quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A CIBERCULTURA DE PIERRE LEVY





Ao contrário de outras obras sobre a era "high tech" o livro Cibercultura de Pierre Levy não traz revelações bombásticas, nem faz previsões sombrias à Paul Virilio ou paradisíacas à Bill Gates. Ao contrário de outros analistas, Levy procura abordar as questões colocadas pelas novas tecnologias de forma realista e cuidadosa.

Cibercultura divide-se em três partes. Na primeira, o autor define com precisão alguns dos termos empregados largamente na era digital. Na segunda, partindo do pressuposto da continuidade histórica no processo de evolução dos meios de comunicação, Pierre Levy procura demonstrar que a Internet traz benefícios para a espécie humana. Na última parte do livro o autor dedica-se à desconstrução dos mitos criados pelos críticos da rede que não foram capazes de perceber o potencial humanizador e humanitário da era "high tech".

Aqueles que já estão familiarizados com a era digital, que navegam na rede com desenvoltura o bastante para chegar ilesos até o site onde está hospedado este texto, que já conhecem algo sobre a história da Internet, podem dispensar a leitura da primeira parte de Cibercultura. Afinal, a mesma se destina fundamentalmente aos leitores que não tiveram qualquer contato com a nova tecnologia ou com informações precisas sobre a Internet. Seguindo os princípios de sua teoria de que a rede de computadores é includente, o infofilósofo francês procura fornecer aos desconectados subsídios valiosos para avaliarem o universo "on line". De fato seria muito difícil para qualquer navegante de primeira viagem compreender os temas desenvolvidos ao longo dos dois outros capítulos de Cibercultura se não tivesse acesso às definições feitas no início do livro.

O conceito mais importante desenvolvido na obra é o de que a rede de computadores é um universal sem totalidade, ou seja, que ela permite às pessoas conectadas construir e partilhar a inteligência coletiva sem submeter-se a qualquer tipo de restrição político-ideológica. Partindo deste princípio, Levy encara a Internet como um agente humanizador (porque democratiza a informação) e humanitário (porque permite a valorização das competências individuais e a defesa dos interesses das minorias).
As implicações sócio-políticas da rede de computadores não passaram desapercebidas ao autor francês, que nos dá uma clara dimensão do potencial educacional e desinstitucionalizador da Internet. Conectado, o cidadão tem condições de interferir diretamente no controle das decisões públicas sem mediadores, algo que pode ajudar a descentralizar, democratizar e otimizar os serviços públicos. A recente batalha travada na rede pelos defensores e opositores do senador Antonio Carlos Magalhães, que acabou resultando numa inundação de mensagens nas caixas postais dos senadores e interferindo de alguma maneira na decisão da questão, é uma evidência da vocação democrática da Internet.

Apesar de defender as vantagens da vida "on line", Pierre Levy não comete o erro de afirmar que a conecção substitui ou substituirá a interação social, o contato entre as pessoas. Ao contrário, segundo o autor a Internet possibilita contatos mais freqüentes e produtivos na medida em que aproxima os atores sociais antes mesmo dos acontecimentos coletivos. Nesse sentido, a rede de computadores (assim como o correio e o telefone) não é um agente de desumanização ou de isolamento do ser humano.

Como dissemos no início, Pierre Levy não perde de vista a profunda relação de dependência entre a era "high tech" e a história da evolução das comunicações entre os seres humanos. Da oralidade aos e-mails a humanidade desenvolveu sistemas de comunicação que coexistem e são mutuamente dependentes. Assim como a escrita pressupõe a linguagem oral que descreve e normatiza e não foi capaz de substituí-la, o armazenamento e transmissão de textos "on line" depende da escrita e não irá condená-la ao esquecimento, mesmo que doravante ela esteja mais do que nunca associada à imagem.

E por falar em imagem, não podemos nos esquecer que desde da Idade Média o homem ilustra seus escritos com ícones que possibilitam a melhor intelecção dos textos escritos. Nesse sentido, a superposição de imagem e texto nas páginas "on line" é apenas um estágio mais desenvolvido de uma tradição milenar.

A rede não somente valoriza a comunicação escrita como a torna mais eficiente, na medida em que possibilita a navegação entre textos afins instantaneamente. Quem já teve oportunidade de fazer uma pesquisa na Internet à procura de informações sobre um tema específico sabe muito bem como a rede é uma ferramenta útil e indispensável de pesquisa. Útil, indispensável mas não única. Talvez seja por isto que Pierre Levy não deixou de colocar no centro das discussões os processos de comunicação escrita e verbal, fornecendo ao leitor informações precisas e preciosas sobre estas modalidades de comunicação humana.

Levy faz uma analogia entre a oralidade original e a oralidade reorientada pela era digital, que retira de cena os mediadores no processo de comunicação escrita (jornais, revistas, televisão, ou seja, as mídias que permitem a comunicação um-todos) e possibilita a comunicação direta e transversal (todos-todos). Seu procedimento nos faz imediatamente comparar a morte de um ancião numa sociedade ágrafa à destruição física de um dos nós da rede. Porém, se numa sociedade ágrafa a perda de um ancião é irreparável, pois todas as informações que ele armazenou morrem com ele, a destruição de um servidor não acarreta "ipso facto" a destruição de todos micros que o alimentaram. Assim, na era "high tech" é muito mais fácil para a humanidade se recompor de uma perda tão drástica. Além disto, as bibliotecas virtuais não substituíram as reais e os livros continuarão a ser nossos companheiros por muito tempo. A propósito, nunca se editou e publicou tanto quanto na atualidade, o que prova que o perigo da digitalização nos conduzir ao retorno à barbárie primitiva não passa de uma doce ilusão borgeana.

Pierre Levy se recusa a discutir os efeitos militares das novas tecnologias. É uma pena, pois a desterritorialização proporcionada pela rede, que ele mesmo define e defende como sendo uma das melhores conseqüências da era "high tech", exige que entremos neste árido terreno reservado aos especialistas fardados. Afinal, a desterritorialização provoca fraturas nos conceitos de nacionalidade, território e soberania, três questões que dizem respeito diretamente à integridade dos Estados e às suas relações com os povos que representam ou pretendem representar. Para se ter uma idéia do problema, basta lembrar que durante o ataque americano à Sérvia, podíamos ter acesso à versão dos fatos de ambos contendores usando servidores localizados na Europa ou nos EUA. Resumindo, de certa maneira os americanos e seus aliados também ajudavam o esforço de guerra inimigo.

Cibercultura nos dá um panorama amplo e profundo das conseqüências socioculturais da universalização da informação. Pena que Pierre Levy não tenha abordado os reflexos desta nova realidade na mitologia. Ele afirma que:-

"A partir do século XX, com a ampliação do mundo, a progressiva descoberta de sua diversidade, o crescimento cada vez mais rápido dos conhecimentos científicos e técnicos, o projeto de domínio do saber por um indivíduo ou por um pequeno grupo tornou-se cada vez mais ilusório."

Não podemos deixar de notar as implicações disto para o mito de Fausto. Construído na Idade Média, o mito de Fausto tinha por finalidade preservar o monopólio do saber nas mãos da Igreja e advertir o homem de que a busca do saber e do poder que dele resulta tem efeitos perversos.

O mito pode ser resumido da seguinte forma:- o cientista Fausto celebrou com Mephistópheles um contrato, através do qual se comprometeu a entregar sua alma em troca de conhecer o mundo, de experimentar intensamente os prazeres mundanos. O resultado é funesto. Por onde passa Fausto espalha infelicidade e no final descobre-se vítima de sua própria sede de saber. Este mito pressupõe duas coisas:- o desejo de saber de Fausto e o monopólio do conhecimento por Mephistópheles. Sem elas não há sedução, contrato ou resultado da ação

Já vimos que Pierre Levy defende a tese de que a rede impossibilita o monopólio do saber. Sendo assim, mesmo que alimente e seja alimentada pelo desejo de conhecimento do usuário, a Internet não é dotada e não pode dotar ninguém do maligno poder de Mephistópheles. A rede não tem poder de barganha nem pode conferir um poder absoluto a um só homem ou a um pequeno grupo humano. Sendo assim, a rede de computadores afogou o mito faustico no dilúvio incontrolável de informações possíveis mas intotalizáveis.

O mito de Fausto é produto do conflito entre religião e ciência na Idade Média. Apesar disto, ele resistiu de certa maneira ao iluminismo, pois os cientistas reivindicaram e exerceram algum poder em razão do monopólio do conhecimento substituindo a Igreja. Entretanto, na era digital os últimos resquícios de um poder imanente ao saber foram pulverizados, de forma que isto traz profundas conseqüências mitológicas. Mas teremos que esperar surgiu um autor que aprofunde este tema.

A maior critica que pode ser feita ao infofilósofo francês é o fato dele adotar uma perspectiva utilitarista da Internet. É claro que não podemos reduzir sua teoria à formula:- a rede de computadores é boa porque é útil. Todavia, não podemos deixar de dar alguma razão àqueles que apontam os problemas que ela representa ou pode representar para o processo de socialização. E não estou aqui me referindo aos desconectados, pois é o processo de exclusão econômica que propicia esta modalidade de segregação social. Os problemas a que me refiro dizem respeito aos incluídos, aos conectados. A existência de pessoas que defendem abertamente que a vida "on line" substituirá a vida real (como Nicolas Negroponte, cujas teorias são criticadas por Pierre Levy), nos dá uma idéia do grau de miopia intelectual que o excesso de informação é capaz de produzir em algumas pessoas. Entretanto, Pierre Levy deixa bem claro que não pretende definir "a" cibercultura, mas a maneira como concebe-a. Admitindo na teoria a pluralidade que a Internet possibilita na prática, o infofilósofo nos convida à reflexão. Mãos à obra.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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