem culpa. Mas, eu queria sa-ber. E se eu não sei, se você não sabe, se a mamãe e papai a ca-da hora sabem uma coisa diferente, acho que o jeito é a gente sair por aí para descobrir (MACHADO, 1980, p. 10).
Desta maneira, a extensão desses questionamentos contrasta com a limi-tação do espaço. De pequeno e fechado, seu horizonte se amplia, quando ela se
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desloca de seu local de origem e, mediante o diálogo que estabelece com outras personagens, alarga seus horizontes e mantém uma reflexão mais intensa de sua condição: - Como é que alguém viaja sem saber para onde? - É que eu não sei onde é que eu vou descobrir o que eu que-ro. - E o que é que você quer descobrir? Algum tesouro?
- Qual é o meu tamanho? (MACHADO, 1980, p. 18).
Por conseguinte , essas reflexões enriquecem a construção da protagonis-ta, aumentando as perspectivas relacionadas às suas constantes perguntas, o que possibilita sua movimentação no mundo narrado. Acontece, ao mesmo tem-po, a mudança de lugar e o crescimento pessoal. Isso permite a focalização de seu mundo interior: ‖Helena olhava para a menina meio desconfiada, achando que era a pessoa mais colorida e faladeira que tinha visto na vida dela‖ (MACHA-DO, 1980, p. 23). Em Bem do seu tamanho, o leitor pode se identificar com a protagonista e descobrir, junto com ela, seu próprio tamanho. Há, nesse caso, dupla possibilida-de de identificação, que decorre não só do fato de ambos (leitor e protagonista) ambicionarem essa descoberta, mas de descobrirem juntos, pois o conhecimento de Helena é parecido com o do ―leitor implícito‖, como diz Iser (1996). Podemos destacar, ainda, que os vazios a respeito da idade de Helena também suscitam preenchimentos pelo leitor, pois não se sabe exatamente a sua verdadeira idade. Não existe nenhuma marca formal que deixe clara sua idade exata. Essa possível identificação e a emoção do leitor com a história e com He-lena podem acontecer devido a ambos estarem vivenciando esse crescimento e dependerem dos adultos. Assim, ―esses mesmos leitores que acreditam separar com clareza a vida da ficção [...], teriam dificuldades para negar que já se surpre-enderam chorando diante da morte de um personagem‖ (BRAIT, 2004, p. 9), mesmo a protagonista transgredindo a relação de autoridade e dependência, quando sai de sua casa para descobrir suas respostas. Tal identificação do leitor com a personagem é definida por Zilberman como a catarse:
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A catarse constitui a experiência comunicativa básica da arte, ex-plicitando sua função social, ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo tempo em que corresponde ao ideal da arte autônoma, pois liberta o expectador dos interesses práticos e dos compro-missos cotidianos, oferecendo-lhe uma visão mais ampla dos e-ventos e estimulando-o a julgá-los (ZILBERMAN, 1989, p. 57). Assim, ao identificar-se com a protagonista, o leitor, ao mesmo tempo, par-ticipa e atua na história, pois a interpreta. Essa participação ocorre como leitor implícito, ou seja, como um aspecto constitutivo do texto. Zilberman (1989) dispõe que, ao participar da composição do texto, o leitor se situa como ―leitor implícito‖, ou quando aceita o que o texto propõe, admitindo suas orientações, ou quando atribui sentido ao texto a partir de suas experiências, de ordem histórica, social e biográfica. De acordo com a perspectiva de Iser (1996, p. 51), ―a obra é o ser constru-ído do texto na consciência do leitor‖. Este leitor é entendido como ―implícito‖, porque não está concretizado, mas subentendido na configuração do texto. Não se trata, portanto, de uma existência real, mas ―transcendental‖: A concepção do leitor implícito descreve, portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas do texto traduzem nas ex-periências do leitor através dos atos de imaginação. Como essa estrutura vale para a leitura de todos os textos ficcionais, ela as-sume um caráter transcendental (ISER, 1996, p. 78). Cabe destacar que esta narrativa está permeada de recursos especiais e recheada de ludismo, enriquecendo e ampliando a perspectiva do leitor. Enquanto Tipiti se animava todo com a idéia, Helena pensava que era mesmo muito engraçado isso de dizer grandinho. Alguém diz pequenão? Como é que pode ser grande e inho ao mesmo tem-po? Inho não é só para coisas pequeninas? É... ainda tinha muita coisa para aprender nessa história de tamanho (MACHADO, 1980, p. 20, grifo do autor).
Podemos observar esses recursos em Bem do seu tamanho, pelas brinca-deiras de linguagem, pelo jogo de perspectivas, pelo contraste de idéias. Toda a construção literária é realizada para se colocar a questão do tamanho - ele não é só exterior e, sim, interior. Assim, leitores tanto crianças quanto adultos entendem
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e gostam do texto: ―Gente grande e gente pequena junto. Rindo, brincando‖ (MA-CHADO, 1980, p. 53). Portanto, para aprofundar essa questão do leitor, deve-se encaixá-lo na ―experiência estética‖, cuja essência, para Jauss, encontra-se em um processo interativo, baseado na ―oscilação‖ entre sujeito e objeto. A experiência estética, portanto, consiste no prazer originado da oscilação entre o eu e o objeto, oscilação pela qual o sujeito se distancia interessantemente do objeto, aproximando-se de si. Dis-tancia-se de si, de sua cotidianidade, para estar no outro, mas não habita o outro como experiência mística, pois o vê a partir de si (JAUSS, 1979, p. 19). Desse modo, Bem do seu tamanho possibilita ao leitor se distanciar da nar-rativa, uma vez que tenha consciência de si mesmo, como alguém que penetra no mundo narrado. Entretanto, devido a sua necessidade de fantasia, o leitor pode se aproximar do texto, colocando-se no lugar da protagonista para viver mais in-tensamente a história. Podemos verificar que esta narrativa facilita a participação do leitor, ao se colocar no lugar do outro, tanto pela experiência da personagem como também através do jogo lingüístico que a obra proporciona: Senhoras e senhores! Respeitável público! Venham ver e ouvir as maravilhas do conjunto dos Os Viajeiros! A menina que revira os olhos e enxerga em curva! O Tipiti que faz farinha e trança redes com a rapidez do raio! A menina que é grande e pequena ao mesmo tempo! O Boi de mamão que está amadurecendo tanto que vai virar abacate! (MACHADO, 1980, p. 52; grifo do autor). Trata-se, segundo Iser, de uma interação que só pode se realizar com a participação do leitor, enquanto ser que completa o sentido do texto. ―Em obras literárias, porém, sucede uma interação na qual o leitor‖ recebe ―o sentido do texto ao construí-lo‖ (ISER, 1996, p. 51,grifo nosso).
Assim, a interação entre texto e leitor parte das estruturas do texto, as quais são, ao mesmo tempo, de caráter verbal e afetivo. A obra faz essa interação entre texto e quem lê a história desde o início, ao dizer: ―era uma menina assim mais ou menos do seu tamanho‖ (MACHADO, 1980, p. 5, grifo nosso). Esse duplo
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caráter diz respeito ao efeito causado no leitor, ao entrar em contato com as es-truturas verbais, ao usar o pronome seu: As condições elementares de tal interação se fundam nas estrutu-ras do texto. Estas são de natureza do texto, elas preenchem sua função não no texto, mas sim à medida que afetam o leitor. Quase toda estrutura discernível em textos ficcionais mostra esse aspec-to duplo: é ela estrutura verbal e estrutura afetiva ao mesmo tem-po. O aspecto verbal dirige a reação e impede sua arbitrariedade; o aspecto afetivo é o cumprimento do que é preestruturado ver-balmente pelo texto (ISER, 1996, p. 51). Esse espaço aberto, em Bem do seu tamanho, diz respeito aos ―vazios‖ e-xistentes no texto, convidando o leitor a participar não só pela identificação com as personagens, projetando-se nelas, como também na interpretação do texto, pois, [...] o significado emerge no instante em que o leitor absorve o sentido em sua própria existência. Quando o sentido e o significa-do agem juntos, eles garantem a eficácia de uma experiência que nos permite construirmos a nós mesmos constituindo uma reali-dade que nos era estranha (ISER, 1996, p. 82). Sendo assim, os ―vazios‖ contidos na narrativa relacionam-se às lacunas propiciadas pela linguagem, permitindo que o leitor ―penetre‖ no texto, cujas pers-pectivas são definidas pelo jogo lingüístico e mediadas pela história em si: E isso nos estimula a fechar a lacuna na experiência através da interpretação, ao mesmo tempo dando a possibilidade de desmen-tir as nossas próprias interpretações; dessa maneira, continuamos abertos para novas experiências (ISER, 1996, p. 102). Portanto, esses ―vazios‖ existem, pois é oferecido ao receptor o direito de refletir, de projetar sua própria história sobre a história que está lendo. Tais refle-xões, sobre o papel do leitor, presentes em Bem do seu tamanho, permitem a quem lê opinar a respeito de inúmeras situações. Portanto, a obra apresenta ao leitor um universo aberto, convidando-o a refletir sobre si mesmo e o mundo em que vive.
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Ao relatar o ambiente inicial, no qual se passa a narrativa, a autora caracte-riza o lugar como zona rural, porém não a específica, sabe-se que a história ocor-re no interior. No entanto, pode ser em qualquer região do Brasil, pois ela evita traços regionais particularizados. Assim, permite que quaisquer leitores se identi-fiquem e interajam com o mundo narrado. É de extrema importância acompanhar o crescimento da personagem, que se realiza aos poucos, através de seu deslocamento espacial e pela convivência com as personagens que encontra pelo caminho. Enquanto as inquietações de Helena desencadeiam a ação na narrativa, Flávia, outra personagem feminina presente no texto, provoca reflexões e atua como mediadora na ampliação dos pensamentos de Helena, à medida que apre-senta algumas observações referentes à idade cronológica em contraste com o tamanho físico: Tipiti quis saber: - Como é seu irmão? - É um amigão. Pena que ele não veio. - Helena logo tratou de perguntar sobre o tamanho dele: - Ele é menor ou maior que você? - É menor. Mas de verdade ele é maior. [...] - Espere aí, Helena, não misture as coisas. Ele é gente, claro. Gen-te tem irmão gente. E ele nasceu depois de mim, então ele é meu irmão menor. [...] - Mas é que ele cresceu mais que eu e me passou. Então, de verdade, ele é mais alto do que eu - é maior. Mas é mais moço do que eu, então é menor (MACHADO, 1980, p. 34) A personagem Flávia é uma menina que vê em curvas: ―Quer dizer, inven-tar, mesmo, eu não invento, não. Eu descubro. Coisas que já existem e ninguém viu ainda. Ou pouca gente viu‖ (1980, p. 24). Também é questionadora e altamen-te criativa, está sempre fazendo um jogo lúdico com as palavras: - Tem uma coisa solta – reparou Helena. - Deve ser a corrente – disse Tipiti. – Vou dar um jeito. - Como pode ser a corrente? Corrente não se usa para pren-der? Como é que pode soltar. - Também corrente é para correr. Se a bicicleta ficou parada, não é por causa de corrente. Só se for por causa de parente.
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- De parente? – Helena não estava entendo nada. - Algum primo seu quebrou a bicicleta? (MACHADO, 1980, p. 22-23, grifo nosso). Helena, ao conhecer Flávia, inicia uma reflexão mediante ―trocadilhos‖, a-través da relação dialógica entre as personagens, o que propicia o desencadea-mento do conhecimento. ―- Ah, isso é uma das modas que invento. Inventar que as palavras são brinquedos, que a gente pode pegar, revirar, olhar de um lado de outro, ver se uma cabe dentro da outra, essas coisas...‖ (MACHADO, 1980, p. 25). Ao entrar no mundo narrado, ela já é citada relacionada à ampliação do co-nhecimento, pois o narrador explora, mesmo antes de sua apresentação, a ques-tão da perspectiva: Daí a pouco, virando uma curva na estrada, viram um pontinho lá longe, mas não dava para distinguir o que era. Gente? Cavalo? Boi? Estava tão pequenininho ainda... Quando chegaram mais perto, viram uma menina sentada no chão, mexendo em uma bicicleta (MACHADO, 1980, p. 22). Assim, o que propicia, para Helena, essa ampliação de conhecimentos são os acontecimentos anteriores à chegada de Flávia, pois por meio conversas com seu brinquedo Bolão, tem as primeiras dicas sobre a questão da perspectiva ou do modo de olhar: - Bolão, você entende de tamanho? - Entender como, Helena? - Você sabe se as coisas e as pessoas são grandes ou pe-quenas? - Sei lá, Helena, é muito difícil. Eu acho que tudo está sempre mudando. As folhas, por exemplo. Quando eu era só mamão e morava lá no alto do mamoeiro, as folhas ali perto da gente eram enormes. Mas as folhas do pé de abóbora aqui no chão eram tão pequenininhas... (MACHADO, 1980, p. 8). Deste modo, a imensa descoberta de Helena foi proporcionada e comparti-lhada pelo retratista, pois foi capaz de compreender as crianças, permitindo, as-sim, que elas se compreendessem e crescessem:
[...] Não precisava ter um tamanho só. O tamanho que a gente tem por fora é esse mesmo, cada um vai crescendo e depois pára.
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Mas o tamanho que a gente tem por dentro é o que a gente sente. Conversando com vocês eu fiquei do mesmo tamanho que vocês (MACHADO, 1980, p. 49-50). E Helena compreendeu que o tamanho, além de ser uma questão de pers-pectiva em relação ao aspecto físico, refere-se somente à aparência. O outro la-do do crescimento é o interior, aquele que não se vê, porém se sente: ―[...] Mas o tamanho que a gente tem por dentro é o que a gente sente. Conversando com vocês eu fiquei do mesmo tamanho que vocês‖ (MACHADO, 1980, p.50). Portanto, a construção da protagonista, Helena, em relação aos seus ques-tionamentos, foi confirmada pela personagem Lambe-Lambe, o retratista, pois responde às suas indagações e buscas. Mediante as explicações projetadas pela fotografia, ela passa a enxergar o que o espelho de sua casa não proporcionava: ver-se de corpo inteiro. O retrato consegue fixar a imagem sob diversos ângulos, o que permite à protagonista (ad) mirar à distância e ver a si própria e a seu cres-cimento, tanto físico quanto interior. A questão do tamanho, para Helena, é, acima de tudo, algo interior, que enriquece ainda mais sua construção: - Então a Helena já está ficando maior desde que saiu de ca-sa, não foi só agora. Tudo foi coragem. De viajar e de não ficar só no chão dela.
- Mas quer dizer então que a gente só pode ficar crescendo sempre? Nunca mais vou poder ficar pequena como eu era an-tes? (MACHADO, 1980, p. 49).
Sendo assim, a personagem Flávia, ao ajudar o retratista, também de-monstra um aspecto do seu crescimento interior, portanto atitude desta persona-gem surpreende o leitor, por sua perspicácia e capacidade de comunicação, con-tribuindo para sua composição: - Será que é porque agora nós estamos maiores? – pergun-tou Flávia. E diante do espanto dos outros, continuou: - É... Nós levamos um susto e não corremos. Nós tivemos co-ragem. Nós ficamos mais longe do chão – quer dizer, maiores. Nós crescemos. Não é isso que o realejo disse? (MACHADO, 1980, p. 49).
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Como ressalta Candido (1968, p. 54), ―avulta a personagem, que represen-ta a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc.‖. Em Bem do seu tamanho, o leitor po-de se identificar com a protagonista e descobrir, junto com ela o seu tamanho. As personagens femininas aqui enfocadas são construídas de tal maneira que acabam passando para o repertório de vivências do leitor, ajudando-o a com-preender a realidade, ou solidarizando-se com elas nos questionamentos e diante dos fatos e acontecimentos. As contribuições da Estética da Recepção parecem bastante elucidativas para a problematização do fenômeno da recepção do leitor, quando lê uma obra literária como Bem do seu tamanho. O leitor, ao experienciar os efeitos da ex-pressão literária, nunca se porta como um ser inerte e passivo. Ele reúne capaci-dade de produção e partilha de sentido pelo seu acesso ao campo simbólico, i-dentifica-se com o livro, pode perceber, em uma palavra dita por algum persona-gem da narrativa, uma possibilidade de reconhecer-se. O prazer estético suscitado pelo texto literário tem como fonte as infinitas imagens geradoras de desejos, questionamentos e afetos. A experiência de ler uma obra literária é uma experiência, acima de tudo, afetiva. O conceito de leitura veiculado às idéias da Estética da Recepção é muito mais abrangente do que aquele estritamente lingüístico e pode ser aplicado a tex-tos não-literários e não-verbais. Permanece aberto o problema da cooperação interpretativa no texto e como os leitores podem preencher esses espaços não-ditos. Ao envolver as personagens femininas, de acordo com Candido (1968, p. 54): ―A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos‖. O enredo de Bem do seu tamanho oferece o lugar para o exercício teórico como estudo da própria experiência de se ler um texto literário. É a partir desse diálogo que se pode reconhecer o "elo vital" da relação provocativa entre o leitor e a obra literária. Assim, essa obra pode ser considerada uma narrativa com qualidade estética, pois apresenta uma distância do horizonte de expectativas iniciais do leitor quanto ao que este espera do tamanho.
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Quando a protagonista sai para viajar sozinha com seu brinquedo, ela rom-pe com as expectativas iniciais do leitor, causando um estranhamento, que tanto é produzido pelo arranjo do discurso, quanto pelo desenrolar da trama. Isso pro-duz um efeito, o da reflexão, quando o leitor é levado a rever seus conceitos, ati-tudes e a ampliar seu horizonte de expectativas. A partir dessas reflexões, constatamos que Bem do seu tamanho, como um texto artístico de caráter humanizador, propicia ao leitor, por meio dos espaços deixados, construir sentidos que o fazem viver novas experiências. Uma reflexão que fica bem evidente nessa obra é a consciência do tamanho do ser humano, tanto por fora quanto por dentro. 4.1.3.Bisa Bia Bisa Bel: menina moleca Bisa Bia Bisa Bel (1982) narra a história de Bel que, ao encontrar o retrato de sua bisavó entre os guardados da mãe, pede a ela a foto da Bisavó Beatriz ainda criança, por parecer uma boneca e a mãe faz um ―empréstimo‖ da fotografi-a. E então, munida de intensa imaginação, Isabel insiste e convence a mãe a dar-lhe a fotografia de família para brincar. Assim, configura-se uma nova companhei-ra de brincadeiras para a menina que vê naquela imagem enfeitadinha, uma es-pécie de troféu de quem já sabe brincar com o tempo. O formato da foto recebe destaque na narrativa: ―Para começar, não era quadrado nem retangular, como os retratos que a gente sempre vê. Era meio re-dondo, espichado. Oval mamãe explicou depois, em forma de ovo‖ (MACHADO, 1982, p. 10). O referencial simbólico de ovo remete tanto à idéia de mãe quanto representa o ser aprisionado. A noção de aprisionamento parece mais pertinente à análise, uma vez que mais elementos descritivos do retrato indicam rigidez, co-mo se pode observar: ―Esse retrato oval de sépia ficava preso em um cartão duro cinzento, todo enfeitado de flores e laços de papel mesmo‖ (MACHADO, 1982, p. 10). Nessa foto de época, Bia, então criança, segurava dois brinquedos: uma boneca de chapéu e um arco, assim,
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Uma menininha linda, de cabelo todo cacheado, vestido claro cheio de fitas e rendas, segurando em uma das mãos uma boneca de chapéu e na outra uma espécie de pneu de bicicleta soltinho, sem bicicleta, nem raio, nem pedal, sei lá, uma coisa parecida com um bambolê de metal (MACHADO, 1982, p. 10). Então, Bel passou a tratá-la por Bisa Bia e a levá-la a todos os lugares em que ia: no colégio e onde brincava com os amigos. Instaura-se, na narrativa, a fantasia, pois a protagonista dá vida à bisavó e passa a viver como se Bisa Bia ainda existisse, apesar de nem tê-la conhecido, até perder a foto. Mesmo assim, continua interagindo com a bisavó, agora como uma tatuagem transparente. Elas dialogam durante toda a história e vão confrontando dois tempos bem definidos: o de ontem e o de hoje. Sua bisavó mostra-lhe como as coisas eram no passado: usos, costumes, maneiras de ver o mundo, reagir ou atuar e chama a atenção sobre o comporta-mento de Bel, provocado devido ao estranhamento frente aos costumes do mun-do moderno. Com isso, estabelece-se uma ponte entre o passado e o presente em que vivem as personagens no mundo narrado. Bel, a narradora - protagonista reage quando a Bisavó Bia quer submetê-la ao convencionalismo da tradição passada, impondo-lhe regras de comportamento do seu tempo. Como passa a conversar constantemente com a avó, Bel passa por uma transformação interna, através de um vôo crítico que a separa de sua Bisa Bia, devido aos contrastes de gerações. Até surgir Neta Beta representando o futuro de Isabel, pois com essa personagem a autora antecipa o que chegará para Bel, muitos anos depois, quando sua bisneta, Beta, também encontrar, nos guardados antigos, a foto de sua Bisa Bel, ainda menina. Assim, as três passam a viver jun-tas. [...] E Neta Beta vai fazer o mesmo comigo, a Bisa Bel dela, e com alguma bisneta que não dá nem pra eu sonhar direito. E sempre assim. Cada vez melhor. Para cada um e para todo mundo. Tran-ça de gente (MACHADO, 1982, p. 63).
Dessa maneira, inserida nessa tensão representada pelas vozes do passa-do (Bia) e do futuro (Beta), Isabel opta por ser ela mesma e fazer o que julgava melhor. De acordo com a idéia de que a imagem de ―bonequinha de louça‖ da
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personagem Marcela, sua colega de classe, a irritava, assumiu o risco de agradar ou não o personagem Sérgio, amigo e pretenso amor, em vez de se fazer de víti-ma. Essa decisão, entretanto, exigiu um processo de reflexão que perpassa todo o incidente, na busca de uma identidade própria. Este acontecimento é realizado por um jogo de linguagem que explora as classes gramaticais, no que tange a dimensão, pois o diminutivo está ligado à fi-gura de Marcela. Ressaltamos ainda que o primeiro a chamar a menina de Marce-linha foi Sérgio, depois que ela adotou a postura de fragilidade diante da possibili-dade de buscar as frutas. Portanto, parece ocorrer certo reconhecimento do per-sonagem diante desse papel assumido por algumas mulheres. Nessa mesma perspectiva, ao final da brincadeira, a voz narradora brinca com o sufixo de dimi-nutivo na caracterização de Marcela e de aumentativo para Isabel: E foi assim que Marcela Marcelinha ganhou uma goiaba velha velhinha, bichada bichadinha. E enquanto ela reclamava com aquela voz de cho-ro chorinho, fui para casa com o coração sambando aos pulos. Cada pulo pulão (MACHADO, 1982, p. 35). Desta forma, ao associar o diminutivo à fragilidade, demonstrada pela per-sonagem Marcela, sugere-se, assim, uma diminuição perante a figura de Sérgio. Podemos entender também a referência a uma figura feminina que ainda não cresceu, precisa se tornar maior, aumentativa. Já a menina Isabel, através da brincadeira, cresceu afinal ela não ―tinha voz de chorinho de neném‖, como Mar-cela, era alguém que escolhera seguir a voz do futuro. Então, ela mesma trans-formou-se em – ão - enfrentou dificuldades, não se fragilizou para ser cuidada e ainda conseguiu como prêmio um beijo de seu ―paquera‖. A estrutura interna do texto é marcada pela aventura interior da menina I-sabel, desde o instante em que se liga tão intensamente à figura do passado (sua Bisavó, Beatriz) que a introjeta em si mesma e, com ela, passa a conviver com a maior naturalidade. É um texto em que o limite entre fantasia e realidade é muito tênue e fica quase impossível detectar esse limite. A fantasia se revela como rea-lidade psicológica da personagem.
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A voz narradora é a da própria protagonista. Temos aí um narrador autodi-egético4, pois o narrador identifica-se com a personagem principal e é aquele que participa dos dados e fatos do mundo narrado. E ela se dirige, muitas vezes, dire-tamente ao leitor, em tom de cumplicidade, garantindo credibilidade aos aconte-cimentos. De certa forma, ao inserir o leitor no mundo narrado, contribui positiva-mente para a construção da personagem: Sabe? Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É que Bisa Bia mora comigo. Ninguém sabe mesmo. Ninguém con-segue ver. Pode procurar pela casa inteira, duvido que ache. [...]. Sabe por quê? É que Bisa Bia mora comigo, mas não é do meu lado de fo-ra. Bisa Bia mora muito comigo mesma. Ela mora dentro de mim (MACHADO, 1982 p. 5). A narrativa é organizada em oito capítulos titulados, porém não numerados. Seu desfecho mostra um final feliz, apesar de a narradora deixar em aberto os rumos da vida de Bel e de sua família. Na obra Bisa Bia Bisa Bel, o tema da liberdade volta com outra nuança: tra-ta-se da liberdade de ser e agir que as mulheres vêm conquistando ao longo dos anos e que abre espaço para o tempo histórico que possibilita a conscientização das nossas crianças. Percebemos esse posicionamento de tempos e épocas tan-to nas falas de Bisa Bia: [...] Os rapazes do meu tempo eram muito diferentes, mais cava-lheiros... [...] quer dizer, gentis, educados, solícitos com as da-mas... Se eu deixasse cair um lenço perto de um namorado, ele logo pegava e vinha trazer para mim com todo cuidado...! (MACHADO, 1982, p. 42-43). Quanto nas falas de Bel:
- Não me interessa o seu tempo! Quando é que você vai en-tender que hoje em dia tudo é muito diferente? Eu sou eu, vivo no meu tempo, e quero fazer tudo o que tenho vontade, viver minha
4 Entende-se como narrador autodiegético, como ressalta Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988), aque-la entidade responsável pelo discurso narrativo, no qual o narrador da história relata as suas próprias experi-ências como personagem central da história.
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vida, sacou, Bisa Bia? Eu sou eu, ouviu? (MACHADO, 1982, p. 43-44).
Dois motivos são extremamente significativos nessa obra: Bisa Bia Bisa Bel pode ser considerado um texto de mulheres, mas para ser lido por homens e mu-lheres, ou, por meninas e meninos. Logo no início da narrativa, Bel vai traçando o perfil de sua mãe, diferenci-ando-a das demais: ―Minha mãe é gozada. Não tem essas manias de arrumação que muita mãe dos outros tem, ela vai deixando as coisas espalhadas na casa, um bocado fora do lugar‖ (1982, p. 6). E através de monólogos interiores e lacunas que o leitor preenche os vazi-os, que ―constituem uma precondição fundamental da comunicação, porque in-tensificam nossa atividade ideacional‖ (ISER, 1996, p. 30). Não se sabe ao certo a profissão da mãe, nem seu estado civil. Assim, a protagonista vai construindo a imagem da mulher moderna representada por sua mãe: [...] Uma das coisas mais desagradáveis em matéria de trabalho doméstico sempre foi lavar lenço de resfriado. Acho que no nosso tempo a gente deve sempre procurar as coisas mais simples, que permitam economizar nosso esforço, para podermos fazer outras coisas! (MACHADO, 1982, p. 45). Aos poucos, o leitor defronta-se com questionamentos sobre o papel da mulher na sociedade em que está inserida e percebe-se um diálogo entre gera-ções, por meio das falas da mãe: [...] Já imaginou que tristeza devia ser passar os dias esperando o marido e os filhos chegarem? Um monte de empregadas e só um trabalho pouco criativo dentro de casa? [...] O que eu acho é que é um trabalho que não transforma o mundo, não melhora as coisas, é só manter como estava, lavar para ficar limpo [...] Claro que e-ducar filho é trabalho que transforma o mundo, mas isso é coisa que pai também faz, e mãe que trabalha fora também...! (MA-CHADO, 1982, p. 45-46).
De acordo com Iser (1996), o leitor é cúmplice e colaborador no processo de leitura, pois o significado é construído entre texto e leitor. Esta narrativa propi-
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cia uma leitura inovadora, pois tem graus de indeterminação, oferece uma rede de perspectivas para o leitor abrir. ―Assim pode ser dito que a indeterminação é a pré-condição fundamental para a participação do leitor‖ (ISER, 1996, p.13). O texto não menciona o nome da mãe de Isabel, só sabemos seu sobre-nome e que foi casada, pois não se fala no pai na convivência familiar. Fica a car-go do leitor preencher essas lacunas: será que a mãe de Bel é separada, divorci-ada? Como seria seu nome? - Por que minha avó é Almeida e eu sou Miranda? - Porque quando sua avó casou, ficou sendo Ferreira, e eu nasci sendo Ferreira. Mas quando casei, fiquei sendo Miranda, que é o sobrenome do seu pai. - Mas eu quero ter o mesmo sobrenome de você, da vovó e da Bi-sa Bia. - Não pode, filha, cada uma de nós ficou com um sobrenome dife-rente. Mulher quando casa é assim (MACHADO, 1982, p. 47). Podemos dizer que a narrativa literária se constrói, pois seu significado é construído entre texto e leitor. Assim: Os comentários provocam a faculdade de julgar de duas manei-ras: enquanto excluem qualquer julgamento inequívoco dos even-tos, criam lacunas que, por sua vez, admitem muitos juízos de di-ferentes nuances; mas esses não são de todo arbitrário, porque o autor delineia, através de seus comentários, as alternativas possí-veis para o leitor. Tal estrutura envolve o leitor no processo de a-valiação, mas, ao mesmo tempo, controla a avaliação desse leitor (ISER, 1996, p. 18, grifo do autor). Outro fator importante na caracterização das personagens é o nome pró-prio, o que promove a identificação e a individualidade, principalmente nessa o-bra, já que os nomes resultam de exploração poética e representam, ainda, o títu-lo do livro: Bisa Bia Bisa Bel. A autora, através do jogo fonético, denomina-as com inteligência e sensibilidade, pois, além de conotar certa semelhança, reforça tam-bém o grau de parentesco entre elas.
A história da protagonista, Isabel, recebe destaque especial no capítulo ―Garotas que mudam o mundo‖, do livro Como e por que ler a literatura infantil brasileira (ZILBERMAN, 2005). A respeito da temática do livro, Regina Zilberman (2005, p. 85) destaca:
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Bisa Bia Bisa Bel é o que se poderia chamar um livro feminista, não apenas porque traduz o processo de independência da mu-lher ao longo da história, marchando do convencionalismo e obe-diência de Bia à completa autonomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque elege um ângulo feminino para traduzir es-sas questões, revelando como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por ensinamento, mas enquanto resultado das experiências vividas. Diante do fio da lembrança, a narrativa relata a história de quatro mulheres da mesma família: Beatriz (Bia), sua neta, mãe de Isabel, sua bisneta Isabel (Bel) e a bisneta de Isabel (Beta). A obra une as três pontas do tempo (passado, pre-sente e futuro) que coexistem na personagem protagonista Isabel, por meio das vozes de Bia e Beta. O elo dessas gerações é a fotografia e, em versão futurista, a holografia, as quais retratam a época em que foram feitas. Em meio a essa ―trança de gente‖ entrelaçada por Ana Maria Machado, re-velam-se tensões, sobretudo, no que diz respeito ao comportamento feminino e às expectativas sociais para as mulheres. Dentre os vários elementos textuais, destacam-se as brincadeiras ligadas a papéis femininos e masculinos. Foi a partir de um retrato antigo que Isabel conheceu sua bisavó, chamada Beatriz, mulher de outra geração que a menina, inicialmente, associou a uma bo-nequinha. O tratamento de brinquedo dado por Isabel à foto já abre a possibilida-de para que se possa brincar com o tempo, com outro momento histórico e outros valores estéticos e ideológicos. Embora o livro Bisa Bia, Bisa Bel tenha sido publicado na década de 80, as inquietações de Isabel frente às vozes que se trançam em um diálogo entre pas-sado, presente e futuro mostram-se bastante atuais. Percebemos, ainda, a ne-cessidade que a sociedade apresenta de discutir questões referentes à (des) (re) construção das relações de gênero, principalmente no que diz respeito às diferen-ças culturais e econômicas.
A narrativa aborda indagações complexas de uma forma simples, apropri-ando-se de diversos recursos, como poesia dentro da prosa, diálogo entre gera-ções, jogos fonéticos e outros. Então, propõe ao leitor múltiplos olhares sobre o texto, desde o primeiro momento: ‖Bisa Bia mora comigo, mas não é do meu lado
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de fora. Bisa Bia mora muito comigo mesmo. Ela mora dentro de mim‖ (MACHA-DO, 1982, p. 5). A história seduz, à medida que o leitor adentra na leitura e consegue se o-rientar dentro da insólita situação instaurada desde o princípio: fantasia e realida-de, desde o momento que Isabel passa a dialogar constantemente com sua Bisa-vó, Beatriz, e com Neta Beta. Nesta obra, a ficção é usada de uma forma não utilitária. Há uma clara dis-cussão sobre valores sociais tidos como ―certos‖. Isso remete ao texto um caráter emancipatório, principalmente da mulher, destacando o papel feminino por meio da personagem Isabel. 4.1.4. Menina bonita do laço de fita: desconstrução do preconceito
Menina bonita do laço de fita (1984), conta a história de uma linda menina negra5 que é admirada por um coelho branco curioso, que quer saber como pode alcançar a mesma cor da bela e simpática criança. Mas, o que fazer para ficar pretinho como ela? Então a menina respondia as possíveis maneiras de ser assim tão negra. Até que sua mãe intervém e relata o verdadeiro motivo da sua cor.
A obra suscita reflexões importantes sobre diversidade racial, auto-estima, hereditariedade, miscigenação e fraternidade, assim, ao retratar uma personagem negra Ana Maria Machado busca fugir do cânone e revelar, enquanto protagonis-ta, uma menina negra, fato pouco comum em títulos de literatura infantil, portanto, podemos destacar,nesta obra, uma marca pós-moderna. Desta maneira, a nar-radora, pretende com este recurso, dar destaque principal à menina negra, inici-ando-se, assim, o rompimento com estruturas pré-estabelecidas, uma vez que a protagonista está longe de ser considerada uma personagem tradicional encon-trada em literatura infantil. ―De modo geral, os traços considerados pós-modernos são os seguintes: heterogeneidade, diferença, fragmentação, indeterminação‖
5 Seguem-se as palavras da autora, transcritas em Contracorrente (1999), para explicar a escolha da cor da personagem: Gostei da idéia, mas achei que o tema de uma menina linda e loura, ou da Branca de Neve, já estava gasto demais. E nem tem nada a ver com a realidade do Brasil. Então a transformei em uma pretinha, e fiz as mu-danças necessárias: a tinta preta, as jabuticabas, o café, o feijão preto etc. (MACHADO, 1999, p. 66).
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(PERRONE-MOYSÉS, 1998, p.183). Nesta obra, há valorização da cultura negra, como reflexo da valorização de uma das múltiplas margens desse centro branco e canônico. Como afirma Jauss (1994), somente a quebra ou a ruptura de expectativas será indicativa do valor estético de um texto, cuja avaliação, a partir da distância estética, torna-se bastante independente da visão particular do crítico: A distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência anterior e a ―mudança de horizonte‖ exi-gida pela acolhida à nova obra, determina, do ponto de vista da Estética da Recepção, o caráter artístico de uma obra literária (JAUSS, 1994, p. 31). A construção da personagem feminina ocorre ao se destacar os atributos de beleza da menina, assim, a narradora rompe com modelos tradicionais de be-leza e, por conseguinte, com os horizontes de expectativas do leitor, mostrando uma possibilidade diferente diante do belo: Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam du-as azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite. A pele era es-cura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva (MACHADO, 1984, p. 4). Uma vez que o significado do texto é uma relação simétrica entre texto e leitor e, dessa interação, nasce o sentido, então: ‖O texto, quanto mais se distan-cia do que o leitor espera dele por hábito, mais altera os limites desse horizonte de expectativas, ampliando-os‖ (BORDINI E AGUIAR, 1988, p. 87). Dessa forma, quando o narrador onisciente busca a motivação para a dife-rença do tom da pele - ser negro, e a beleza a ele associada, de certa forma, atrai o leitor desde o início da narrativa, por se tratar de uma personagem principal que foge aos padrões tradicionais, por ser negra. Há de se destacar ainda que nesta narrativa, as trancinhas ganham ênfa-se, enquanto enfeite da beleza da menina:
Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma
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princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do Luar (MACHADO, 1984, p. 5). Podemos ressaltar que a referência a princesas e fadas dos contos de fa-das, que foi reproduzida por muito tempo nas obras de literatura infantil, remete a uma figura branca e loura. Nesta obra, entretanto, destaca-se a menina do laço de fita como uma princesa africana ou uma fada do Reino do Luar, em uma rever-são completa do modelo canônico, outro traço pós-moderno. Percebemos, assim, uma tentativa de destacar conotações positivas para a figura do negro. A grande curiosidade do coelho branco, personagem da história, é saber como a menina conseguira ficar preta e tão bonita e essas indagações contribuem para a construção da personagem, mas essa construção não é acabada e requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, já que sua participação é indispen-sável. De acordo com Iser: ―Essa indeterminação [...] constitui condições elemen-tares de comunicação do texto, que possibilitam que o leitor participe na produção textual‖ (1996, p. 57). Do lado da casa dela morava um coelho branco, de orelha cor de rosa, olhos vermelhos e focinho nervoso sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto em toda a sua vida. E pensava:- Ah, quando eu casar quero ter uma filha pretinha e linda que nem ela...Por isso, um dia ele foi até a casa da Menina e perguntou: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pre-tinha? (MACHADO, 1984, p. 6). Assim, para responder a pergunta do coelhinho, a menina, que também não sabe o motivo, usa seu poder inventivo - a imaginação. Justifica a negritude por ter caído em tinta preta quando pequena, associa a muito café bebido ou a ter comido muita jabuticaba e feijoada: - Ah, deve ser porque caí na tinta preta quando era pequenina... [...] Ah, deve ser porque eu tomei muito café quando era pequeni-na. [...] Ah, deve ser porque eu comi muita jabuticaba quando era pequenina. [...] A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada [...] (MACHADO, 1984, p. 8-10-12).
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Convém destacar que café, jabuticaba e feijoada são elementos típicos da cultura nacional, muitas vezes, também não privilegiados como referências literá-rias. Não há uma resposta definida para o fato de a menina ser negra e nem uma preocupação nesse sentido. O coelhinho, com o intuito de realizar seu dese-jo de ter uma filha pretinha e linda como a menina, descobre que é só arrumar uma parceira preta: ‖[...] quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter e disse: - Artes de uma vó preta que ela tinha...‖ (1984, p. 12). Então, vale ressaltar que a construção das personagens femininas de Machado, de uma maneira geral, apresenta essa característica particular, pois são persona-gens inacabadas, que exigem, portanto, da participação do leitor. Com a associação do branco com o negro, revela-se a mestiçagem, pois nascem filhotes brancos, cinza, negros e mesclados: Tinha coelho pra todo gosto: branco bem branco, branco meio cinza, branco malhado de preto, preto malhado de branco e até uma coelha bem pretinha. Já se sabe, afilhada da tal menina bonita que morava na casa ao lado (MACHADO, 1984, p. 15). A idéia da mescla e da heterogeneidade típica das tendências pós-modernas, simbolicamente, revela-se nessa união, sem que haja qualquer natu-reza de oposição ou exclusão dos elementos. O livro Menina bonita do laço de fita destaca algumas marcas estilísticas ao usar pronomes e a repetição das frases: Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam du-as azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite. A pele era es-cura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva. Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do Luar. Do lado da casa dela morava um coelho branco, de orelha cor de rosa, olhos vermelhos e focinho nervoso sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto em toda a vida. E pensava:
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_ Ah, quando eu casar quero ter uma filha pretinha e linda que nem ela... Por isso, um dia ele foi até a casa da menina e perguntou: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pre-tinha? (MACHADO, 1984, p. 4-5-6, grifo nosso). Desta forma, ao caracterizar a personagem feminina, a narrativa tenta fa-zer com que o leitor perceba a intenção de ressaltar a aparência dela, por meio de uma linguagem metafórica: ―Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite‖ (1984, p.4, grifo nosso). Quando o coelho, insistentemente, faz o questionamento sobre a cor da menina, com a pergunta: ―- Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?‖, a narrativa permite com esta indagação que o leitor faça supo-sições, formule idéias sobre o real motivo de a pele da menina ser pretinha. Mas geralmente o leitor não se dá por satisfeito com tal configura-ção de sentido e coloca perguntas do tipo ―por que‖ ou ―como‖, perguntas que são estimuladas pelo narrador [...] (ISER, 1999, p.33, grifo do autor). Portanto, as pistas textuais usadas na obra, que tipificam o texto como in-fantil e poético, estão no uso metafórico da linguagem utilizada e na alusão a per-sonagens de contos de fadas, embora com conotações diferenciadas: ‖Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do Luar‖ (1984, p. 5, grifo nosso). Desse modo, o leitor atualiza e constrói o objeto estético através dessas marcas formais e entra em um mundo de ficção e fantasia que permite a recons-trução da realidade com o uso do lúdico. Por esta razão, é preciso descrever o processo da leitura como in-teração dinâmica entre texto e leitor. Pois os signos lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular atos, no decorrer o texto se traduz para a consciência do leitor (ISER, 1999, p.10).
Assim, as marcas de posicionamento, por exemplo, quando inicia a narrati-va pelo tradicional do conto de fadas ―Era uma vez uma menina linda, linda‖
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(1984, p. 4,grifo nosso), já propõe uma interação dinâmica entre texto e leitor: ―Is-so equivale a dizer que os atos estimulados pelo texto se furtam ao controle total por parte do texto. No entanto, é antes de tudo esse hiato que origina a criativida-de da recepção‖ (ISER, 1999, p. 10). Desta forma, podemos depreender desta concepção a importância do leitor na constituição do texto, na relação de interação proposta pelo autor e materiali-zada no texto. Essa importância, ou, ao menos, a relevância do leitor, que então perde a posição de mero receptor, evolui com o crescimento da capacidade de leitura crítica, como ressalta Iser: O autor e o leitor participam portanto de um jogo de fantasia; jogo que sequer se inicia se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra do jogo.É que a leitura só se torna um prazer no mo-mento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quan-do os textos nos oferecem a possibilidade de exercer nossa capa-cidade (ISER, 1999, p. 10). Portanto, a leitura de Menina bonita do laço de fita proporciona essa produ-tividade e, conseqüentemente, a mudança, pois rompe com idéias cristalizadas, como o preconceito racial, e tenta inovar também na linguagem: Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão preti-nha? A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada, quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter e disse: - Artes de uma avó preta que ela tinha... Aí o coelho – que era bobinho, mas nem tanto – viu que a mãe da menina devia estar mesmo dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre é com os pais, os tios, os avós e até com os pa-rentes tortos. E se ele queria ter uma filha pretinha e linda que nem a menina tinha era que procurar uma coelha preta para casar (MACHADO, 1984, p. 12-13,grifo nosso). Ana Maria Machado, ao propor o tema das diferenças raciais, desperta o leitor para o problema quando ele interpreta o texto, interagindo com as idéias contidas na narrativa, através da linguagem metafórica e pelas ilustrações.
Experimentar um texto significa que algo está acontecendo com a nossa experiência. Ela não pode permanecer a mesma pelo fato
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de nossa presença no texto não ser mero reconhecimento do que já sabemos (ISER, 1999, p. 10). Esse questionamento infantil é muito comum, sobretudo, se a criança ne-gra sente-se como o elemento diferente, à margem. Por que sou negro? É uma pergunta difícil de responder, pois ela envolve não só a cor da pele, mas tudo o que social e culturalmente isso representa. O que é o diferente? Quem define o igual para que se possa constituir, em oposição a ele, o que é diferente? Na histó-ria em questão, revela-se a diluição dessas diferenças através do nascimento dos filhotes, ainda que o destaque seja dado à coelhinha negra no final. Mais um traço pós-moderno a ser destacado: além de a protagonista da his-tória ser negra, também é um elemento feminino e infantil, assim, associam-se três manifestações de não contemplação do cânone: personagem negra, criança e do sexo feminino. Todas essas identidades foram despojadas de voz política e culturalmente constituídas, mas assumem o papel central nesta obra. Esta obra contribui para a formação do leitor, pois, conforme conclusão de pesquisas realizadas, é na infância que se forma o hábito da leitura, como confir-ma Laura Sandroni (2003, p. 11): Quem não teve acesso aos livros durante o período de sua forma-ção muito dificilmente será um leitor ao chegar à idade adulta. A solução para o problema é clara: é preciso dar à criança a pos-sibilidade de conviver com livros desde tenra idade. Não só como objeto, mas também com o texto do livro, o enredo, a história, mesmo que lida em voz alta por um adulto.
A personagem negra6 e dotada de grande beleza provoca estranhamento e reflexões no leitor. Afinal, como afirma Iser (1996, p. 75), ―o sentido do texto é a-penas imaginável, pois ele não é dado explicitamente; em conseqüência, apenas na consciência imaginativa do receptor se atualizará‖.
6 Cabe ressaltar que, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa econômica Aplicada), as estatísticas da desigual-dade racial mostram, por exemplo, que, na distribuição da renda, dos 10% mais pobres, 70% são negros e 30% brancos, desigualdade que começa na infância e permanece ao longo de toda a vida. Os negros ficam menos de cinco anos na escola, a média de freqüência escolar da população negra é, hoje, de 4,4 anos. O negro, na África do Sul, passa onze anos na escola, o que revela o nosso grande apartheid educacional.
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Perante a produção poética de Ana Maria Machado, a análise de Menina bonita do laço de fita não é tão profunda como merecia, embora tenhamos desta-cado sua peculiaridade: romper com estereótipos tanto em relação ao preconceito racial, quanto à beleza, e propiciar a reflexão do leitor diante do diferente. Diante das análises empreendidas, sobre as crianças de Ana, podemos a-firmar que as obras selecionadas, em virtude dos espaços vazios que permeiam suas estruturas, são textos que prendem seus leitores, pois os conduzem a novas visões do mundo e do ser humano, a partir da visão que a autora instaura em su-as histórias. Tais narrativas, embora direcionadas ao público infantil, podem e devem ser lidas por jovens e adultos, visto que propiciam uma mistura de estranhamento e prazer, pois, em cada obra, encontramos uma nova surpresa e, com isso, de-sestruturam o leitor, tirando-o de suas bases estáveis. Uma vez que rompem com os horizontes de expectativas do leitor, essas narrativas o levam à reflexão, pois, ao ser desestruturado, o leitor é conduzido a reestruturar-se por meio da ação reflexiva. Após a leitura de Bem do seu tamanho (1980), Bisa Bia Bisa Bel (1982) e Menina bonita do laço de fita (1984), procedemos, no tópico a seguir, à análise das obras selecionadas no corpus sobre as adolescentes de Ana: Isso ninguém me tira (1994), Tudo ao mesmo tempo agora (1997), e Amigo é Comigo (1999).
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4.2. As adolescentes decididas de Ana [...] a literatura, na medida em que se mos-tra como verdadeira experiência de auto-conhecimento, pode, então, contribuir na formação do sentimento de identidade do adolescente, humanizando-o, no sentido mais amplo da palavra [...].
Alice Áurea Penteado Martha7 , 2004 Os três textos selecionados para estudo: Isso ninguém me tira (1994), Tu-do ao mesmo tempo agora (1997), Amigo é Comigo (1999), destinados aos ado-lescentes, são possuidores de características comuns que os aproximam. As per-sonagens analisadas são jovens sensíveis, que percebem as transformações que estão ocorrendo em nosso tempo e em nosso espaço. Outra característica semelhante nessas narrativas é a intertextualidade. Por meio desse recurso, a autora, em abordagens dinâmicas e bem articuladas, além de aguçar a curiosidade do leitor, ainda enaltece o brilho literário de cada obra citada, bem como os seus escritores. Os romances escritos especificamente para adolescentes são estrelados por garotos e meninas da mesma faixa etária do leitor, dos dez aos quinze anos, aproximadamente. Mas, afinal de contas, o que é um livro juvenil? Até recente-mente, a indústria do livro dividia a literatura em dois grupos principais, "adulta" e "infantil". Assim: Tratar da produção literária juvenil exige um estudo de sua abran-gência, exige definir o significado de ―ser jovem‖ nos diversos es-tratos sociais e considerar as situações discursivas de escrita lite-rária. Poesia, teatro, ficção, o que compõe a chama ―literatura ju-venil?‖ Uma visita a boas livrarias revela que o segmento de litera-tura produzida para jovens parece ter hoje um desempenho quali-tativo positivo, beneficiado pela maior aproximação entre autores e leitores (CYANA LEAHY-DIOS, 2005, p. 39-40).
7 MARTHA,Alice Áurea Penteado. A literatura dos anos 90: retratos de jovens.In: Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado. Assis: Unesp, 2004.
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Ana Maria Machado retrata, nestas narrativas, o ritmo da vida dos adoles-centes modernos, utilizando-se da linguagem informal, já que a aproximação com a oralidade permite uma identificação com o esse público jovem. As narrativas em pauta abordam questões que chamam a atenção do leitor por estarem intimamente ligadas a situações cotidianas do ser humano. Essas idéias são percebidas no processo de construção das personagens inseridas no mundo ficcional. Eis, então, as histórias, cujas temáticas estão voltadas para a busca de i-dentidade e ritos de passagem. 4.2.1. Isso ninguém me tira: emancipação feminina e adolescência Isso ninguém me tira (1994) relata a história de duas adolescentes que são primas e se apaixonam pelo mesmo rapaz. Gabriela enfrenta até os pais por essa paixão, pois sua prima Dora também gosta de Bruno e conta para muitas pesso-as, que acham que ela está namorando de verdade. Mas, Dora descobre que era pura criancice e deixa o caminho livre para Gabi, mesmo assim, os pais a proí-bem de ver o seu grande amor. Porém, nem só de problemas vive a adolescên-cia. Enquanto luta por seu amor, Gabi aprende a defender também seus sonhos e suas idéias. E descobre a necessidade do trabalho e o prazer da independência. Esta obra propõe uma reflexão sobre a emancipação feminina, já na ado-lescência, atraindo a curiosidade dos adolescentes, por se tratar de um assunto corriqueiro nos tempos de hoje e chama a atenção do leitor desde seu início, pois, no capítulo um, Como tudo começou versão Gabi, o leitor pressupõe que irão a-parecer outras versões da história a ser contada, aguçando a curiosidade de quem está começando a leitura. Assim, o leitor percebe diferentes vozes, que se manifestam para apresentar o mundo narrado. A construção da personagem feminina se dá desde o começo da narrativa , pois destaca primeiramente, Gabriela, tratada por um apelido - Gabi - e que é também a protagonista da história.
A construção das demais personagens acontece no decorrer da história, elas se modificam e se ajustam diante das circunstâncias que a vida lhes oferece. Essas mudanças são marcadas pelos acontecimentos e pelas impressões de Ga-
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bi, pois o enredo se inicia pelo seu ponto de vista, já que é a narradora. Assim, a construção das personagens está intrinsecamente ligada às diferentes vozes da narrativa, pois o narrador se intromete na história e nas pontuações tecidas pelas personagens. Dessa maneira, o texto está permeado de discurso indireto livre, destacan-do, portanto, além dos fatos narrados, o pensamento das personagens, o que permite a aproximação com o leitor e além desse recurso estilístico, para assegu-rar ainda mais essa proximidade, a narradora chama a atenção de quem está lendo a história, como uma maneira de envolvê-lo e torná-lo cúmplice da narrati-va: ―Para você entender bem‖ (1994, p. 12, grifo nosso). O segundo capítulo é assim nomeado: Como tudo começou versão da Do-ra, prima de Gabi. O segmento em questão trabalha com a multiplicidade de mo-dos ou formas narrativas para mostrar a posição particular de cada personagem. Em conformidade com Kayser (1976), a narrativa epistolar é uma maneira especi-al, marcada pela primeira pessoa. Porém, com o diferencial de que a personagem está escrevendo uma carta para seus familiares e contar o seu lado da histó-ria:”Livramento, 4 de abril de 19...Alicinha, minha irmã querida,Não se espante com esse envelope e essa carta batida a maquina.” (MACHADO,1994, p.16). Assim, o capítulo é composto por várias cartas de Dora, escritas para sua irmã Alicinha, cada qual com uma data, em que ela relata sua paixão por Bruno e os fatos vividos na casa da prima Gabi, onde mora temporariamente. No terceiro capítulo: Como tudo começou versão Bruno, também é narrado em primeira pessoa, mas há uma particularidade a se destacar, pois se trata da voz de Gabi, que relata os fatos ocorridos como se fosse o personagem Bruno: ―Apesar do título aí, ainda sou eu Gabi, quem conta. Sou eu mesma quem está contando tudo. [...] Eu já contei o meu lado e o lado da Dora nessa trapalhada toda‖ (MACHADO,1994, p. 31). Portanto, a narradora ora fala em seu nome, ora fala em nome de outras personagens e explica o porquê dessa opção. Nessa o-bra, a metalinguagem é utilizada tão sutilmente que o leitor demora a perceber esse recurso tão bem aproveitado.
O quarto capítulo começa com a narradora dialogando novamente com o leitor: ―Parece que foi tão simples, não? Engano seu‖ (MACHADO, 1994, p. 38, grifo nosso). Mais uma vez, convida-o a participar do mundo narrado, aproximan-
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do-o dos fatos que estão sendo relatados. Nesse processo, está imanente a preo-cupação da narradora em convencer o seu leitor, fazendo-o acreditar nela. Ainda nesse capítulo, o leitor se depara com os anseios e pensamentos de Gabi, o que contribui de forma relevante para sua caracterização, pois se mostra cho-cada com a notícia do casamento de sua prima: ―Como é que deixam uma meni-na de quinze anos, com a vida inteira pela frente, se amarrar a um ignorante?‖ (MACHADO, 1994, p. 40). Desse modo, Gabi revela que, talvez, possa ser uma escritora futuramente. Por meio das lacunas que o texto apresenta, o leitor que ela é uma adolescente inteligente, cheia de perspectivas para o futuro e contestadora: ―E precisava tentar ser inteligente [...]. Isso ninguém ia me tirar. Pela primeira vez na minha vida, não estava dando para confiar inteiramente nos meus pais [...]‖ (MACHADO, 1994, p. 53-56). Mesmo estando apaixonada por Bruno, não se deixa levar pela opinião dos outros e nem do namorado. Por meio das intertextualidades que a narrativa apresenta, pode-se entrar em contato com grandes nomes da nossa literatura, quando a narradora cita per-sonagens de Machado de Assis e o livro Dom Casmurro e destaca Capitu como uma das personagens prediletas do seu pai:‖Se Dom casmurro era um dos livros preferidos do meu pai [...]‖ (MACHADO, 1994, p. 49). Outro elemento importante na construção da personagem principal é a lin-guagem utilizada, apesar de ser informal, é bem trabalhada, como nesse exem-plo, em que se pode sentir toda a fúria da personagem, por meio dos superlativos , neologismos e aliterações, no qual, ela cita uma personagem de Machado de Assis: ―Fiquei furiosa‖. Formosíssima, furiosérrima, furiosésima, furiosélima, su-perfuriosa, todos os superlativos que o José Dias conseguiu inventar‖ (1994, p. 63, grifo da autora). Como podemos perceber, Gabi é uma personagem inserida em seu tempo, contesta valores e atitudes, até mesmo, de seus pais. E é com sua família que sofre uma grande decepção e faz sua mãe repensar suas ações para conduzir a família. A mãe, apesar de trabalhar fora, ainda usa de subterfúgios, mentiras e dissimulações para agradar o marido e garantir a paz dentro de casa:
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Foi muito, muito ruim. Acho que a maior decepção da minha vida. Acho que só me senti assim quando eu era criança e descobri que Papai Noel não existe – e mesmo assim, foi bem diferente. Na-quela hora, todo mundo me consolou. E agora eu estava sozinha tendo de encarar a situação. Porque o duro mesmo foi descobrir minha mãe mentindo. E se ela mente, com quem é que eu posso contar? (MACHADO, 1994, p. 66). Ao longo da narrativa, confirma-se o caráter e a força de Gabi diante das adversidades, tanto em relação ao seu desejo de trabalhar, que a família e o na-morado desaprovam, quanto ao seu sentimento por Bruno. Procura realizar seus sonhos, mesmo que, para tanto, tenha de sacrificar seu relacionamento amoroso: ―- A gente é do tamanho do que consegue sonhar‖ (1994, p. 98). Podemos dizer que é impossível definir uma personagem na sua totalida-de, mesmo com diversos dados sobre as características físicas e psicológicas, portanto, cabe ao leitor constituir de modo fragmentado, ao longo da narrativa, o perfil psicológico de Gabi, considerando que ela é uma adolescente: ‖Contar tu-do? Nunca mais...Não me entendiam mesmo...‖ (MACHADO,1994, p.58). Isso ninguém me tira (1994) é um exemplo de como a imagem do leitor es-tá construída na narrativa juvenil, pois se configura em um texto em primeira pes-soa que em vários momentos se utiliza do texto epistolar. Entretanto, ela eviden-cia um traço característico do romance moderno: "a perda de uma perspectiva considerada inquestionável" (ISER, 1999, p. 163). A necessidade do diálogo, seu caráter indispensável para a constituição de um ser, parece ter facilitado a pro-clamação da maioridade do leitor. É um texto com final aberto, deixa lacunas para o leitor preencher. É uma obra que rompe com as expectativas de quem lê que, geralmente, espera um ―final feliz‖ para o amor de Gabi e Bruno, mas isso parece não acontecer.
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4.2.2. Tudo ao mesmo tempo agora – inclusão social Tudo ao mesmo tempo agora (1997) conta a história de Marina, amiga de Jajá, ambos estudavam em uma escola particular, tinham amigos ricos e viviam em um prédio de classe alta. Até aí tudo bem, porém o amigo de Marina é, na verdade, filho do porteiro do prédio e só estuda em escola particular porque tem uma bolsa de estudos. O cotidiano desses adolescentes, que só queriam ajudar o mundo, é contado aos poucos. Questões sobre preconceito, ética, justiça e solida-riedade são enfocadas nesta obra. Muitas coisas interessantes acontecem naque-le ano. Marina viveu um encontro completamente inesperado. Sem dúvida, esse fato marcou para sempre a vida dela. O amigo de Marina enfrenta vários problemas na escola relacionados com o preconceito. Ele é um ótimo aluno, com notas altas, e não gosta de injustiças. Uma das características desta obra, diferentemente das demais enfocadas até o momento, ocorre pelo fato de a protagonista, Marina, não ser a narradora do texto. O narrador aparece em terceira pessoa, onisciente, tudo sabe sobre a história e a conta sem participar dela: Marina colou logo um adesivo bem escolhido no dia 08 de setem-bro. Pegou um jogo de canetas novas, que também tinha ganho, e escreveu com letras caprichadas, cada uma de cor [...] Depois, em letras menores, marcou o aniversário do pai, o da mãe e do Rafael – e colou em cada página uma estrelinha (MACHADO, 1997, p. 7). Assim, é como se uma voz não identificada se pusesse subitamente a pro-duzir a narrativa, como diz Mieke Bal, em seus estudos sobre Genette, ―O narra-dor do tipo mais freqüente, o narrador invisível, embora não deixe traços de seu ato de enunciação, é efetivamente sujeito da narração‖ (Bal,1978). Mas, pela aproximação estética, sua voz aparece colada à das personagens. O narrador se utiliza, para esse encurtamento estético, de discursos indiretos livres, de monólogos interiores. O efeito que provoca no leitor é de proximidade às personagens, pois possibilita a ele situar-se dentro dos pensamentos das personagens, sem ter tempo de perceber que é a voz narradora quem fala.
Um fator importante para a construção da personagem feminina é que a narrativa tem início enfocando, primeiramente, uma personagem feminina, dando
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maior destaque a ela: Marina, a protagonista, que às voltas com sua agenda, comportamento típico da adolescência, ao marcar as datas de aniversário e datas especiais, destaca o seu aniversário com letras diferenciadas: Pegou um jogo de canetas novas, que também tinha ganho, e escreveu com letras caprichadas, cada uma de uma cor: MEU ANIVERSÁRIO. Era por onde sempre gostava de começar sua agendas. Dava sorte (MACHADO, 1997, p. 7,grifo da autora). A construção da personagem feminina se dá por meio do discurso indireto livre, pois o narrador representa o mundo interior de Marina, misturando reflexões, pensamentos e recordações e explorando seus aspectos subjetivos: ―O pior de tudo era se sentir sozinha, abandonada pelas amigas. Até pela Bebel...Ou principalmente pela Bebel...Ninguém tinha ficado com ela‖ (MACHADO, 1997, p. 41). E desta maneira, o narrador pode mostrar diretamente como a protagonista percebe os dados da realidade ficcional e reage a eles: cria-se a impressão de que a narrativa provém diretamente da mente da personagem: ―Sempre a mesma preguiçosa...Por ela não faz nada...Só quer moleza‖, pensou Marina, que não es-quecia o episódio da cola e não conseguia mais ser amiga da Solange‖ (MACHA-DO,1997, p. 53, grifo da autora). Esse tipo de focalização pode se limitar a apenas uma personagem ou ser extensivo a várias delas. Nesse segundo caso, a narrativa oferece diferentes no-ções de realidade ficcional ao leitor, que pode apreender diretamente várias vi-sões de mundo. Conforme Jauss (1979), o prazer estético permite ao leitor viver experiências alheias e, se o texto permite a possibilidade de experimentar uma outra realidade que não a sua, o receptor pode romper com a práxis do cotidiano, constituindo uma nova visão da realidade que o circunda. O narrador opta pela exposição dos acontecimentos de acordo com a se-qüência cronológica, ordenando seu enredo em sintonia com a história. A narrati-va é organizada com início, meio e fim, o que geralmente confere ao texto um de-senvolvimento mais rápido.
Para contribuir com a construção da personagem Machado utiliza-se do nome e sobrenome, assim garante à protagonista a mesma marca de identidade
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individual de uma adolescente: ―Ela, Marina Campos Neves. Bem desse jeito que era‖ (1997, p. 11). É um recurso para que ela seja vista como uma jovem ―em particular‖. Assim como os apelidos dos quais lança mão, bem de acordo com a linguagem informal utilizada no texto: ―Hesitou um pouco na folha do irmão... mas, enfim, mesmo que o Rafa não merecesse muito, a agenda merecia‖ (1997, p. 7). Marina Campos Neves e Rafa, nomes como esses podem muito bem ser encontrados no nosso cotidiano, são nomes relativamente comuns e de acordo com Aguiar e Silva (2002), o nome é um elemento extremamente importante ao caracterizar uma personagem, como ocorre na vida de cada pessoa, o que possi-bilita uma identificação e aproximação do leitor. A caracterização das personagens pode ser realizada diretamente, uma vez que seus traços físicos e/ou psicológicos são fornecidos explicitamente, pela própria personagem (autocaracterização), como faz a protagonista, por meio do discurso indireto livre. Este recurso se torna outro fator de cumplicidade com o leitor, por ser mais uma característica que aproxima Marina da grande maioria dos adolescentes: o fato de usar ―aparelho dentário‖: ―Era, finalmente, o grande dia. Ia tirar o aparelho dos dentes!‖ (1997, p. 91). E como toda jovem nessa fase, tinha uma baixa auto-estima: ―Quer dizer, podia ter tirado o aparelho e melhorado a boca, mas nem por isso se achava bonita de verdade, como queria ser e se imaginava por dentro‖ (1997, p. 92). Desse modo, o ―prazer da identificação‖ permite ao leitor participar de ―experiências alheias‖, coisa de que, em nossa realidade cotidiana, não nos julgamos capazes‖ (JAUSS apud LIMA, 1979, p. 99). Então, Marina e Cíntia são capazes de experimentar situações inusitadas e essas experiências ficionais mobilizam a experiência de vida do leitor, resultado do jogo de perspectivas do texto. Um dos aspectos interessantes nesta narrativa, em relação à construção das personagens femininas, por se tratar de adolescentes, é o relacionamento com os pais e demais adultos que interagem no enredo e que se destacam pelo respeito, no entanto, sem submissão. O diálogo entre gerações propicia o entendimento, mesmo ocorrendo as típicas divergências: ― Já a Solange [...]Todo mundo da classe ficou sabendo que depois da entrevista com os pais dela com Dona Dóris [...].Foi bronca, castigo, um horror‖ (MACHADO, 1997, p.45).
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As descrições realizadas por Machado são exemplos de jovens inseridas no seu tempo e no seu espaço:‖ Será que, em outro lugar, outra menina nessa mesma hora estava fazendo a mesma coisa?‖ (MACHADO, 1997, p.10). Esse é um fator importante, que contribui para a individualização das personagens femininas nesta obra. Outro fator de caracterização da protagonista são os diálogos entre Marina e Cíntia, pois propiciam ao leitor entrar em contato com as personagens adultas, uma delas é a atriz Mirella Morel: ―- Pois é... E não adiantou nada o Jajá argumentar que a Mirella também é uma trabalhadora. O seu Nilson é muito teimoso, acha que ser atriz não é trabalho de verdade‖ (1997, p. 93). Outras personagens femininas merecem destaque, uma delas é Cíntia, melhor amiga de Marina, ela é uma jovem centrada, mas não gostava muito de estudar: ―Em geral, Cíntia já não era muito chegada a um estudo‖ (MACHADO, 1997, p. 47). Solange, além de não gostar de estudar, ainda colava nas provas, o que resultou na inimizade de Marina: ―Sempre a mesma preguiçosa... Por ela, não faz nada... Só quer moleza‘, pensou Marina, que não esquecia o episódio da cola e não conseguia mais ser amiga de Solange‖ (1997, p. 53). E Adriana, uma diarista que trabalhava para a atriz, Dona Mirella, que age de má fé com a patroa para conseguir ganhar dinheiro ilicitamente: ―- A Zilda sabe que é mentira, que a Adriana só veio umas vezes e fez faxinas e não voltou, porque não deu certo...‖ (1997, p. 89). Pelo comportamento dessa personagem, desencadeia-se um questionamento de valores por parte de Marina, que não se conforma com a falta de justiça, demonstrando, assim, seu bom caráter. Para compor essas personagens adolescentes, Machado faz uso da linguagem coloquial, própria desta etapa da vida, utiliza-se, ainda, de gírias e palavras em inglês para reforçar na caracterização: ―No fundo, a própria Cíntia sabia que não tinha tanto horror assim do trabalho em equipe. Quer dizer, até curtia estudar com os colegas [...]‖ (1997, p. 47), ―Mas ela avisou que vocês vão ver só, vai dar a vocês uma unforgetable lesson‖ (1997, p. 43,grifo da autora). Mesmo lançando mão de uma linguagem informal, a escritora não deixa de lado o cuidado especial ao elaborar seu texto, por meio de comparações, repetições de palavras e diminutivos para enfatizar os questionamentos:
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Mas será que algum dia essa fome e essa sede iam mesmo ser saciadas? Será que dava para imaginar um tempo em que a justiça ia mesmo ser feita e a alma podia ficar com uma sensação boa, igual ao corpo quando está de barriga cheia, acabou de tomar água fresca, e deita em uma cama bem descansadinho? Será que existe esse tipo de bem-estar? Alguém já sentiu a alma toda gostosinha, metida em um agasalho aconchegante, daqueles que a mãe sempre queria que ela usasse no corpo? (MACHADO, 1997, p. 95-96, grifo nosso). A intertextualidade é outro recurso presente na narrativa que embeleza o final do texto e traz, para o mundo narrado, outros textos de escritores maravilhosos. Além de aguçar o leitor, isso faz entrar em contato com outro gênero literário, como o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Mello Neto: Belo porque tem do novo O frescor e a alegria, Como o caderno novo, Quando a gente o principia (apud,MACHADO,1997, p.139) Ressaltamos ainda a professora, Dona Odete, que, com sua postura firme e profissional, contribui para o amadurecimento das personagens adolescentes do mundo narrado: Lembrando disso agora, o menino incluiu mais um presente em sua lista. Para Dona Odete.Ia escolher um livro. Mulherzinha decidida, aquela! Assim como quem não quer nada, na maciota, foi conversando e fez uma revolução na vida dele (MACHADO, 1997, p. 138). Ao analisar essas personagens femininas, percebemos que a maioria delas são privilegiadas por mostrarem força e caráter em suas atitudes, mesmo sendo tão jovens. Observamos a preocupação de Machado com o registro da experiência cotidiana dos adolescentes em geral, pois procura aproximar as personagens do mundo ficcional da realidade.
Assim, o leitor percebe diferentes formas de configurar a realidade, pois a pluralidade de vozes propicia ao leitor uma nova visão da realidade, daí o resultado do efeito emancipador do texto literário, a obra de arte deixa de ser uma ―representação de valores dominantes‖ (ISER, 1996, p.40).
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4.2.3. Amigo é Comigo: adolescência e amizade Em Amigo é Comigo (1999), a protagonista é a própria narradora. Tati, uma adolescente de classe média, cuja mãe tem uma profissão fora de casa, e que vivencia uma série de conflitos provocados pela adolescência e pelas amizades que a decepcionam. Avalia o que significa amizade enquanto escreve um livro sobre os amigos, descobre os prazeres e obrigações envolvidas nesta relação. A construção da protagonista se dá à medida que relata o seu conflito inte-rior, gerado pela visão que tem do mundo, dos amigos e das situações circundan-tes. Podemos chamá-la de personagem esférica ou redonda, pois sua composi-ção é organizada com maior complexidade, ela evolui e surpreende ao longo da narrativa. Nessa obra, a protagonista, Tati, tem a dupla responsabilidade de ser ―heroína‖ e, ainda, responsável pela narração, o que garante maior subjetividade à narrativa. Ao longo da história, Tati tece juízos de valor sobre seus melhores amigos e vai se abrindo para novas amizades. Através de suas decepções e reflexões, ela torna isso possível. Suas maiores indagações giram em torno da decepção com sua melhor amiga Adriana (Dri), ela a constrói e desconstrói, quando passa a enxergá-la como é verdadeiramente. Escreve um livro para um concurso do colégio, porém acaba desistindo da participação, porque entende que os fatos foram relatados unicamente do seu ponto de vista, o que, a seu ver, parece injusto. Nesta obra, a narradora descreve detalhadamente os aspectos físicos das personagens, bem como as característi-cas psicológicas de cada uma delas. Quando conhece sua melhor amiga, Adriana (Dri), ela assim a descreve: Só aquela menina que eu nunca tinha visto, sentada na areia. De blusa de lã, casaco e até gorro! No primeiro momento, pensei que era uma figura esquisita. Mas aí ela sorriu e até achei simpática, quando me perguntou se eu não queria brincar com ela (MACHA-DO, 1999, p.13). Porém essa construção se dá parcialmente, porque a protagonista, sutil-mente, informa e adverte o leitor de algo escondido atrás da melhor amiga:
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[...] o jeito vai ser encarar os fatos e reconhecer que a Adriana não é mesmo essa amiga maravilhosa que eu estava pensando, e vai ficar para trás na minha vida, como uma lembrança bonitinha per-dida na infância! (MACHADO, 1999, p. 84). As impressões das personagens, geralmente, são desconstruídas por um outro ponto de vista, por exemplo, Tati, ao terminar de se arrumar para uma festa, sentia-se feia, com jeito de garoto. Na visão da amiga: ―- Puxa Tati, você está demais! Essa roupa ficou super superlegal‖ (1999, p. 12). A construção da personagem principal se dá no decorrer da narrativa. Ela se modifica e se ajusta diante das circunstâncias que a vida lhe oferece. Essa mudança é marcada pelas atitudes e percepções de Tati – narradora, justificando suas afirmações. Assim ocorre também com a construção das demais persona-gens que estão diretamente ligadas à narradora, pois ela participa da história e a conta. O leitor sabe tudo o que se passa pelo seu olhar. Tati mostra a visão que tem de sua mãe e, ao mesmo tempo em que a caracteriza positivamente, ela a desconstrói, porque gostaria que fosse como a mãe da amiga: Minha mãe também trabalhava, sempre trabalhou fora, é analista de sistemas, vive em um escritório cheio de computador. Mas quase sempre vinha almoçar em casa. E, mesmo quando não vi-nha, ficava telefonando e controlando de longe. Não me deixava ir em casa de gente que ela não conhecia. Se eu quisesse ir a al-gum lugar, tinha de pedir antes a ela ou a meu pai, explicar onde era, com quem eu ia, a que horas voltava, deixar o número do te-lefone de onde estava. Enfim, não me dava tanta liberdade como a mãe de Dri, que eu achava o máximo (MACHADO, 1999, p. 15). O leitor é convidado, a todo instante, a fazer parte da narrativa. Encontra-mos, neste texto, um narrador-personagem, aquele que narra a história, ao mes-mo tempo em que participa dela. A narração é feita em primeira pessoa, assim, o narrador detém a narrativa, contando a história sob seu ponto de vista. Sabe-se tudo pela visão dessa narradora, ela vai envolvendo o leitor através do que conta, principalmente, o leitor adolescente, pois usa um vocabulário acessível e fluente. A impressão que se tem é que a personagem narradora ―bate um papo‖ com o leitor adolescente.
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O narrador submete os fatos aos efeitos da subjetividade, apresentando-os com certa impregnação emocional. Ao leitor, cabe perceber até que ponto aquilo que o narrador afirma se aproxima ou se distancia dos fatos ocorridos, tentando captar o que já é a maneira pessoal de encarar esses acontecimentos. Da mesma forma, o conhecimento das outras personagens, obtido por meio desse tipo de narrador, deve ser sempre avaliado, levando-se em conta a interferência dessa subjetividade. Ao lançar mão deste recurso, a narradora conversa com o leitor e o deixa curioso, citando um livro. Por meio dessa intertextualidade, faz o leitor participar da história e o instiga para a leitura proposta, assim, leva-o a tomar uma posição: aceitar ou não a leitura indicada pela personagem: Não sei se você já leu Mulherzinhas... Se leu, não me conte o fi-nal. Se não leu, pode ir procurar, é ótimo! É a história de quatro irmãs – até fizeram um filme, Adoráveis mulheres (MACHADO, 1999, p. 22,grifo do autor). A narradora aproxima-se do leitor, também, pelo monólogo interior: ―Detes-to a Débora! É uma idiota, ignorante, sem assunto e toda problemática – já repetiu de ano duas vezes e foi expulsa do outro colégio de onde veio‖ (1999, p. 8). Ao utilizar o monólogo interior, a narradora mostra como a personagem percebe os dados da realidade ficcional e reage a eles: cria-se a impressão de que a narrati-va provém diretamente da mente da personagem. Mostra-se, ainda, conhecedora da vida das demais personagens. Assim, permite ao leitor apreciar o ponto de vista adolescente, expõe o seu olhar sob a situação e, em seguida, interfere, dá explicações e tece comentários sobre os fa-tos, inclusive, expõe problemas familiares vividos por suas amigas e intervém a favor delas, tentando ajudá-las, como fez com a mãe de sua amiga Cris, quando percebeu que ela não iria à homenagem feita para a filha: Mas, se eu fosse a senhora, não perdia... Afinal de contas, é uma festa especial para sua filha, que foi a presença decisiva na qua-dra... É uma homenagem da diretoria para ela. Todos os pais es-tão aqui, menos a senhora e seu marido. Pode pegar mal na esco-la, né? (MACHADO, 1999, p. 55).
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Além desses aspectos, a narradora abre espaço para outras personagens expressarem seus juízos de valor sobre os colegas, quando, por exemplo, Cris fala o que pensa sobre Dri: ―- O que é que você acha Dri? Podia ajudar muito, porque esse negócio de menor carente é com você mesma, né? Por experiência própria...‖ (1999, p. 29). A maneira como os acontecimentos são contados aproximam-se do leitor, como se ele participasse do mundo narrado. Assim, essa forma de interação literária é constituída pela ―experiência estéti-ca‖, pois resulta de um processo comunicativo do leitor com a o-bra literária. Segundo Jauss (1979), o leitor vive na obra literária uma experiência que não é sua, ele reconstitui a obra de arte por meio de sua participação estética e emotiva. O ―prazer da identifi-cação‖ permite ao leitor participar de ―experiências alheias, coisa de que, em nossa realidade cotidiana, não nos julgamos capazes‖ (JAUSS apud LIMA, 1979, p.99, grifo do autor). A construção da personagem na narrativa apresenta características pró-prias da adolescência. O leitor deve acionar sua imaginação com o intuito de as-segurar a cooperação na concretude do texto. No entanto, isso depende da sua experiência individual, pois a recepção do texto poderá encontrar dois caminhos possíveis: ater-se à superfície da narrativa ou buscar o sentido subjacente na es-trutura textual. ―Trata-se de apreender a experiência estimulada pelo texto, o que leva inevitavelmente a sua realização; esta se opera através das orientações que dirigem o leitor‖ (ISER, 1996, p. 55). Se um leitor não se apropria dos recursos selecionados pelo escritor (aspectos semânticos, lingüísticos, ideológicos), pode reduzi-lo às suas próprias experiências e não conseguir identificar as lacunas pre-sentes no texto: A relação entre texto e leitor se atualiza porque o leitor se insere no processo da leitura de informações sobre os efeitos nele pro-vocados; em conseqüência, essa relação se desenvolve como um processo constante de realizações. O processo se atualiza por meio dos significados que o próprio leitor produz e modifica (ISER, 1996, p. 127).
A linguagem é outro aspecto fundamental na construção da protagonista, através dela, constrói-se a identidade da adolescente do mundo ficcional de Ana Maria Machado. Tati faz uso de um vocabulário diferenciado das outras amigas,
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pois gosta de estudar, ler e escrever: ―Foi ela quem começou a dizer que sou ―metida a falar difícil‖, só porque usei uma palavra que eu tinha lido (nem me lem-bro qual foi) [...]‖ (1999, p.18). A distinção fica latente ao confrontarmos com a fala de Dri: ―Furiosa, ela xingava:- Aquela vaca loura! Também nunca mais falei com ela. Cansou de telefonar e eu não atendi‖ (1999, p.17). Machado faz uso constan-te da linguagem coloquial, então, o leitor-adolescente se aproxima da narrativa: [...] existe uma preocupação com a linguagem, usada para provo-car a identificação com seus jovens leitores. Crianças e adoles-centes de fato identificam-se com seus personagens, como se to-dos eles vivessem em um mesmo universo (FERREIRA, 2003, p. 147) A personagem-narradora é mais equilibrada, mas, como toda jovem, faz uso do falar informal do cotidiano em que está inserida: - Puxa, meus pais são um pé no saco! Pra tudo eles querem horá-rio. Se eu cismar de levantar às onze horas em um domingo, não posso. Não adianta falar que é domingo, não tenho aula, posso fazer o que quiser. Quer dizer, deixar eles até deixam, mas a me-sa do café fica posta até mais tarde, e tenho que me virar sozinha (MACHADO, 1999, p. 21) O texto Amigo é Comigo faz menção à canção popular composta por Milton Nascimento: ―Amigo é coisa pra se guardar/Do lado esquerdo do peito‖ (1999, p.70). A letra da música dialoga com a situação vivida pela personagem principal. A narrativa também apresenta intertextualidade com outras obras literárias. O diálogo está presente em vários momentos, reforçando o tema principal do livro - a amizade. Então comecei a descobrir um lado lindo do Diego. Eu já sabia que ele gosta de ler. Mas não imaginava que ele conhecesse poe-sia tão bem. Porque em seguida ele disse para mim pelo telefone um poema inteirinho do Manuel Bandeira, chamado Vou-me em-bora pra Pasárgada (MACHADO, 1999, p. 21, grifo nosso).
O Diego outro dia citou uma frase de uma grande escritora brasi-leira chamada Clarice Lispector, que disse em uma entrevista: Li-teratura?Mais vale um cachorro morto. Não sei bem muito bem, mas acho que ela quis dizer que o mais importante de tudo é a vi-
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da, mesmo a que já passou pelo corpo de um animal e se acabou. A simples marca da vida, mesmo de leve, vale mais do que tudo. Até do que a arte (MACHADO, 1999, p. 85, grifo nosso). E Machado prossegue com a intertextualidade até o final do livro, citando Manuel Bandeira novamente e deixando o leitor em ótima companhia: Porque eu quero que qualquer pessoa com quem vivo uma ami-zade possa ter uma certeza, a todo momento, de verdade, bem no fundo: posso até ser apenas uma pessoa comum e sem importân-cia, mas amigo meu é amigo do rei (MACHADO, 1999, p. 86,grifo nosso) Retorna ao diálogo com Manuel Bandeira para reafirmar a idéia tanto de amizade quanto do ato de escrever, especificamente, escrever poesia: ―Talvez inspirada pelos versos de Manuel Bandeira, resolvi que ia partir para a poesia. Fazer um poema sobre amizade‖ (MACHADO, 1999, p. 82). Na criação das personagens femininas, percebemos o trabalho minucioso da obra, como construção literária, uma vez que apresenta uma linguagem toda particular e especial nas suas composições. As personagens aqui abordadas, principalmente a protagonista e narrado-ra, facilitam ao leitor a aceitação das verdades expostas por elas, conforme atesta Antonio Candido. Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor (CANDIDO, 1968, p. 54). O leitor dos textos de Machado assegura o seu lugar no mundo ficcional, pois sua participação ocorre naturalmente, em decorrência da organização estru-tural, porque há lacunas que instigam a sua presença na formulação de sentidos da história relatada. Nesse sentido, o esquema descrito do papel do leitor é uma estru-tura do texto. Mas, como estrutura do texto, o papel do leitor re-presenta, sobretudo uma intenção que apenas se realiza através dos atos estimulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente unidos (ISER, 1996, p. 75).
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No caso da construção das personagens, percebe-se uma desconstrução das normas tradicionais, pois a autora se utiliza constantemente de apelidos. As-sim, aproxima-se ainda mais do leitor e caracteriza seu foco principal – o adoles-cente - esse recurso evidencia a autonomia dos textos. Uma vez que a realidade textual instaura-se mesmo no olhar do leitor, ca-berá a ele compor o texto, com suas vivências e experiências acumuladas, pois cada leitor é único. Assim, considerando, podemos dizer que os textos literários ati-vam, sobretudo processos de realização de sentido. Sua qualida-de estética está nessa ―estrutura de realização‖, que pode ser i-dêntica com o produto, pois sem a participação do leitor não se constitui sentido (ISER, 1996, p. 62, grifo do autor). Desse modo, esta obra tem uma estrutura que desautomatiza a percepção do leitor, confrontando-o com rupturas lingüísticas e/ou ideológicas. Oferece, ain-da, lacunas que são automaticamente preenchidas pelo leitor de acordo com suas expectativas, mesmo abordando questões polêmicas, pois não fornece critérios fechados. A produção literária juvenil tem o papel de ampliar os horizontes do leitor, através da apresentação de uma visão crítica do mundo e colocando em cena personagens com as quais a criança e o jovem se identifiquem. As narrativas de Ana Maria Machado cumprem com esse papel, como demonstramos, de distintas maneiras, nas obras até aqui analisadas. Como vimos, nas narrativas analisadas, pudemos constatar lacunas, espaços vazios e pontos de indeterminação, os quais, caracterizando-se como meios de acesso para a atuação do leitor, são responsáveis por propiciar sua imaginação e inteligência, colaborando, dessa maneira, com a sua formação.
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4.3. As mulheres audaciosas de Ana Um livro não é apenas aquilo que está es-crito nele, mas também a leitura que o lei-tor faz desse texto. Ana Maria Machado - 2001 Nos tópicos abordados anteriormente, deparamo-nos com crianças arroja-das, belezas inusitadas e adolescentes decididas. Pudemos observar que as per-sonagens até então analisadas estão inseridas no seu tempo e dialogam com lei-tores de todas as idades. Nas obras adultas escolhidas para análise, ficamos di-ante de mulheres audaciosas, que não sossegam diante da posição de subservi-ência que ocupam na sociedade e que a tradição patriarcal insiste em manter. São mulheres conscientes, trabalhadoras, que amam e questionam o mundo em que vivem, são atuantes politicamente. Vamos então, a partir de agora, firmar um encontro com essas mulheres audaciosas e inteligentes, esculpidas por Ana Ma-ria Machado. Iniciamos nossa análise pela primeira obra escrita para leitores adultos: Ali-ce e Ulisses (1983), permeada de intertextualidade, amores proibidos e que tem a mitologia como pano de fundo. Em seguida, enveredamos pelo relato das desven-turas da juventude brasileira pós-64, em Tropical sol da liberdade (1988). Vivenci-amos o drama do exílio político e do retorno ao país de origem e sentimos todo o percurso de uma mulher, ao tentar se reencontrar consigo mesma, por meio de um ―acerto de contas‖ com o passado doloroso. A fim de concluir as análises, passamos para o livro A audácia dessa mulher (1999), nele, encontramos perso-nagens femininas marcantes, em um texto cheio de intertextualidade e metalin-guagem, no qual várias histórias coexistem, surpreendendo e envolvendo o leitor a cada capítulo. 4.3.1. Alice e Ulisses - tradição e ruptura Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade, a cultu-ra grega antiga sempre despertou o entu-siasmo de leitores apaixonados, em dife-rentes épocas históricas. Ana Maria Machado, 2002.
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Primeiro romance para adultos de Machado, Alice e Ulisses (1983) foi dire-tamente inspirado em um fascinante herói da epopéia épica, Odisséia, a que os gregos chamavam de Odisseu: inteligente, corajoso, disposto a se meter em tudo o que é aventura, mas o tempo todo pensando em retornar. Alice e Ulisses (1983) é uma história de amor que relata a paixão entre uma mulher descasada e um homem casado. Alice, como a personagem de Car-roll, está disposta a explorar o país das maravilhas e vivenciar intensamente as novas sensações. Ulisses, como a personagem de Homero, está disposto a gran-des aventuras e a se divertir pelo caminho, mas não perde de vista que um dia vai voltar para casa. Alice e Ulisses se vêem frente a frente com suas próprias verda-des neste romance que tem a mitologia como pano de fundo. A história explora o amor e o eterno conflito do homem entre a realidade e a fantasia. Alice conhece Ulisses em uma festa e, a partir daí, começa todo o conflito da trama. Ulisses é cineasta e casado, ela é professora e separada. Vivem inten-samente uma paixão. Mas, como Ulisses é casado, Alice tenta evitar esse rela-cionamento, todavia não resiste ao forte sentimento e assume, por um tempo, seus sentimentos. Ela trava uma luta contra si mesma e termina o relacionamento a contragosto do amante. Então, surge, para encerrar a história, Adélia, esposa de Ulisses. Presa a convenções sociais e sem querer mudar o rumo de sua vida, propõe a Alice o rea-tamento do romance ―clandestino‖ com seu marido para que ele volte a ser feliz, sem se separar dela. Aceita o marido infiel a fim de manter um casamento de a-parências. Alice fica chocada com a proposta e tenta seguir sua vida, sem a in-tenção de aceitá-la.
A voz narradora é em terceira pessoa, a apresentação da personagem é feita por um narrador posicionado fora da história, um recurso muito antigo e mui-to eficaz. Assim como nas epopéias clássicas, a personagem não é posta em ce-na por ela mesma e, sim, pelo relato de suas aventuras e ações. Mas, através da habilidade do narrador, o enredo está permeado de discurso indireto livre, passa-gens em que se observa o pensamento interior da própria protagonista: ―Pensan-do bem, por que não? Sempre podia entrar por uma porta e sair pela outra‖ (MA-CHADO, 1983, p. 10). Esse recurso garante credibilidade aos fatos narrados e, de
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certa forma, ao inserir o leitor no mundo interior de Alice, contribui positivamente para a sua construção, uma vez que a aproxima de quem está lendo a história.
Alice é inspirada em Alice no país das maravilhas, um clássico da Literatu-ra Infantil, ela é corajosa, atira-se às aventuras, enquanto Ulisses é prudente e sagaz... Não é o mesmo ―herói épico da Odisséia8 de Homero‖, porém é como se fosse, embora ancorado no século XX, dividido entre a razão e a paixão. A elabo-ração de Alice leva em conta conflitos diversos que a compuseram, passando por várias outras estratégias, pois ela vai questionando as verdades e os valores do passado e do presente, com relação à condição feminina: - Sabe, Ulisses, acho que agora já está dando para ver que no fundo, mesmo, o problema é político. - Político? - É tudo recai na própria condição da mulher. Você se comportou exatamente como uma metrópole colonizadora. Eu estava quieta no meu canto, posta em sossego... (MACHADO, 1983, p. 84). A criatividade e inventividade são ressaltadas nesta obra pelo processo de reconstrução da personagem, que se faz através de um relacionamento conflituo-so com um homem casado, um amor clandestino, proibido pelas normas sociais. Como parte do processo de amadurecimento, de mulher separada a amante, Ali-ce é recriada das mais diversas maneiras: em uma delas, a protagonista chama a atenção do leitor, desde o início da história, por viver um amor ―ilícito‖ e, através de seus pensamentos e das ações vividas no mundo narrado, revela seu caráter e sua singularidade diante de Ulisses: Ulisses se espantou com a visão repentina daquela menina cam-ponesa por trás da mulher elegante que ainda há pouco se movia tão à vontade no coquetel. De repente ela tinha instalado a terra no asfalto, pisava a lama com pés descalços, tinha mãos grossas [...] (MACHADO, 1983, p. 22).
Na ficção contemporânea é vista como personagem-individualidade, con-forme Nelly Novaes Coelho (2005), já que ela se revela ao leitor pelas complexi-
8 Ana Maria Machado recupera ,nesse livro, a Odisséia que é uma das obras mais importantes da literatura universal. Durante muito tempo, nem ao menos foi escrita, era um longo poema, repetido oralmente, cantado de cidade em cidade por poetas itinerantes, os aedos. Depois de sobreviver alguns séculos dessa forma, seus versos foram registrados, quando o alfabeto foi introduzido na cultura grega e isso se tornou possível.
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dades, perplexidades, impulsos e questionamentos sobre a estrutura familiar, in-dagações sobre a vida, posicionamento político, mudanças de relacionamentos, sentimentos íntimos, amizade e profissionalismo. A estrutura interna do texto é marcada pela aventura interior da persona-gem Alice, desde o instante em que se liga tão intensamente à figura de Ulisses – seu amor proibido - e com ele passa a conviver cheia de conflitos. A mitologia se revela como pano de fundo da protagonista. Logo no início da narrativa, Alice vai traçando o perfil de Ulisses, diferenci-ando-o dos demais: ―Ela também viu Ulisses. Simples assim, que nem composi-ção infantil‖ (MACHADO, 1983, p. 12). Percebemos, então, que os diálogos entre os sexos, os mitos e os conceitos de mulher moderna e de mulher clássica contri-buem para a construção da identidade de Alice. Esse contraponto é percebido ao citar a mitologia grega: Enquanto Ulisses fazia a guerra e o amor pelos mares afora, a pobre Penélope cumpria sua pena, recusava pretendentes e re-primia suas próprias pretensões, criava teia de aranha na vagina sem uso e desembainhava os fios para armar a tapeçaria incon-clusa [...] Sísifo repetindo sempre a mesma tarefa, símbolo da maldição humana. Para a mulher, vira exaltação, símbolo de per-feição. Quanto mais sem sentido for sua vida, mais se aproxima do ideal feminino. [...] Não, em matéria de mulher grega, Alice era mais Helena. E não só porque teve gregos e troianos, não. Tam-bém porque a tapeçaria de Helena era outra, e melhor (MACHA-DO, 1983, p. 107-108). Outro fator importante na caracterização das personagens é o nome pró-prio, promovendo a identificação e a individualidade, principalmente nessa obra, já que os nomes resultam de exploração poética e representam, ainda, o título do livro: Alice e Ulisses. O narrador o faz através do jogo fonético: a afinidade sonora e sibilante entre eles. Denomina-as com inteligência e sensibilidade, pois o nome dos protagonistas define seus papéis. A simples escolha dos nomes já poderia remeter o leitor a duas das mais representativas personagens da literatura univer-sal.
A caracterização da postura física de Alice, somada ao discurso indireto li-vre para expressar seus pensamentos e emoções, combinam-se harmoniosamen-
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te, construindo progressivamente o saber da personagem e do leitor. Isso se con-firma através das indagações de Ulisses que, no passeio, vacila na compreensão de quem é esta mulher: Já era Alice e ele nem tinha adivinhado o porquê do aperto do co-ração naquela hora, o prenúncio dessa feiticeira em seu caminho, estava a perigo, ia ser transformado em um bicho, em uma coisa, ia ficar nas mãos dessa moça, dessa menina sadia babando calda de abacaxi (MACHADO, 1983, p. 23). O envolvimento amoroso intenso entre os dois protagonistas, deflagrando o relacionamento, reafirma a composição da personagem em diálogo constante com o clássico, fazendo-a seduzida pela força do homem Ulisses e, ao mesmo tempo, amedrontada. Tentada, sem poder resistir, Alice se deixa levar pelo ímpe-to do ser amado, mas sempre receosa. Continua amando-o, mesmo sendo casa-do, sem saber o destino dessa paixão devastadora. E procura uma saída, tanto quanto a Alice de Carroll procura a saída do País das Maravilhas. Porém, essa Alice não controla suas emoções, mas tenta a todo o instante seguir a razão: O negócio era ir em frente. Foram. Aparentemente, seguindo o ro-teiro clássico, com todos os clichês. Apenas com variações pe-quenas na definição dos personagens: homem compulsivo de-mais, mulher com pretensões à lucidez, ambos excessivamente emocionais [...] (MACHADO, 1983, p. 57-58). O tema da liberdade é enfocado e reforça a composição da protagonista, porém, de forma diferenciada, pois trata da liberdade conquistada pelas mulheres ao longo dos anos e abre espaço para o tempo histórico, uma vez que possibilita a conscientização do leitor. Esse posicionamento de tempos e épocas é percebi-do nas falas de Alice:
Mas qualquer que fosse a história ia ser sempre uma maneira mais ou menos divertida de falar da vida e da História. De um in-seto criado na areia poluída e do tempo que a aventura humana percorre. Tempo que antigamente se media pela areia caindo nas ampulhetas, como essa que escorria de sua mão, que corria em sua carne de mulher [...]. Filha de Helena, filha de Penélope? Filha de Eva, isso é que Alice era. Bem como Alice da história, filha de
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Eva depois da Revolução Industrial, deixando para trás o tempo do tear manual (MACHADO, 1983, p. 109-110). As grandes obras são as que permanentemente provocam nos leitores, de diferentes momentos históricos, a formulação de novas indagações que os levem a se emanciparem em relação ao sistema de normas estéticas e sociais vigentes. O efeito libertador provocado pela literatura é fruto do seu caráter social. Para Jauss (1994), a interação do indivíduo com o texto faz com que o sujeito re-conheça o outro, rompendo, assim, com o individualismo e, conseqüentemente, promovendo a ampliação dos seus horizontes proporcionada pela obra literária: E isso porque, ante o (hipotético) não leitor, o leitor tem a vanta-gem de [...] não precisar primeiramente topar com um novo obstá-culo para, então, adquirir uma nova experiência da realidade. A experiência da leitura logra libertá-lo das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas (JAUSS, 1994, p. 52). Um recurso também presente no texto é a metalinguagem, levando os lei-tores a descobrirem o significado do ato de escrever e como se processa a cria-ção literária: ‖Quero o tecido do texto e os fios da narrativa. Que floresçam as his-tórias sem fim‖ (MACHADO, 1983, p. 112).
Outra personagem feminina presente no texto – a antagonista - de extrema relevância para o desfecho da trama, é Adélia, sua composição é inspirada em Penélope9 que, na Odisséia, de Homero, simboliza a fidelidade feminina. Ela é a principal opositora da protagonista. Na narrativa em questão, ela é a mulher traída por Ulisses. Assim como a Penélope grega, assume destaque no final da narrati-va, pois suas atitudes provocam o desfecho da história. Adélia vem do grego (a-delos que significa invisível). Embora sua intenção seja aparentemente diferente da de Penélope, ela tece a sua teia, para depois desmanchá-la. Alice percebe que será extremamente difícil prosseguir seu romance com Ulisses.
Adélia se mostra disposta a tudo para manter seu relacionamento com o marido, aceitando, até, a continuidade da traição. Ela propõe à amante que retor-
9 Tradicionalmente, Penélope tem sido vista como um modelo de fidelidade conjugal, esperando Ulisses por dezoito anos, sem admitir substituí-lo. A situação dessa tecelã tão famosa ficou mais célebre por desmanchar o que fazia do que propriamente pelo tecido criado.
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ne seu relacionamento clandestino com seu esposo. Porém, Alice não aceita a proposta e mostra-se indignada com tal possibilidade. Essa atitude ressalta alguns aspectos significativos da modernidade: os conflitos nos relacionamentos amorosos e a manutenção de um casamento fra-cassado. Adélia representa a coletividade feminina que o narrador descortina co-mo dominada e acomodada. Compreendemos estas características pelas lacunas oferecidas pelo texto e, também, ao confrontá-las com a construção da protago-nista: - Que é que você quer, afinal? - Você podia procurar Ulisses. Vocês podiam voltar. Mas ele não pode saber que eu sei. Primeiro, porque é uma falta de respeito. E depois... - Depois, o quê?
- Se ele tiver um caso e eu não souber, não faz mal, ele fica fazendo coisas para mim, me agradando a toda hora, continua sendo o bom marido que ele sempre foi (MACHADO, 1983, p. 104).
[...] Minha filha, essas coisas eu sei muito melhor do que você. Conheço Ulisses há muitos anos,de cor e salteado.Não dá para me enrolar. Enrolar o novelo, fazer a trança e a meada, manobrar os fios, te-cer a trama e desmanchar tudo para recomeçar. Tarefas milena-res de Penélope (MACHADO, 1983, p. 106,107). A relação entre a protagonista e a antagonista aponta para a relatividade de valores, uma mulher presa a convenções sociais e outra que luta para conquis-tar seu espaço na sociedade. Assim, a narrativa oferece a oportunidade de en-xergar aspectos até então submersos e compreender a origem de certos compor-tamentos socialmente contraditórios. A construção das personagens femininas, nessa narrativa, não exclui o modelo masculino, mas tira, de certa forma, o elemento feminino da marginalida-de. Nesse sentido, essa produção literária reflete as mudanças sociais da cena pós-moderna, em que se diluem os tão organizados e estabelecidos papéis para homens e mulheres.
Ao iniciar a narrativa, o narrador apresenta, em primeiro lugar, a persona-gem feminina: ―Para começar, ela nem queria ter ido‖. (MACHADO, 1983, p. 9,
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grifo nosso). Ocorre uma inversão do ideário grego que colocava a mulher em segundo plano, vê-se aí um rasgo da modernidade. Nessa contextualização, percebemos uma preocupação em frisar o papel feminino, pois o outro protagonista – Ulisses - é apresentado posteriormente. A proposta de colocar em nível de equivalência mulheres e homens reflete, de al-guma maneira, as mudanças do sistema social contemporâneo em relação à An-tigüidade clássica. Alice é uma personagem que rompe com certo tipo de criação das perso-nagens femininas: frágeis, com poucas habilidades criativas e que necessitam sempre de um homem para sobreviver. Essa ruptura se evidencia na sua caracte-rização: é separada, professora e representa a intelectualidade feminina, além de seu papel de mãe. A partir dos discursos diretos presentes no texto, a protagonista vai concre-tizando a imagem de uma mulher inserida em seu tempo: - Conhecer eu conheço. Mas nos encontramos há muito tempo, em casa de uns amigos, uma vez só. E há umas três ou quatro semanas eu telefonei para ele, querendo marcar uma visita lá na escola, que o pessoal das turmas mais adiantadas tinham visto um filme dele e a gente estava querendo organizar um debate [...] (MACHADO, 1983, p. 17). Em Alice e Ulisses, a composição da protagonista é organizada com maior complexidade, ela evolui e surpreende ao longo da narrativa, porque, quando se depara com a mulher de Ulisses, confronta-se com a verdadeira realidade de mui-tas mulheres. Assim, notamos a manutenção da tradição. Ela se modifica e se ajusta diante das circunstâncias que a vida lhe oferece, isso é marcado por suas atitudes e percepções interiores: ―Antes eu não conseguia ver dessa maneira. Acho que é porque agora estou crescendo, amadurecendo‖ (MACHADO, 1983, p.84). Nesta narrativa, a protagonista constrói e desconstrói a imagem das de-mais personagens, como a de Ulisses, porque consegue enxergar sua personali-dade:
Como se Ulisses fosse mesmo dois homens, como tantas vezes parecia. De um lado, o cara famoso, bom marido, com quem Adé-
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lia podia ficar feliz para sempre, Alice não fazia a menor questão. Ela queria era o outro, o maluco, o compulsivo, o angustiado, o que se permitia ser inseguro e não ter juízo (MACHADO, 1983, p. 15). Mais uma ruptura de relevância, diferentemente do que ocorria na socieda-de clássica grega, na qual imperava a superioridade masculina. Neste texto, há um questionamento acerca da supremacia do masculino sobre o feminino. As vir-tudes do ―herói‖ são questionadas por Alice. O leitor é fisgado pela emoção estética, através da intertextualidade, ela o faz participar da história, instigando-o. Com esse recurso, ele entra em contato com os clássicos gregos: ‖Odisséia mesmo era tentar inventar uma nova mulher a partir das filhas milenares de Penélope‖ (MACHADO, 1983, p. 107). Reconstruir os horizontes de expectativas de uma obra em relação ao pro-cesso de produção e recepção sofrido por ela em épocas distintas significa en-contrar as perguntas para as quais o texto constitui uma ou mais respostas. A ló-gica da pergunta e da resposta é o mecanismo da hermenêutica, ao permitir iden-tificar o horizonte de expectativas do leitor e as questões inovadoras a que o texto apresenta uma ou mais respostas, como também mostrar como as compreensões variam no tempo. Dessa forma, o sentido de um texto é construído historicamen-te, descartando-se a idéia de sua atemporalidade: A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto na esfera sensorial, como pressão para a percepção estética, quanto tam-bém na esfera estética, como desafio à reflexão moral. A nova o-bra literária é recebida e julgada tanto em seu contraste com o pano de fundo oferecido por outras formas artísticas, quanto con-tra o pano de fundo da experiência cotidiana da vida (JAUSS, 1994, p. 53). A narrativa aborda indagações complexas de uma forma simples e a lin-guagem se torna fundamental - o coloquial se torna matéria-prima do poético, pois é elaborado de uma maneira toda especial, com a presença de recursos expres-sivos que contribuem para a construção da personagem.
Pode se destacar a linguagem presente na obra como uma ruptura em re-lação à erudição do discurso dos clássicos, pois, segundo Bakhtin (1998), o ho-mem épico está privado de ousar a ter qualquer iniciativa lingüística, pois o seu
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mundo conhece apenas uma única língua estabelecida. ―O discurso épico, por seu estilo, tom e caráter imagético, está infinitamente longe do discurso contem-porâneo que fala sobre um contemporâneo aos seus contemporâneos [...]‖ (BA-KHTIN, 1998, p. 405). Por isso, ao lançar mão da linguagem informal, garante coerência às falas de Alice e propõe ao leitor, ainda, múltiplos olhares ao texto, visto que utiliza um discurso coloquial elaborado, fazendo um jogo com o substantivo próprio Alice e as derivações ressaltadas pelos adjetivos que são usados. Aliciada, ela foi, vá lá. Mas porque quis, das delícias ao suplício. Vai ver que achou que tinha alicerce. E tanto tinha que não perdeu a alucinada lucidez, nem mesmo a alegria inicial do cio, por mais variados que tenham sido os desvairados desvãos e os deslizan-tes desvios (MACHADO, 1983, p. 07). Deu um riso meio tímido, mostrando uma separaçãozinha entre dois dentes inferiores e apaixonados, um jeito aliciante que ela depois foi aprendendo a amar (MACHADO, 1983, p. 18). Quanto à elaboração da linguagem, convém destacar, ainda, o momento da apresentação dos protagonistas, feita por um amigo comum: ―De repente, a alegria de ver bem de perto a bela cabeça triangular Augusto, bruxo-pai adorável [...]‖ (MACHADO, 1983, p. 12). O narrador surpreende o leitor com essa adjetiva-ção, parecendo uma premonição, como se, a partir daquele momento, o destino dos dois estivesse traçado. Os conceitos de mulher moderna e de mulher clássica contribuem para a construção da identidade do leitor. O papel de mulher que vive à sombra do mari-do e apenas cuida da casa e dos filhos,pois muitas mulheres ainda estão ―amar-radas‖ pelos maridos, principalmente, aquelas com dependência financeira. Man-tém-se, assim, a tradição. Alice deixa transparecer sua indignação: Se Alice estava entendendo bem, estava diante de uma mulher notável, desprendida ao extremo, capaz de entender a fundo o seu homem e situar o bem-estar dele em primeiro lugar. Um pro-dígio de auto-anulação. Ou muito amor mesmo [...] (MACHADO, 1983, p. 100).
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Constrói-se a identidade da mulher moderna do mundo ficcional da narrati-va, em uma dimensão individual que se projeta para a identidade coletiva e lhe garante coerência. Alice representa a ruptura com os padrões tradicionais e Adélia, a tradição dos modelos herdados e ainda em vigor na sociedade. Por meio das lacunas, perspectivas não formuladas deixadas pelo texto, devido ao seu grau de indeter-minação, percebemos que, para Alice, o importante não é o ―poder‖ de mandar, o importante, realmente, é não ser passiva e tomar alguma atitude. Assim como afirma Iser: Essas lacunas dão ao leitor a oportunidade de construir suas pró-prias pontes, relacionando os diferentes aspectos do objeto que até aquele ponto lhe foi revelado. É impossível para o próprio tex-to preencher as lacunas. De fato, quanto mais um texto tentar ser exato [...], maior será o número de lacunas entre suas perspecti-vas. Exemplos clássicos disso são os últimos romances de Joyce, Ulisses e Finnegan’s Wake [...] (ISER, 1999, p. 11, grifo do autor). Notamos, ainda, uma desconstrução dos papéis tradicionalmente desem-penhados pela personagem feminina que ficava à espera, e pela masculina que ia ―a luta‖. Isso retrata criticamente o tradicional como ultrapassado, revela o papel de passividade feminina, tendo como referencial Penélope, da Antiguidade clássi-ca, em contraste com a moderna Alice. As ações são contrapostas à opção única que a tradição grega oferecia pa-ra as mulheres: o matrimônio. Alice rompe com essa imposição, separa-se do ma-rido e vai construir a própria vida de forma independente. O texto está permeado de intertextualidade. A narradora lança mão desse recurso em vários momentos para reforçar o tema principal do livro – relaciona-mento amoroso, que tanto envolve Alice - e intensificar a sua personalidade. Ela dialoga com Drummond, também, para desafiar seu leitor a mergulhar em um mundo ficcional mais complexo e, com isso, deixa-o em ótima companhia: Mas as coisa findas Muito mais que lindas Essas ficarão.[...] (MACHADO, 1983, p. 21).
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Na perigosa curva dos sessenta derrapei nesse amor. Que dor (MACHADO, 1983, p. 54). A fim de ressaltar o desejo de interromper o relacionamento da protagonis-ta e deixar outra lacuna a ser preenchida pelo leitor, a voz narradora toma a pala-vra: ―Eu sou Alice. Esperar em Ítaca não está com nada‖ (MACHADO, 1983, p.113). Portanto, fica a indagação: Alice não verá mais Ulisses? Essa obra possibilita ao leitor estabelecer pontes, no conhecimento absor-vido pelo texto, devido aos graus de indeterminação nele contidos, pois propor-ciona uma rede de perspectivas que ele tem de abrir. Assim, fornece momentos para fazê-lo parar e pensar, tornando-o cúmplice e colaborador no processo de leitura: Desse modo, todo texto literário convida o leitor a alguma forma de participação. Um texto que esboça certas coisas diante do lei-tor de tal forma que ele possa ou aceitá-las ou rejeitá-las diminuirá o seu grau de participação, já que não lhe permite nada mais que um sim ou um não. [...] Assim pode ser dito que a indeterminação é a pré-condição fundamental para a participação do leitor (ISER, 1999, p. 13). Uma vez que o texto só adquire existência quando é lido, pois é isso que dá vida às palavras, é através da interação entre leitor e texto que nasce o sentido da leitura. Apesar de todas as considerações aqui levantadas, na obra Alice e U-lisses, a leitura não se encerra nos aspectos que envolvem a criação das perso-nagens femininas. O que há em comum entre as personagens femininas, mesmo tendo carac-terísticas diferenciadas, é o fato de ambas gostarem do mesmo homem, mas a-presentarem um perfil feminino cada qual inserido em sua realidade – Adélia re-presentando a era clássica, portanto, a tradição, e Alice, a modernidade - ruptura. Evidencia-se, ainda, o trabalho minucioso do texto, como construção literária. Ou-tra ruptura a ser destacada, está relacionada à linguagem coloquial, o que difere dos clássicos, cujo discurso era marcado pela erudição. Mesmo Alice sendo a protagonista e Adélia a antagonista, as verdades expostas por elas são mais fa-cilmente aceitas pelo leitor, confirmado por Antonio Candido:
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Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que nós perdoamos os mais graves defeitos do enredo e de idéia aos grandes criadores de personagem (CANDIDO, 1968, p. 54). O diálogo mantido entre Alice e Ulisses e a Odisséia, ligando a história e a mitologia, é possibilitado pelo uso da intertextualidade. Isso permite afirmar que nenhum texto se produz no vazio ou se origina do nada; pelo contrário, todo texto se alimenta, de modo claro ou subentendido, de outros textos. Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade, a cultura grega antiga sempre despertou o entusi-asmo de leitores apaixonados, em diferentes épocas históricas. São uma fonte inesgotável, onde sempre podemos beber. Para muita gente, eles são mais fascinantes de todos os clássicos. Pro-vavelmente são os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO, 2002, p. 26). De igual modo, essa obra convence de que: ―Navegar é impreciso‖, sobre-tudo, quando o navegar se faz pelas páginas dos clássicos. ―Os clássicos são livros que exercem uma influência particular, quando se impõem como inesquecí-veis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual‖ (CALVINO, 1993, p. 10-11). Vale ressaltar que a narrativa de Ana Maria Machado possibilita um espaço de multiplicidade, de entrecruzamento de outros discursos que se tornam formas especiais de comunicação com o mundo, simbolizando os (des) encontros e des-cobertas de outras realidades e, sobretudo, um espaço de socialização que surge da relação entre o leitor e o texto. Isso permite concluir que leitura de Alice e Ulisses pode despertar a curio-sidade e se tornar motivo para leitores não retardarem seus encontros com os clássicos. E, quando esses encontros se fizerem, gostaríamos de já ter contribuí-do para que cada leitor pudesse responder: Por que ler os Clássicos?
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4.3.2.Tropical sol da liberdade: exílio político e ditadura militar Se a boa leitura garante a possibilidade de ascensão social e a tomada de uma parce-la de poder, desenvolvendo a capacidade de ler nas entrelinhas e pensar pela pró-pria cabeça, pode ser muito perigoso para os privilegiados assegurar a imersão da população num ambiente de livros. Ana Maria Machado, 2001. O romance Tropical sol da liberdade (1988), por meio de um encurtamento estético, quebra a tranqüilidade do leitor. O narrador do romance contemporâneo impossibilita qualquer posicionamento contemplativo, ―porque a permanente ame-aça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imi-tação estética dessa situação‖ (ADORNO, 2003, p. 61). Assim, está bem qualificado para essa chamada, já que, no coração do problema abordado pela narrativa, está a temática do exílio político durante a di-tadura militar, uma época marcada pelo medo e pela violência física sobre uma boa parcela da juventude brasileira. A este tema se juntam, a reificação das rela-ções de poder e a expatriação dos indivíduos, o que promove a alienação dos cidadãos e colabora para a existência de interpretações escassas sobre o pro-blema. Nas entrelinhas de Tropical sol da liberdade (1988), também está presente, como pano de fundo, a memória individual das duas personagens que aparece como memória coletiva da nação brasileira. Essa memória coletiva se apresenta com as lembranças dos fatos vividos pelas protagonistas, sua família e amigos e, conseqüentemente, por boa parte da população, durante a vigência do regime militar. Podemos dizer que o romance Tropical sol da liberdade, ao trabalhar com a memória de personagens femininas, está fazendo falar quem não falava. É o segundo romance da escritora Ana Maria Machado destinado ao público adulto. Publicado em 1988, traz como tema a vivência, pela juventude brasileira, dos a-nos de chumbo da ditadura militar.
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A protagonista é Helena Maria - chamada no romance, por familiares e a-migos, de Lena -, uma jornalista recém chegada do exílio, que tenta refazer a sua vida e recuperar o que perdeu durante o tempo em que ficou fora do país. Lena está em crise: não está bem de saúde e sofre de uma doença que a faz perder o equilíbrio. Devido à doença, ocorre um acidente dentro de sua casa, no qual ela quebra o dedo do pé. Para curá-lo, resolve voltar para a casa de sua mãe, que mora no litoral. Os acontecimentos do romance começam a se desenrolar quando Lena chega à casa de sua mãe: A protagonista de Tropical sol da liberdade, acometida por uma doença que a desestabiliza física e emocionalmente (interferindo em suas habilidades, comprometendo, até mesmo, o fluxo de sua linguagem), procura a casa materna para tentar renascer e recriar possibilidades de fecundar dois embriões: o de seu próprio filho e o de sua peça teatral, importantes à completude de sua vida (DI GREGÓRIO, 2004, p.169). Na casa da mãe, vão revisitar os episódios dos anos de repressão militar pelos quais passou o Brasil. As lembranças de Lena e Amália são reavivadas por fotos, objetos, cartas e recortes de jornais que guardam recordações e informa-ções daquela época. A partir dessa pequena sinopse, podemos dizer que os aspectos temporal e espacial, nesta análise, se entrecruzam a todo o momento, pois a narrativa, co-mo se fosse um pêndulo, organiza-se indo do presente narrativo ao passado e do passado ao presente. A construção da personagem dá-se à medida que os conflitos internos vão progredindo. Daí a personagem ser vista na sua complexidade e apresentar ten-dências diversas que surpreendem e convencem o leitor E nesse vai-e-vem do tempo, os espaços em que acontecem os fatos tam-bém se alternam - da casa da mãe, no presente da narrativa, aos locais dos acon-tecimentos passados - e tornam-se significativos para que a protagonista do ro-mance se recupere de seus problemas físicos e emocionais.
Há de se destacar que a temporalidade da narrativa centra-se a partir de dois ângulos: presente e passado. O presente da protagonista doente na casa da mãe e o passado pessoal, familiar e coletivo/histórico, vivo, em suas lembranças.
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Nesse sentido, fala-se de um tempo pessoal e de um tempo coletivo que desembocam no que vamos chamar de passado histórico. Passado histórico con-siste no velho. Em outras palavras, trata-se de uma estrutura sociocultural que já foi superada. Voltar a esse passado, é atualizá-lo a partir das avaliações que o presente permite. Lena não pode se movimentar fisicamente, porque está com o dedo do pé quebrado e, para compensar sua impossibilidade de ir e vir, ela o faz pela memória, percorrendo fatos passados, sem seguir uma linha rigidamente cronológica, relembrando acontecimentos vividos por ela, familiares e amigos, o que contribui de forma relevante para a caracterização da protagonista. E é a partir dessa movimentação que o leitor garante seu espaço, passa a conhecê-la e passa a fazer parte desse jogo: ela é jornalista, chegou recentemen-te do exílio político, passa por uma crise no casamento e está doente. Através de terapias e remédios, tenta se recuperar, porém perde a noção da escrita, em vir-tude da medicação que toma para ficar em pé,assim, Lena tem de ―passar a lim-po‖, tanto a sua história pessoal, como as histórias daqueles que se envolveram nos acontecimentos da ditadura militar brasileira. Pelas pesquisas realizadas, nas conversas com os amigos, com a mãe, lendo reportagens de jornais, cartas, bilhe-tes e a retomada de suas memórias sobre os acontecimentos passados, a Histó-ria é reconstituída e passa a ser pano de fundo do romance. O leitor se conscien-tiza disso e faz uma reflexão acerca dos acontecimentos daquela época. A construção da protagonista é realizada, ainda, através dos episódios vi-venciados por Lena, como a morte do estudante no Restaurante Calabouço, as reuniões, manifestações estudantis e o enfrentamento dos militares, a participa-ção ativa de seu irmão – Marcelo – que era líder estudantil, o seqüestro do em-baixador americano, as fugas, o exílio político e todo o desenraizamento causado pela sua saída, voluntária ou não, do país, são apresentados à medida que ela tenta escrever o seu próprio texto dentro do romance. Após a convivência com sua mãe e com as lembranças do passado, do mais recente ao mais distante, visitas e conversas telefônicas com o analista, an-tes de sua chegada à casa da mãe, até mesmo as lembranças de sua infância, particularmente, as de seu avô, Lena se sente motivada a voltar para casa e re-tomar sua vida.
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Como se pode perceber, defrontamo-nos com um texto ficcional que busca, por meio da memória das personagens femininas, pontos de apoio nos aconteci-mentos históricos que se transformam em pano de fundo para seu discurso ficcio-nal, proporcionando, assim, um diálogo entre literatura e história. Ao fazer isso, o narrador constrói um texto no qual o drama vivido pela pro-tagonista – lembrar o que tanto lutou para esquecer - permite ao leitor acompa-nhar parte dos acontecimentos históricos de uma época de medo e de violência física e simbólica sobre boa parcela da juventude brasileira. Além disso, é possível acompanhar, através da situação doentia de Lena, a fragmentação e o desenraizamento dos episódios daquele período, pois tais epi-sódios causaram o mesmo efeito naqueles que perderam a liberdade, foram vio-lentados, obrigados a abandonar sonhos e tiveram suas vidas alteradas pelo sis-tema político vigente na época. O nosso objeto de estudo, um romance que mostra a conturbada vida da personagem Lena, o seu processo de construção e de recuperação, envolve uma reflexão sobre o passado vivido por ela. No desenrolar do romance, o narrador mostra a tentativa de cura da personagem. Para isso, a estratégia usada foi cons-truir um texto em que a volta no tempo seria uma forma de ―acertar as contas‖ com o passado da coletividade, tentando entender melhor a época da ditadura militar, bem como os acontecimentos individuais de Lena - compreender sua vida pessoal, familiar, as desavenças com a mãe e as lembranças de sua infância.
Para que isso ocorra, o texto coloca, estrategicamente, nas mãos da pró-pria personagem, a difícil tarefa de escrever sua história. Para tanto, Machado lançou mão da metalinguagem10: escrever uma história dentro do romance. En-tão, o trabalho dessa personagem feminina é pesquisar, entrevistar, recolher in-formações para escrever a sua história ao participar dos acontecimentos, direta ou indiretamente, enfim, construir os fatos narrados.
O narrador, ao trabalhar com a memória das personagens femininas, tran-sita por tempos e locais diferentes, apresentando-se como mediador dos tempos
10 “Daí a utilização cada vez maior da metalinguagem, com histórias que falam de si mesmas e do seu fazer-se. Esse novo aspecto [...] visa levar os leitores a descobrirem que a invenção literária é um processo de construção verbal. Inteiramente dependente da decisão do escritor” (COELHO, 2005, p. 153).
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apresentados na narrativa. Os dois primeiros parágrafos do romance já estabele-cem o transitar pelo tempo e pelo espaço. No primeiro parágrafo, a narrativa apresenta aspectos da vida, da casa no passado, permitindo ao leitor imaginar como era a casa e qual fora o relaciona-mento da protagonista com esse espaço no passado: A casa era sólida e ensolarada, com suas janelas abertas ao ven-to e suas varandas cheias de redes. Acolhedora como uma gali-nha [...] Desde sempre. E até a incomodava a coisa hospitaleira demais, incapaz de respeitar a intimidade dos moradores. Quando era criança tinha sido momento de farra e alegria (MACHADO, 1988, p. 11). O segundo parágrafo localiza o presente da protagonista no mundo narra-do, permite compreender que esse mesmo lugar - a casa de praia, onde passou sua infância e juventude – ainda é extremamente importante e isso justifica seu retorno, pois lhe permite voltar às suas raízes a fim de se recuperar das doenças que a atormentam no presente. Portanto, além de localizar os fatos no tempo, o narrador vai, aos poucos, mostrando-se conhecedor da personagem: Esquisito, agora, voltar à casa em busca de seu lugar tantos a-nos depois. Ou em busca de sossego, sabe-se lá. Lugar sabia que tinha sempre, enquanto a mãe lá estivesse. Dava-se um jeito. Mas sossego era coisa que para ela não fazia parte do mobiliário da casa (MACHADO, 1988, p. 11). Nos estudos teóricos sobre os elementos da narrativa, percebemos que o narrador merece grande destaque, pois é por meio dele que o autor faz chegar aos leitores a construção da personagem. Então, a história só é conhecida por sua voz, cabendo-lhe, portanto, o trabalho de mediá-la e organizá-la. Pode-se dizer que os fatos contados por meio de uma narrativa constituem a visão do narrador sobre aquilo que é contado. Nesse sentido, o leitor estabelece com o narrador uma espécie de pacto: o de acreditar no relato e na maneira como os eventos são relatados.
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No romance em estudo, o narrador está em terceira pessoa, é heterodiegé-tico e onisciente, conhece muito bem a sua protagonista, bem como as outras personagens. Há, em Tropical Sol da liberdade (1988), um narrador que, inteligentemen-te, procura, no tempo da narrativa – passado e presente – estabelecer uma uni-dade temporal, ao fazer com que a angústia, fruto de um determinado momento histórico – passado, misture-se com a angústia da personagem feminina para rea-lizar sua construção. Ao narrar as ações das personagens femininas, ele deixa transparecer os sentimentos, as dores, as confusões mentais que elas estão sen-tindo. Portanto, ele se apresenta conhecedor dos fatos narrados. Por exemplo, ao descrever uma cena de Lena e sua mãe, o narrador diz: E enquanto a mãe se levantava da cadeira espreguiçadeira às su-as costas, a mulher sentiu uma leve irritação tomar conta dela. Há quanto tempo estaria sendo vigiada? Claro, percebia que a pre-sença materna tão próxima poderia ter outro sentido. Há quanto tempo a mãe estaria a seu lado, velando-a em silêncio? Por que Lena sempre tinha que reagir meio áspera, coisa de seu território, sentindo-se invadida? Podia ser tão mais simples... (MACHADO, 1988, p. 19). Outro fator importante na construção da protagonista é a maneira como o narrador traz ao conhecimento do leitor, na forma de discurso indireto livre, encur-tando a distância entre ele e a personagem, o relacionamento conflituoso entre mãe e filha. Ao fazê-lo, insere em seu discurso questionamentos relacionados às inquietações de Lena, para compartilhar, diretamente com o leitor, o que conhece da personagem e de seus sentimentos. Quando pergunta, ele deixa transparecer as interrogações feitas pela pro-tagonista, demonstrando conhecer as avaliações feitas por ela em relação à ma-neira de a mãe estar ao seu lado e nada dizer. Pode-se salientar que o narrador está entrelaçado na ação, pois a distinção entre ambos desaparece. Assim, ele está estreitando sua relação com o leitor: a aproximação estética, elucidada por Adorno (2003).
Assim, o modo de narrar propicia um efeito de proximidade do fato junto ao leitor, como se ele participasse do mundo narrado. Dessa maneira, esta forma de interação literária é constituída pela ―experiência estética‖, pois advém de um pro-
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cesso comunicativo do leitor com a obra literária. Conforme Jauss (1979), o leitor vive na obra literária uma experiência que não é sua, ele reconstitui a obra de arte por meio de sua participação estética e emotiva. No fragmento abaixo, percebemos ainda mais a proximidade do narrador, ao relatar os sentimentos de Lena. Essa proximidade é tão forte que parece ser ela quem fala. A fusão do narrador à personagem é facilmente identificada pelo leitor, sobretudo, pela presença do advérbio ―aqui‖, situando a voz que fala no próprio espaço referido, mesmo sendo parte da fala do narrador, o que contribui de modo relevante na construção da protagonista: Hoje tinha couve, quiabo, inhame. Ontem tinha taioba, aipim e ba-nana-da-terra no almoço, fruta-pão e língua-de-vaca no jantar. Na certa, amanhã lá vinha abóbora ou cará. [...] Aqui tudo era do quintal ou do vizinho, resultado de uma trabalheira [...] e, princi-palmente, não descuidar um instante para a lagarta não comer (MACHADO, 1988, p. 13). O ponto de vista interno do narrador de Tropical sol da liberdade contribui para que a problemática social presente no romance seja apresentada por meio do encurtamento estético discutido por Adorno (2003). O narrador, portanto, não se mantém distante da matéria narrada e assimila as marcas de oralidade das personagens femininas por meio do discurso indireto livre. Assim, o discurso do narrador recria o aspecto oral da fala das personagens e promove um constante jogo de se colocar fora e dentro delas: O jeito era se censurar. E aprender a inventar novas formas de burlar essa censura, como já tivera que fazer anos a fio com proi-bições policiais da ditadura no jornal. Seria possível conseguir is-so? Ou será que para não ferir quem ela amava teria que se ferir e cassar sua própria palavra? (MACHADO, 1988, p. 133). Ainda que haja essa fusão entre discurso do narrador e das personagens, as diferenças entre eles são claras. O narrador não é um mediador que se põe à parte da violência presente no romance, mas, nem por isso, é simpático a ela. Isso pode ser evidenciado no seguinte trecho:
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[...] Lena mais uma vez confirmava que a censura se mantinha de alguma forma, apesar do fim da ditadura. Mesmo em jornal. E em outros setores também. Ora era um filme que o governo proibia de ser exibido [...] Ora era uma peça [...]. Apesar da plena legalização dos partidos de esquerda, apesar de um espaço maior para de-núncias e opinião, não havia dúvidas de que ainda havia um longo trecho de caminho a percorrer (MACHADO, 1988, p. 155). Essa forma de escrita evidencia um narrador que observa o universo da época do regime militar, examinando-o atentamente, mas sem tentar transformá-lo. O que não poderia, devido a seu estatuto heterodiegético: ele não possui um ―corpo‖ na narrativa, é uma voz ―desencarnada‖, incapaz, portanto, de agir em outro contexto que não o do enunciar. Mesmo situada em um espaço limitado, pois as ações do mundo narrado acontecem na casa da mãe de Lena, a matéria tratada por este narrador recebe potência total. Essa atitude resulta na denúncia de algo que está fora do romance, pois, por meio da intimidade com o horror e a violência implantados pelos milita-res no espaço social, o narrador não deixa brechas para que o leitor se perca em divagações contemplativas. Nesse espaço de censura e violência contra o cidadão submetido a um re-gime governamental de opressão, o narrador de Tropical sol da liberdade não pa-rece ser conivente com o universo dos militares e, tampouco, com o universo dos exilados e torturados. Assim, não há a figura de um herói ou de uma vítima e de um agressor, isto é, tanto os exilados e perseguidos políticos quanto os militares são tratados com a mesma natureza cruel, sem que haja a figura de um salvador para manter a segurança da sociedade. Assim, o modo de narrar propicia um efeito de proximidade do fato junto ao leitor, como se ele participasse do mundo narrado. Dessa maneira, esta forma de interação literária é constituída pela ―experiência estética‖, pois advém de um pro-cesso comunicativo do leitor com a obra literária. Conforme Jauss (1979), o leitor vive na obra literária uma experiência que não é sua, ele reconstitui a obra de arte por meio de sua participação estética e emotiva.
Assistimos na narrativa de Ana Maria Machado, a um âmbito particular - composto pelo cotidiano da protagonista, Lena, exilada pelos militares - associado a outro plano mais geral,
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ao desembocar no problema político de toda uma nação que, por sua vez, trouxe conseqüências devastadoras. ―Eles foram impiedosamente esmagados, assassinados, castra-dos, torturados com todos os horrores já inventados para humilhar seres humanos‖ (BARROS, 1994, p. 50)11. Vale evidenciar que a narrativa de Tropical sol da liberdade (1988) apre-senta um período da realidade brasileira desconhecida por muitos cidadãos, pois a ―História Oficial‖, na época do regime militar, tratou de abafar os episódios mais violentos e dolorosos. Somente nos últimos anos, começaram a circular livros, documentários e filmes, retratando essa fase da nossa História, assim ressaltado por Barros (1994): A história da resistência armada aos governos pós-64 é extrema-mente complexa e difícil de ser inteiramente recuperada, pois mui-tos guerrilheiros importantes foram assassinados e significativas revelações morreram com eles. Por outro lado, a maioria dos so-breviventes produziu valiosos depoimentos, acrescidos por minu-ciosas análises [...] (BARROS, 1994, p. 46). Dessa maneira, o romance chama a atenção para a existência de camadas clandestinas dentro de uma mesma sociedade que, embora camufladas, colabo-raram ainda mais para a concretização do extremo afastamento entre a realidade da época e a da atual, como confirma Barros (1994): A rápida vitória do movimento militar apanhou desprevenidas as organizações de esquerdas então existentes. A surpresa da derro-ta, [...], foi uma experiência dolorosa e desagregadora. [...], basi-camente civis, travaram um intenso debate ideológico interno e tentaram se reorganizar na clandestinidade (BARROS, 1994, p. 47).
11 Confirmada pelo depoimento de Clodoaldo Rodrigues Nunes, professor universitário do UNISAL (Centro Universitário Salesiano) em Americana – SP, que enfrentou as barbáries do regime ditatorial e sobreviveu a elas, através de entrevista concedida ao Jornal O Liberal (2004): O Liberal – O senhor passou por todas as torturas? Nunes – Passei por todas, infelizmente [...] O Liberal – O que era “cadeira do dragão”? Nunes – Era uma cadeira de braços e o assento era de folha de zinco. Você era colocado amarrado ali, nu. Seus braços eram amarrados e os pés também. Eles colocavam um dos pólos da máquina de dar choque no assento e o outro eles corriam pelo seu corpo. O mais terrível era quando eles colocavam no ouvido. [...] Em uma das vezes me colocaram um capuz e me submeteram a uma pancadaria [...]. (EDUARDO, 2004, p.03,grifo do autor).
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Verificamos que a construção da personagem feminina está centrada nos aspectos emocionais, nos problemas existenciais, nos problemas histórico-sociais, nas angústias, nos medos, na solidão. Entretanto, os ideais de vida pos-sibilitam as personagens movimentarem-se no mundo ficcional e lutarem para a conquista de um mundo melhor, liberdade e de seus objetivos. Assim, as perso-nagens revelam a posição de cada uma em relação ao contexto social em que estão inseridas e o modo como absorvem os acontecimentos no mundo narrado. No entanto, não há transferência direta do conteúdo do texto para o leitor. Há um jogo de perspectivas que se movimenta continuamente e, de acordo com Iser (1996), inclui o leitor nesse jogo. Outro ponto importante e predominante nessa narrativa é o destaque em diversos pontos de vista que envolvem as personagens femininas da história, pois a partir de um foco, o leitor depara-se com a adversidade de pontos de vista. As personagens femininas aqui estudadas revelam em suas atitudes a fragilidade, a sensibilidade, a dor interior e a inquietude. Tropical sol da liberdade (1988) é, naturalmente, uma obra cujo universo narrativo não fica fora da sociedade brasileira e de toda a sua problemática, difi-cultando qualquer distanciamento estético e exigindo uma leitura engajada. Os assuntos levantados no livro fazem parte da realidade histórica brasileira e, mal ou bem, os leitores do romance participam dela. 4.3.3. A audácia dessa mulher: histórias dentro da história Leitura de literatura não é um dever. É um direito. Todos devem ter garantido seu a-cesso a ela, por meio da oportunidade de conhecer os livros, de tê-los em mãos, de ter tempo para eles e orientação nesse contato. Ana Maria Machado, 2001.
A audácia dessa mulher (1999), sexto título adulto publicado por Ana Maria Machado, conta a história da produção de uma novela ambientada no Rio de Ja-neiro do século XIX que se torna o pretexto para esta leitura de Dom Casmurro.
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Durante as pesquisas necessárias à novela, a protagonista encontra um diário de uma menina da época. O mistério sobre a identidade da menina e a dúvida sobre o seu destino permeiam toda a trama, em que a personagem principal se vê dian-te de temas como o amor, o poder patriarcal e a ética. Ana Maria Machado rece-beu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras por esta obra. No que se refere à estrutura, esta narrativa constrói uma trança de três his-tórias, no presente – nos conta a história da protagonista Bia que é chamada para ser consultora de um programa televisivo ambientado no século XIX. No passado, apresenta-nos Ousadia, programa televisivo que se passa no Rio de Janeiro do século XIX, e ainda no passado, descortina-se a história de Lina (apelido de Capi-tolina : Capitu) que em um caderno de receitas, registra não só modos de fazer comida, mas passagens de sua vida. E por meio desse diário-caderno de receitas, temos contato com a versão de Capitu de vários fatos obscurecidos pelo narrador Bentinho (Casmurro), do livro Dom Casmurro de Machado de Assis. No processo de construção das personagens femininas, em A audácia dessa mulher (1999), deparamo-nos com personagens vivendo em tempos dife-renciados: temos personagens modernas (a protagonista Beatriz, que é jornalista) dialogando com personagens do passado (Lina - Capitu): Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as possibilida-des humanas que a sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e contemplar visto o desenvolvimento individual se caracterizar pela crescente redução de possibilidades (CANDIDO, 1968, p. 46, grifo do autor).
E o leitor é apresentado a personagens como a filha da faxineira, encanta-da com José de Alencar, Dona Lourdes que surpreende a protagonista, o dono do restaurante que coleciona receitas, o bancário que não quer que a noiva trabalhe, o aprendiz de roteirista, o analista de sistemas que trabalha com meninos de fave-la, o diretor de televisão que faz das pessoas seus ratinhos de laboratório, todos se alternam, neste mundo ficcional , com um universo de carruagens e modistas na Rua do Ouvidor de antigamente, com saraus e noites na ópera, com escravas
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na cozinha e maridos ciumentos. Estes personagens nos levam, de uma época para outra, até o final da narrativa. Ao representar perspectivas distintas das realidades enfocadas pelas per-sonagens femininas no mundo narrado, essa obra oferece ao leitor múltiplas pos-sibilidades de interpretação: ―A personagem é complexa e múltipla porque o ro-mancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização [...]‖ (CAN-DIDO, 1968, p.60). E por ser um texto elaborado, tanto na linguagem quanto em relação aos temas abordados. A construção da personagem feminina se dá quando o leitor faz uma ―via-gem‖ com a protagonista Beatriz, uma jornalista que escreve sobre turismo e ado-ra perambular pelo mundo, com ela, vislumbram-se inúmeros lugares com deta-lhes e viagens interiores: - Eu já era seu leitor no jornal há algum tempo, Bia, como muitos outros aqui, mas só recentemente comecei a ver com outros olhos o que você escreve. Foi a partir de uma crônica sua, há dois me-ses, sobre viajar no tempo. Em linhas gerais, você defendia a i-déia de que todo deslocamento no espaço para uma cultura dife-rente é também uma viagem para outro momento, outra época, outros tempos possíveis... Achei muito interessante (MACHADO, 1999, p. 15). Outro fator que contribui para a caracterização da protagonista que é uma mulher moderna, que viaja pelo mundo, independente, mora sozinha e busca rea-lizar seus objetivos é o contraponto com Virgílio, que conhece, ao participar de uma produção artística da TV, em que há uma inversão de papéis: ele é um exí-mio cozinheiro – o homem que fica em casa e assume a cozinha. Portanto, a nar-rativa apresenta, aparentemente duas perspectivas opostas, abrem lacunas e contribuem para a participação do leitor no mundo ficcional, pois ele se depara com visões diferentes de comportamento. Assim, ―a modificação das posições, provocada pela mudança de perspectivas, não se perde; ao contrário, a multiplici-dade das interpretações se potencializa‖ (Iser, 1996, p. 185). Cada perspectiva revela um aspecto que proporciona ao leitor construir seu próprio ponto de vista.
Característica relevante para construção da protagonista é o fato de Beatriz também ser apaixonada pela literatura que ela considera uma outra maneira de
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ver a vida e interagir com o outro e consigo mesma, possibilitando, ainda, conhe-cer novos cenários: [...] a grande obra de arte literária nos restitua uma liberdade – i-menso reino do possível – que a vida real não nos concede. A fic-ção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem po-de viver e contemplar através de personagens variadas, a plenitu-de de sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; o lugar em que transformando-se imaginariamente no outro, vi-vendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, reali-za e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e li-vre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e objetivar a sua própria situação (CANDIDO, 1968, p. 48). Segundo Iser (1996), o texto narrativo apresenta algumas perspectivas im-portantes, como a do narrador, dos personagens, do enredo e do leitor ficcional. Constatamos que nesse texto, esses pontos perspectivísticos se entrelaçam e oferecem, através dos pontos de vista presentes nele, a elaboração de diferentes visões. Esta narrativa apresenta uma série de perspectivas,como o entrecruza-mento de textos e personagens do passado, Estas perspectivas se entrelaçam e cabe ao leitor a atualização da história a partir da sua imaginação. Bia fez questão de conhecer a adolescente, que recordava vaga-mente ter visto criança, e que de repente escrevia duas páginas para dizer como tinha adorado um romance de José de Alencar [...]. Bia conseguiu-lhe mais uns dois ou três títulos.Mas intrigada com o fascínio que a ficção do século XIX podia exercer sobre a fi-lha de um chacareiro de Vargem Grande, quis depois conversar com a menina (MACHADO, 1999, p. 42, grifo nosso). Há de se destacar que uma das personagens desse entrecruzamento de textos é a célebre Capitu, de Machado de Assis. Sua história é recontada através de um Caderno de Receitas que Virgílio empresta a Bia e o leitor passa a conhe-cê-la por um outro viés – o desabafo dela mesma. Tem-se uma história dentro da história que começa a ser escrita pela menina Capitolina e termina pela mulher Capitu:
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Só depois do almoço [...] tornou a pegar a papelada da Capitu, as anotações que fizera, o livro do velho Machado. Mais uma vez, era dominada pela incredulidade. Racionalmente, porém, consta-va que era verdade. Sempre imaginara aqueles personagens a-penas como seres inventados. Agora descobria que um deles, pe-lo menos, tivera existência real (MACHADO, 1999, p. 211). Assim sendo, a narrativa apresenta-nos a diferentes personagens femini-nas em diferentes tempos, mas que dialogam entre si, aproximando os séculos e desvendando perfis, cada qual inserida em sua época. De um modo geral, as obras literárias têm como uma de suas peculiarida-des a capacidade de romper a barreira do tempo e do espaço, preservando a atu-alidade, portanto, em conformidade com Jauss (1994), podemos salientar que a obra literária, por apresentar esse caráter de acontecimento, propicia atualização, pois as perspectivas por ela suscitadas questionam seu momento presente: A história da literatura é um processo de recepção e produção es-tética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produ-tor, e do crítico, que sobre eles reflete (JAUSS, 1994, p. 26). A protagonista Beatriz pode ser caracterizada como – ousada, destemida, sintonizada com os novos tempos: ―E quem tomara todas as iniciativas tinha sido ela – tanto de começar a conversa quanto de encerrá-la (MACHADO, p.33, 1999)‖. Já a personagem Capitu/Lina levava uma vida voltada para o lar, o marido e o filho, submissa e injustiçada, mas que conseguiu renascer apesar de todos os infortúnios pelos quais passou: ―Estas receitas de sapatinhos de bebê, de tricô, foram-me dadas pela minha amiga Sancha (MACHADO, p.128, 1999)‖. A construção da personagem principal ocorre ainda a partir das ações e das vozes das demais personagens da narrativa que são igualmente ousadas, por exemplo, Ana Lúcia, secretária e amiga de Beatriz e a mãe de Virgílio. Ana Lúcia tenta transpor o machismo e o ciúme possessivo do noivo, que a trata como se fosse seu dono, e consegue dar um novo rumo a sua vida, por meio das muitas conversas que tem com Bia. Dona Lourdes rompe com as expectativas de Beatriz e, conseqüentemente, com as do leitor, pois não é uma idosa caseira e, sim, uma mulher que comanda uma empresa e tem muita energia:
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Quando dona Lourdes abriu a porta, era exatamente como a moça imaginara – uma figura bem maternal, baixinha, meio gordota, sor-ridente e falante. Mas, em seguida, foi tudo diferente. [...] A moça não queria ser indiscreta, mas não pôde deixar de ouvir: a mãe de Virgílio estava fechando a negociação final de um contrato! E ne-gociava bem... (MACHDO, 1999, p. 179). Desta maneira, podemos verificar que no interior do sistema literário, são encontrados os elementos necessários para medir a recepção de um texto. A o-bra predetermina a recepção, oferecendo orientação ao seu destinatário. Para Jauss (1994, p. 175), a obra evoca o horizonte de expectativas e as regras do jogo ―familiares ao leitor, que são imediatamente alteradas, corrigidas, transfor-madas ou também apenas reproduzidas‖. Assim, Cada leitor pode reagir individu-almente a uma obra, mas a recepção é um fato social, uma medida comum entre essas reações particulares. As obras retomam o horizonte para depois contrariá-lo, como pudemos verificar pela reação de Bia ao se deparar com Dona Lourdes. Desta forma, as personagens femininas desta narrativa estão inseridas no seu tempo, são desvendadas e ligadas por seus desejos de liberdade. Há de se destacar esse desejo de liberdade quando a personagem do passado Li-na/Capitolina nos confidencia sua história em anotações descobertas em um pe-culiar livro de receitas confiado à Beatriz, protagonista da narrativa. Convém sali-entar que a audácia de Lina/Capitu foi viver o que sentia e acreditava, a despeito das convenções e expectativas, enquanto que a audácia de Bia foi conscientizar-se de transcender o estático e evitar voltar atrás: Mas agora, no Recanto, de repente, contemplando o canteiro de rosas, ela via outro sentido na aparente mutilação daqueles tocos podados. Davam-se à sua decifração como se fossem uma bússo-la para humanos, mostrando que de vez em quando é preciso cor-tar sem dó para que a seiva não se disperse e possa se concen-trar toda no rumo do que é essencial. ousar uma perda efêmera para garantir a fartura da safra ainda guardada mais adiante. Ter a audácia de apostar no recôndito e na sua força, contra todas as evidências da superfície visível, com seu viço momentâneo e se-dutor (MACHADO, 1999, p.204-205).
No que se refere ao narrador desta obra, temos de destacar que ele tam-bém rompe, de certa maneira, com as expectativas do leitor, pois assume atitudes
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arbitrárias, ora narra os acontecimentos, ora tece comentários sobre o ―fazer lite-rário‖, sobre a personagem, mesmo sendo um narrador em terceira pessoa, ,já que: ―A natureza renovadora e o índice de ruptura do texto narrativo associam-se a este tratamento do relato e vinculam-se diretamente à atuação do narrador‖ (ZILBERMAN e MAGALHÂES, 1982, p. 82). Outra questão interessante refere-se aos comentários emitidos tanto pelo narrador como pelo autor: ―– Mas será que o autor deve estar na sua obra como Deus no universo, presente em toda parte mas visível em parte alguma – dizia ele‖ (MACHADO, 1999, p. 98). Os comentários podem ser considerados como hipóteses para desvelar os caminhos percorridos pelo fazer literário no ato de es-crever. Para tanto, o narrador recorre à metalinguagem: É muito comum que os romancistas contem como seus persona-gens os surpreendem, de vez em quando, agindo por conta pró-pria. E é verdade, a gente não manda neles e tem que permitir que sigam por onde queiram. De certo modo essa experiência de criar vidas alheias se parece muito com o trabalho do sonho, e es-te é um bom momento para lembrar isso, enquanto Bia e Virgílio adormecem sem sonhar (MACHADO, 1999, p. 97). Então, temos um narrador que expõe o ato de narrar e entra na história pa-ra explicar a construção do mundo ficcional. É como se uma voz não identificada se pusesse, subitamente, a tecer comentários com o leitor sobre as personagens. Aparentemente, esse tipo de narrador favorece um tratamento mais objetivo das personagens e dos fatos, pois esses elementos se apresentam diretamente ao leitor, que não distingue uma subjetividade intermediária. Contudo, é preciso des-tacar que sempre ocorre uma seleção dos fatos e dados retratados e comentados de acordo com uma estratégia narrativa e uma delas,nesta obra, é a presença constante da metalingüagem: Mas digo isso também porque não quero mentir para quem me lê, não além do inevitável ato de fingimento que é a ficção. É honesto lembrarmos que essas vidas são inventadas, essas situações são criadas, mas nosso encontro nestas páginas, seu e meu, é real (MACHADO, 1999, p.97).
- Eu não sei. Esta história que estou contando é pura imagina-ção.Esses personagens que criei nunca existiram fora da minha mente. E se até agora fingi que sabia o que se passava pelas ca-
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beças deles, e conhecia seus pensamentos mais íntimos, é só porque estou escrevendo (da mesma forma que assumi pare do vocabulário e da ―voz‖ da época) numa convenção universalmente aceita na época em que passa minha história – a que o romancis-ta se situa do lado de Deus (MACHADO, 1999, p. 98, grifo do au-tor). Ressaltamos outra maneira de contribuir para a construção da personagem feminina é que neste texto, a personagem não é posta em cena por ela mesma e, sim, pelo relato de suas aventuras e ações. Mas, através da habilidade do narra-dor, o enredo está permeado de discurso indireto livre, passagens em que se ob-serva o pensamento interior da própria protagonista: ―Por onde começar? As pos-sibilidades eram infinitas‖ (MACHADO, 1999, p. 213). Assim, este recurso garante credibilidade aos fatos narrados e, de certa forma, ao inserir o leitor no mundo interior de Beatriz, contribui positivamente para a construção de sua personalidade, uma vez que a aproxima de quem está lendo a história. Além disso, o narrador pode cometer intrusões, permitindo-se tecer consi-derações sobre o material narrado, o que se dá com freqüência nesta obra, assim como fazia Machado de Assis: Perdoe-nos a amável leitora ou o gentil leitor, mas as convenções que regem a feitura de um romance em nossa época diferem grandemente das viagens no século XIX, que permitiam a um nar-rador externo, no momento da escrita, esta conversa direta com quem iria passar os olhos pela futura página impressa (MACHA-DO, 1999, p. 19). Desta forma, ao fazer comentários sobre o que está sendo narrado, convi-da e instiga o leitor a participar da narrativa. Esse tipo de diálogo com o leitor se repete, constantemente, em todo texto e podemos verificar que a narrativa divide o espaço do narrador com o espaço do leitor fictício: A fim de não perder tempo procurando algum ângulo novo para descrever em detalhes novidadeiros – e absolutamente irrelevan-tes para a história – aquilo que o leitor ou leitora já conhece ao vi-vo, a cores e a toques cheios [...] (MACHADO,1999, p. 37, grifo nosso).
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Conforme observamos, a obra literária possui a capacidade de atender ao gosto, dar prazer, provocar identificação, romper expectativas, dar origem a ques-tionamentos e, essencialmente, culminar em um diálogo entre mulheres de dife-rentes épocas e o leitor, algo primordial para a formação de um leitor crítico e consciente. Desta maneira, salientamos que a estruturação do texto literário construído pela autora dá espaço para o leitor e as suas experiências, bem como oferece oportunidade para que ele construa um sentido. A literatura pode, ao permitir a experimentação do diferente, facilitar o tornar-se consciente. A fim de concluir este capítulo que nos descortinou a sutileza da autora pa-ra compor suas crianças, adolescentes e mulheres, cabe ressaltar os recursos de caracterização dessas personagens femininas tão buriladas, tanto na sua compo-sição quanto no trabalho realizado com a linguagem. Mesmo estando próxima à linguagem oral, percebemos um toque especial nas colocações, como a escolha dos nomes e dos títulos dos livros. O leitor dos textos de Ana Maria Machado assegura seu lugar no mundo ficcional criado pela escritora, pois sua participação ocorre naturalmente em de-corrência da organização estrutural, porque há lacunas que instigam a sua pre-sença na formulação de sentidos da história relatada. Quanto à construção do narrador e da focalização percebemos uma des-construção das normas tradicionais, já que há uma multiplicidade de vozes no interior da narrativa. De modo geral, Machado rompe, ainda , com a norma tradicional ao com-por suas personagens femininas e, assim, ao renovar o horizonte de expectativa literária, afirma seu caráter inovador. Sob esse aspecto, é possível concluir que a leitura do texto literário, conforme Jauss pode mudar ou formar comportamentos, instigando o leitor a uma postura diferenciada em relação à mulher e, conseqüen-temente, transformando as expectativas tradicionais. No capítulo seguinte, tecemos uma avaliação das análises realizadas até aqui. Procuramos destacar as semelhanças encontradas nas personagens femi-ninas infantis, nas adolescentes e nas adultas e as possíveis diferenças.
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CAPÍTULO V: CONSIDERAÇÕES FINAIS Enfim, uma utopia para o terceiro milênio. Uma sociedade delicada, ética e criativa, capaz de brincar. Sem dúvida, mais de-senvolvida. Ana Maria Machado, 1999. Neste capítulo, abordamos as semelhanças e as possíveis diferenças entre as personagens femininas até então analisadas. Como nos propusemos a realizar um percurso sobre os vários leitores para quem Ana Maria escreve, estabelece-mos um paralelo entre esses ―seres femininos fictícios‖ que nos envolveram du-rante todo este trabalho. E tentamos responder aos questionamentos propostos desde o início desta pesquisa, após levantar, reconhecer e estudar a construção de cada uma das personagens, desde aquelas que povoaram a imaginação infan-til dos leitores de Ana, até as que fomentaram questionamentos e instigaram po-sicionamentos dos seus leitores que foram crescendo, uma geração dialogando com a outra. O reconhecimento das personagens infantis de Ana encontra eco nas ado-lescentes e nas mulheres e se tocam a alma dos leitores como indivíduos, pro-porcionará absorver essa evolução e perceber como as práticas de leitura têm poder transformador sobre a realidade. 5.1. As semelhanças e diferenças entre as personagens femininas de Ana Empreendendo uma viagem de amadurecimento, tal como fizeram várias personagens criadas por Ana Maria Machado, a presente dissertação percorreu proveitosos caminhos no universo literário da escritora. Diante de sua vasta pro-dução, as incursões propostas não pretendem esgotar a investigação da constru-ção das personagens femininas através dos títulos selecionados para o corpus desta análise.
É consenso que tratar das mudanças de paradigma nos papéis sociais fe-mininos é uma das marcas estilísticas de Ana Maria Machado. Considerando o
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aspecto relacional envolvido nas questões da construção das personagens femi-ninas e nos papéis sociais que elas desempenham, muitos dos livros da autora também enfocam problemas ligados à personagem masculina. Portanto, elenca-mos alguns pontos que convém destacar em relação às obras analisadas, um deles é a inversão de papéis, pois, em algumas delas, detectamos claramente essa ocorrência. Na análise de Bisa Bia, Bisa Bel (1982), observamos situações em que o leitor pode se espantar diante de posicionamentos não tradicionais da persona-gem Isabel. Para exemplificar, no último capítulo dessa obra, insere-se o perso-nagem Vitor, recém-chegado ao Brasil, que apresenta comportamento diferente dos padrões nacionais para indivíduos masculinos. Em um episódio em sala de aula, o menino se emociona com o relato da professora de História sobre escravi-dão e chora. Diante dessa atitude, Isabel o acha diferente e pensa: ―Ainda bem que Dona Sônia não esperou minha resposta nem reparou no choro do Vitor (que menino mais esquisito... será que ele nunca ouviu falar que homem não chora?)‖ (1982, p. 53). Na conversa que Isabel mantém com uma colega de turma, percebemos novamente a surpresa da protagonista quanto aos hábitos de Vitor e sua irmã gêmea, Maria: - A mãe e o pai trabalham fora, e os gêmeos preparam o almoço deles sozinhos, fazem a cama, tudo isso... - A gêmea, você deve estar querendo dizer... Como é que ela se chama? - Maria, e ele é Vitor. Mas são os dois mesmo que fazem. O Vitor sabe cozinhar, Bel. E Maria sabe consertar tomada. Aliás, ela sa-be consertar um monte de coisas. Outro dia até trocou a corrente da bicicleta do Fernando, se eu não visse não acreditava. Todo mundo está adorando os dois, são uns amigões... (MACHADO, 1985, p. 50).
A fala da colega de Isabel revela a inversão de papéis tidos tradicionalmen-te como ―certos‖. O mesmo ocorre no romance A audácia dessa mulher (1999). Ana Maria Machado também propõe uma ―inversão‖ de papéis entre as persona-gens Bia e Virgílio. A profissão que cada uma dessas personagens exerce contra-ria o que a sociedade definiu como trabalho feminino e masculino. Virgílio é dono de restaurante e cozinheiro, ainda que com ―status‖ diferenciado de uma cozinhei-
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ra, e Beatriz é escritora, trabalha como jornalista de um caderno de viagens, pro-fissão que implica estar sempre viajando. Assim, a protagonista está freqüente-mente longe de casa, o que pode dificultar a manutenção de um casamento e uma família tradicional. A partir do comentário de Muniz, sentem-se as mudanças de comportamento: - Um homem que adora ficar na cozinha e uma mulher que gosta de viajar sozinha... Não é só uma rima. É isso sim, um sinal dos tempos. Papéis trocados. Duas idéias impensáveis no século XIX. Uma contribuição de nosso século para a história da humanidade (MACHADO, 1999, p. 17). Em Bem do seu tamanho (1980), apesar de a temática principal não se centrar nos padrões de comportamento tido como certos, a protagonista, Helena, discute com o próprio pai sobre a divisão das tarefas domésticas. A passagem que trata do assunto ocupa boa parte do primeiro capítulo do livro e ocorre antes mesmo de Helena empreender sua viagem de amadurecimento. A discussão en-tre pai e filha ocorre no momento dos preparativos para a viagem da menina, ao realizar duas ações: passar um vestido e arrumar uma merenda. A mãe quer compartilhar as tarefas domésticas com a filha e, para isso, fala para a menina passar o vestido, enquanto ela prepara o lanche. O pai de Helena reproduz os papéis familiares tradicionais para homens e mulheres em relação às tarefas domésticas, ―coisas de mulher‖. A personagem Helena, entretanto, usa de ironia em seu discurso para ―explicar‖ ao seu Boi de Mamão como funcionam essas posições sociais. Diante das respostas da filha, o pai fica desconsertado e indignado, mas sem argumentos. Devemos ressaltar, ainda, que a autora, por meio de seus textos, mistura atividades lúdicas e ficção, em um jogo entre realidade e literatura, seguindo a perspectiva proposta por Umberto Eco: A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente (ECO, 1994, p. 93).
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Em diversas narrativas da escritora, a iniciativa de neutralizar diferenças entre personagens masculinas e femininas, principalmente no que diz respeito a brincadeiras e jogos, contribui para a formação do imaginário infantil de maneira menos preconceituosa. Isso ocorre no livro Bisa Bia Bisa Bel (1982), como asso-viar, pular muros, subir em árvores: ―— Puxa, Bel, você é a menina mais corajosa que eu já conheci! [...] - E você sobe em árvore feito um menino‖ (MACHADO, 1982, p. 36). Regina Zilberman e Lígia Magalhães (1987), estudiosas da Literatura Infantil, tecem considerações importantes sobre a quebra de tradição, principalmente, da narrativa infantil e juvenil, permanente nas obras de autores contemporâneos, como Ana Maria Machado: ―É desta violação logo, desautomatizando a percepção, que nascem a originalidade e a qualidade literária‖ (p. 68). Nas histórias de Ana não se delineiam personagens femininas como nas narrativas infantis clássicas, o mundo ficcional apresentado em sua obra reside na surpresa com as tomadas de atitude das personagens que a narrativa oferece, como em Bem do seu tamanho (1980), em que percebemos a autonomia da personagem Helena ao expressar suas próprias idéias e tomar decisões, como sair de casa sozinha para saber qual o seu tamanho. Assim, a autora procura expor assuntos incomuns aos livros infantis e juvenis, tais como: o preconceito, o confronto com a autoridade, a voz presente e ativa do ―eu‖ nas personagens femininas aqui analisadas e muitas outras questões, já ditas, inusitadas. Convém destacar o rompimento da imposição do casamento, pois Machado propõe, em suas narrativas, atitudes que as mulheres não podiam tomar, porque a mentalidade era outra: estudar, trabalhar e cuidar de sua própria vida. No entanto, essas atitudes são contrapostas à única alternativa que a tradição oferecia para as mulheres: o casamento.
Muitas personagens femininas pintadas por Ana Maria Machado rompem com essa imposição e vão construir suas próprias vidas de forma independente, como é o caso de Bia, personagem romance A audácia dessa mulher (1999), que viaja pelo mundo e não é casada; como também a mãe de Bel, na obra Bisa Bia Bisa Bel (1982), que se supõe separada do marido, pois cria sua filha sozinha e é
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arquiteta; bem como Alice em Alice e Ulisses (1983), também separada, professora e mãe, que se apaixona por um homem casado. E não podemos nos esquecer de Lena, em Tropical sol da liberdade (1988), que fora exilada e não é casada e, embora doente, procura se recuperar para retomar a vida e a profissão. Em vários títulos, a autora aponta maneiras distintas do que é ser mulher na sociedade atual, marcada pela pluralidade. Como foi visto, retratar persona-gens femininas com personalidade e decididas a ocupar uma posição social de destaque é uma temática recorrente em muitas obras de Ana. No que diz respeito ao estudo específico da construção das personagens femininas para públicos di-ferenciados, o campo de pesquisas é amplo e requer mais incursões. Na leitura do corpus estudado, evidenciamos uma maior representatividade de personagens femininas, sobretudo, no papel de protagonistas (sozinhas ou coletivamente). Nessa marca estilística de Ana, podemos entrever, pelos recursos da linguagem, sua visão de mundo e sua ideologia. Seus textos desafiam os leito-res a questionarem o mundo de desigualdades em que se inserem. As minorias ganham vez e voz, como os negros: Menina bonita do laço de fita; os velhos: Bisa Bia Bisa Bel, as mulheres: Alice, Beatriz, Lena; as crianças: Helena, Isabel e Flá-via; e as adolescentes, como Gabi, Tati e Marina. Portanto, nos textos analisados, é possível perceber um projeto de condi-ção feminina no qual as personagens constroem um lugar social de afirmação de sua identidade. As personagens femininas não se enquadram no perfil de meni-nas marginalizadas, massificadas, violentadas pela sociedade, pois as crianças, adolescentes e mulheres que aparecem nas narrativas de Machado conhecem poesia, vivem e pesquisam o mundo. E, buscando harmonizarem-se, as personagens femininas das narrativas são acometidas de crises de identidade, que se manifestam de diferentes formas. Na busca da superação, a viagem desempenha importante papel, não apenas como rito de passagem, mas como forma de amadurecimento. Dialogar com o passado e o futuro, ou sair do próprio reino, sem destino, assim foram as viagens das protagonistas das obras analisadas que conduziram a um mesmo lugar - den-tro de si mesmas e com o afastamento imposto pela viagem, as personagens descobrem que a maior conquista fora a autoconfiança.
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Partindo do pressuposto de que o ato de escrever envolve responsabilida-de social, sentimos que Ana Maria Machado não se coloca apenas no papel de escritora, mas também de crítica literária, possibilitando a constante reflexão so-bre o próprio fazer literário, o que ajuda a aperfeiçoar seus textos. Como lembra Marisa Lajolo (2001, p. 17), ―uma obra literária é um objeto social muito específico‖, por conseguinte, enquanto objeto social, a narrativa lite-rária veicula uma ideologia através de um discurso que, sempre, é uma instância de poder. A escritora mostra-se consciente de que escrever é uma tarefa que envolve responsabilidade, ―principalmente quando se trata de leitores que são crianças, que não têm informação suficiente ou recursos críticos para discernir e analisar a ideologia oculta no que estão lendo, e para ir fazendo mentalmente as correções necessárias‖ (MACHADO, 1999, p. 32). Nas obras escolhidas como corpus representaram, algumas vezes, implici-tamente, a relação homem-mulher, criança-adulto, a relação dominador–dominado, conflitos de gerações e preconceitos raciais, mostrando, ao leitor, co-mo essas relações estão cotidianamente inseridas na vida e quais os benefícios e malefícios advindos dessas ligações. Observamos, ainda, que a família delineada nessas obras, apresenta-se sofrendo grande reavaliação, a principiar pela ótica de suas protagonistas, as per-sonagens audaciosas, inquietas, andarilhas, escritoras, exiladas e questionado-ras. Ressaltamos outro dado revelador que se refere ao fato de essas persona-gens femininas encontrarem respostas para seus questionamentos nos espaços públicos, longe dos olhares da família. Portanto, família, para elas, não é basica-mente constituída por ―laços sangüíneos‖, mas, sim, por laços afetivos. A família pode vir a ser construída durante o percurso de cada uma das personagens femi-ninas pelo mundo, como em Bem do seu tamanho (1980), em que a personagem Helena sai à procura de sua identidade e passa a conviver com os amigos que encontra em sua viagem como se fossem membros de sua família.
Conforme destacamos durante os estudos realizados nos tópicos anterio-res, as narrativas dialogam entre si, principalmente no que diz respeito à interação texto-leitor, a partir da mobilização do imaginário provocado pelos espaços vazios. Em todas as obras os pontos de indeterminação estão presentes, de modo a des-
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pertar, de imediato, o interesse do leitor, que uma vez seduzido, não se solta mais do mundo ficcional proposto pela escritora. Assim, nos textos analisados ocorre uma afluência de hiatos que devem ser negociados no ato da leitura, então, ―tal negociação estreita o espaço entre texto e leitor, atenua a assimetria entre eles, uma vez que, por meio dessa atividade, o texto é transposto para consciência do leitor‖ (ISER, 1999, p. 28). O caráter metalingüístico, que se observa, em todas as obras, são pontos de aproximação entre elas e este recurso faz com que o campo de relações pers-pectivísticas geradas pelo leitor se amplie de modo significativo. Nas narrativas estudadas, as vivências das personagens femininas cau-sam relevantes efeitos no leitor, por meio do processo de identificação e a desfa-miliarização advém do confronto do horizonte do leitor com aquele suscitado pela obra, então, a partir desse momento, aflora uma realidade inusitada, pois não é nem do leitor, nem da narrativa e, sim, algo híbrido, formado por essas duas reali-dades, que terá influência sobre o leitor quanto mais influenciar sua vida, à medi-da que a leitura realizada se converta em experiência, porque para Iser (2002), a função pragmática da ficção reside em causar atividades de orientação e, portan-to, reações sobre o mundo.
5.2. E as meninas cresceram... As meninas, adolescentes e mulheres de Ana Maria Machado agem e vão em busca de respostas para seus conflitos. Essa procura é a força que as impulsiona a sair do seu universo para o mundo, pois, quando elas desejam alguma coisa, vão ao encontro dela, não esperam por soluções mágicas. Os elementos mágicos da narrativa dessas meninas-mulheres são elas mesmas e a vontade de modificar o mundo a sua volta.
Nas obras analisadas, encontramos personagens femininas andarilhas e exiladas, como Helena, Beatriz e Lena, inquietas e curiosas, tais quais Isabel e Alice, adolescentes impetuosas e indagadoras, como Tati, Gabi e Marina que testam a vida e não se deixam limitar pelas regras impostas pela sociedade. O poder de decisão é uma marca forte nas personagens femininas de Ana Maria
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Machado. E deparamo-nos, ainda, com ―personagens femininas audaciosas‖ que são caracterizadas pela auto-estima e pela busca da auto-afirmação. A protagonista Isabel, em Bisa, Bia, Bisa, Bel (1982) caracteriza, com relevância, o poder de decisão que a escritora confere às suas meninas, assim, a voz interior de Isabel a aconselha a ser ela mesma, sem artifícios, para agradar ao Sérgio, seu ―paquera‖: ―- Não finge nada. Se ele não gosta de você do jeito que você é, só pode ser porque ele é um bobo e não merece que você goste dele. Fica firme‖ (1982, p. 37). Desse modo, podemos ir mais longe e verificar que a narrativa A audácia dessa mulher (1999) foi escrita dezessete anos depois de o livro Bisa Bia Bisa Bel (1982). Beatriz e Isabel são duas personagens femininas ousadas, pois, em Bisa Bia Bisa Bel, a ação gira em torno de personagens femininas e, em A audácia dessa mulher, há uma inversão de papéis: é a mulher que sai para viajar e o homem fica em casa cozinhando, como confirma a obra Mundos e submundos - Estudos sobre Ana Maria Machado: Em A audácia dessa mulher, romance publicado dezessete anos depois de Bisa Bia Bisa Bel, Ana Maria Machado nos apresenta outras mulheres audaciosas e que não se contentam com o papel de subserviência que a tradição patriarcal insiste em lhes reservar. Beatriz, a personagem principal da narrativa de agora, poderia ser a pequena Isabel, decorridos vários os anos (DE PAULA, 2003, p. 93). Assim, é esse tecido de vozes, é esse reelaborar o seu próprio texto, é es-sa apropriação consciente e intencional da personagem Isabel de Bisa Bia Bisa Bel, escrito em 1982, destinado ao público infantil, de que se vale Machado para compor a figura de Beatriz, em A audácia dessa mulher, escrito em 1999, para o leitor adulto. Podemos dizer que Isabel - personagem criança, e Beatriz - personagem mulher, constituem um bom exemplo desse processo de continuação ampliada, se assim é possível dizer, em que a segunda surge como uma espécie de transfi-guração da primeira. Sem nos esquecermos dos nomes, o nome da personagem Beatriz, de A audácia dessa mulher, é também o nome da bisavó de Isabel, trata-da no livro por Bia.
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Já Helena, personagem de Bem do Seu Tamanho (1980), a partir de seu conflito: ser grande ou pequena - fato que lhe causa muitas dúvidas, pois ela passa a ser grande ou pequena dependendo da conveniência dos pais, vive em crise de identidade. A busca para essa resposta é a força que a impulsiona a sair do seu universo para o mundo. Podemos relacioná-la com Lena, personagem de Tropical sol da Liberdade (1988) , até pelo nome, Helena/Lena. Assim como a personagem infantil, ela sai do seu país, não sabemos se voluntária ou involuntariamente, após ter atuado contra a Ditadura Militar, e volta para a casa da mãe para se reencontrar e procurar respostas sobre si mesma em seu passado. Na viagem, Helena descobre que está crescendo, não só de tamanho, mas, sobretudo, no amadurecimento, pois isto é muito comum quando se sai da casa dos pais. E é a partir dessa caminhada para a vida que deixamos para trás o lugar de proteção dentro família, para aprendermos a viver sozinhos. Deixamos toda uma relação emocional, afetiva e financeira para construir o nosso próprio universo. E Lena faz o caminho inverso, ao procurar ―acertar as contas‖ com seu passado e melhorar seu relacionamento com sua mãe. Ao entrar em contato com as personagens femininas de Ana, chegamos a pensar que ―suas‖ meninas, jovens e mulheres tentam buscar o futuro que cada uma escolheu, são agentes de suas próprias ações, não se eximindo de suas responsabilidades. Mesmo fragilizadas, retornam para resolver seus problemas, como a personagem Lena e sua viagem ao passado para acertar o presente e vislumbrar o futuro como escritora de peças teatrais. Como foi possível perceber, por diferentes caminhos, as narrativas enfoca-das tentam mostrar a ruptura com os papéis masculinos e femininos tradicionais. Nas obras analisadas, o receptor se depara com situações nas quais os conflitos vivenciados pelas personagens femininas adquirem tamanha densidade que fa-zem com que o leitor, ao se identificar com elas, também entre em conflito e uma vez desencadeado o conflito, na instância do leitor, este é conduzido à reflexão a respeito das condições que geraram as próprias inquietações, de modo que a lei-tura se revela um processo de auto-reconhecimento.
Desse modo, seus textos assumem o difícil caminho de desconstruir este-reótipos para propor o novo e Machado mesmo trabalhando temas pesados, co-
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mo exílio, ditadura militar e autoritarismo, faz com que seus textos mantenham certa leveza, ao recorrer à intertextualização ou à metalinguagem, recursos muito utilizados na literatura para adultos. Ao afastar da literatura escrita para crianças as superficialidades e as solu-ções fáceis, a obra de Ana Maria Machado assume um compromisso com a for-mação de um leitor crítico frente às posições sociais de homens e mulheres. Des-ta forma, passeando por vários gêneros textuais (poesia, teatro, romance, conto, dentre outros), suas obras não só dialogam com clássicos da literatura brasileira e mundial, mas, principalmente, com o leitor. Como pudemos observar, Ana Maria Machado insere-se no cenário da lite-ratura brasileira contemporânea não somente atrelada aos textos ditos ―infantis‖ e ―juvenis‖, como percebemos neste estudo, pois suas obras para o público adulto são bem elaboradas tanto do ponto de vista temático quanto formal. Cientes das limitações impostas pela natureza deste estudo, ponderamos que há outras pers-pectivas a serem exploradas, sobretudo, quando se trata da literatura escrita para adultos, ainda carente de investigações acadêmicas. Assim, conforme o caminho percorrido nesta dissertação, percebemos o crescimento das personagens femininas desde a infância até se tornarem adultas e cabe ressaltar que a linha na construção das personagens é mantida, possibili-tando sempre a inter-relação do mundo interior com o exterior, usando humor, ludismo, fantasia, realidade e, na qual, o teor crítico é uma constante. As obras da autora, diferentemente do que era produzido em momentos anteriores, realizam uma mudança na imagem da criança, deixando de idealizá-la ou de reproduzir ensinamentos. Seus livros possibilitam exteriorizar questiona-mentos, sentimentos e sonhos da criança e do adolescente ao confrontar-se com o mundo adulto. As personagens femininas buscam sua identidade, bem como compreender as situações aflitivas.
No que diz respeito ao narrador, em todas as narrativas estudadas, este tem um poder ―relativo‖, pois, de acordo com o que verificamos, em várias narrati-vas, o narrador se apresenta na primeira pessoa e, mesmo naquelas em que se apresenta em terceira, quando tem que interferir, a opção é pelo discurso indireto livre a fim de transmitir sentimentos e pensamentos das personagens. Até mesmo nos diálogos, o narrador cede espaço para a troca de idéias e informações entre
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as personagens, provocando um encurtamento da distância estética para promo-ver a aproximação do leitor. Desse modo, a linguagem dos textos advém de uma organização lingüística adequada, vista pelo equilíbrio entre o registro coloquial e o formal. Verificamos, ainda, o equilíbrio e a solução lingüística adequada emprega-da pela autora e a sintonia entre narrador e personagem, provocando a aproxima-ção do leitor. Segundo Candido (1972), o leitor ―se sente participante de uma hu-manidade que é a sua e, desse modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda a que o escritor lhe oferece como visão da realidade‖ (1972, p.80). Portanto, a maneira como os textos são narrados quebra a distância entre quem conta e quem lê. A incorporação da oralidade no nível lexical, o uso de termos coloquiais registrados por meio do discurso direto e indireto ou as ob-servações do narrador confirmam isso. Em todas as narrativas, há pontos de indeterminação para despertar o inte-resse do leitor que, uma vez fisgado, não consegue se desligar da história e pas-sa a ser levado pela magia da ficção. Ocorre a presença de hiatos que devem ser negociados na leitura, por isso ―tal negociação estreita o espaço entre texto e lei-tor, atenua a assimetria entre eles, uma vez que, por meio dessa atividade, o tex-to é transposto para a consciência do leitor‖ (ISER, 1999, p. 28). A metalinguagem também está presente na maioria das obras analisadas, sobretudo, nas juvenis e adultas, momentos em que a escritora deixa o leitor em excelentes companhias. Com ênfase à narrativa A audácia dessa mulher (1999), em que há inserção de duas obras dentro da própria obra, assim como o recurso de histórias encaixadas que se concretizam por meio da leitura de um livro de re-ceitas e da participação na realização de uma novela para a televisão. Isso faz com que o campo de perspectivas geradas pelo leitor se amplie de modo signifi-cativo. Então, ao trilhar os caminhos da ficção, o contato com estas narrativas permitem que o leitor organize seu caos interior, a partir da leitura do caos organi-zado em palavras que é, segundo Candido (1989), a obra de arte literária. As cir-cunstâncias do real são confrontadas com o horizonte trazido pela obra e, dessa maneira, o horizonte de sentido do texto é constituído e o leitor é levado a formu-lar algo em si mesmo.
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Assim sendo, podemos nos remeter a Jauss (1994) quando diz que a litera-tura deve ser entendida na dimensão de sua experiência histórica, a qual, por sua vez, atinge a plenitude de sua função social quando influi sobre o horizonte de expectativas da vida cotidiana do leitor. Diante das considerações expostas, constatamos que as narrativas ficcio-nais de Ana acompanham o processo de formação do leitor, que cresce junto com sua obra se dando conta, paulatinamente, da complexidade dos seres humanos e do mundo que os rodeia. Assim, a produção literária analisada pode ser destaca-da como recurso importante para a formação do leitor e, portanto, as personagens infantis aqui enfocadas se transformaram em adolescentes e essas adolescentes foram capazes de preservar a capacidade de compreender e sintetizar o mundo. Desse modo, podemos afirmar que as narrativas estudadas, além de cons-tituírem fonte de prazer e fruição, satisfazendo nossa necessidade universal de ficção e fantasia, tornam-se um meio de conhecimento do mundo e do ser huma-no, através do qual é possível ler a vida e, conseqüentemente ampliar as nossas próprias vivências. Podemos, então, verificar que os nove textos, aqui enfocados, são humanizadores, já que fazem o leitor acompanhar a vivência das persona-gens femininas que habitam esse universo ficcional. E por estimular a vida, trata-se de uma literatura que contribui para a formação do leitor, pois propicia o alar-gamento do seu horizonte, conduzindo-o a olhares críticos da realidade. Ressaltamos ainda que as obras analisadas se aproximam, sobretudo, em relação aos vazios e devido à afluência de lacunas. A relação dialógica entre texto e leitor é garantida, pois, quanto mais se mobiliza a imaginação em busca do não-dito, mais se proporciona a vivacidade das representações e, portanto, mais se sente o efeito estético sobre o leitor.
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