sexta-feira, 24 de setembro de 2010

D R A M A R T U R G I A & L A C A N ?

A ESCRITA E A PSICOSE NO ENSINO LACANIANO

A escrita é correntemente considerada uma possibilidade de estabilização, um modo de suplência aos casos de psicose, ainda que seja uma solução raramente encontrada na clínica. O estudo de Lacan sobre Joyce talvez tenha estimulado essa associação. O que, entretanto, a prática clínica com os psicóticos na verdade testemunha é uma variedade muito grande de relações entre a escrita e as soluções psicóticas.

Essa noção atravessa vicissitudes consequentes ao próprio avanço da teoria lacaniana em seu conjunto. Segundo Sauvagnat (1999), Lacan trabalha a questão da escrita em toda sua obra, havendo, ao menos, três momentos em que uma nova proposição é por ele apresentada. A primeira é elaborada na década de 1930, com seus estudos sobre a “esquizografia” como escrita inspirada. A segunda proposta aparece na década de 1960, com a escrita a partir do traço unário, que teria que dar conta da inscrição do Nome-do-Pai. E, por fim, na década de 1970, assistiríamos à escrita que faz nó entre Real, Simbólico e Imaginário, bem como ao que resiste a se escrever, à escrita de um impossível remetido à relação sexual. Sigamos essa trajetória.

2.1 ANOS 1930: A PSICOPATOLOGIA E O ELOGIO DA ESCRITA

Lacan, na década de 1930, hesita entre uma concepção estereotipada da escrita na psicose e outra na qual a escrita é exaltada em sua potência criativa e reveladora dos conflitos típicos de sua época. No texto “Écrits inspirés: schizographie”, de 19312, publicado originalmente no periódico Annales medico-psychologiques e, posteriormente, incorporado à edição francesa de sua tese de doutoramento, Lacan (1932-1975) comenta as práticas poéticas e epistolares de uma professora primária psicótica. Ele se inspira nos trabalhos de linguística pós-saussuriana de Pfersdorff e Henri Delacroix sobre o mesmo caso. A razão do exame desse caso é a reticência da doença da qual se supõe que os transtornos elementares se exprimiriam mais facilmente pela escrita. O termo esquizografia é forjado do termo esquizofasia, que designa a existência de uma dissociação. No caso estudado, a maioria dos escritos da paciente era absurdamente incoerente, “contrastando com o caráter absolutamente normal de sua linguagem falada e a integridade de suas funções intelectuais” (HULAK, 2006, p. 18).

A pesquisa de Lacan já se apresenta muito seletiva. Ele não se pergunta simplesmente se a paciente é louca, mas sobre quais fundamentos repousa seu delírio polimorfo, acrescentando que talvez os escritos ajudassem a resolver a questão. Na discussão dos elementos psicopatológicos, ele destaca que a doente afirma ser-lhe imposto o que ela exprime, não de uma maneira irresistível nem mesmo rigorosa, mas sob um modo já previamente formulado. É, no sentido forte do termo, uma inspiração, tanto mais presente quanto mais a professora esteja só (LACAN, 1932-1975). Duas convicções contraditórias são acrescentadas. De um lado, ela é acompanhada de um estado de astenia no qual seus escritos experimentam “verdades de ordem superior” imediatamente compreensíveis pelo destinatário de suas cartas. E, de outro lado, uma convicção negativa, a de que ela experimenta, quanto a ela própria, nada compreender disso. Tudo isso acompanhado do sentimento de fazer evoluir a língua.

O conjunto, avalia Lacan, é idêntico à estrutura de todo delírio. Ela associa a uma astenia passional, colorindo os estados de influência e de interpretação, uma formulação minimal e reticente do delírio, e um fundo paranóico. O fenômeno elementar aqui vale como resumo da personalidade e, a escrita, como sua manifestação empobrecida. O fenômeno elementar da ‘inspiração’ parece se tratar de uma forma vazia, cuja expressão limite é a estereotipia aos moldes das palavras intercambiáveis das estrofes de uma canção. Longe de motivar a melodia, é a estereotipia que sustenta essas estrofes e legitima, no caso, seu não sentido (LACAN, 1932-1975). Esta vacuidade formalista aparece em primeiro plano, enquanto a astenia passional lhe confere um assentimento, diz Lacan, de onde o fenômeno da ‘inspiração’ apresentar uma dimensão passional e outra intelectual simultaneamente.

Ainda que algumas fórmulas desse escrito sejam felizes, o mais frequente são as escórias da consciência, as palavras silábicas, as sonoridades obsedantes, as banalidades, as assonâncias, os automatismos diversos, enfim, o que Lacan sintetiza em uma palavra: estereotipia. A ideia de déficit se destaca nessa leitura. “É quando um pensamento é curto e pobre que o fenômeno automático o suplencia. Ele é sentido como exterior porque suplenciando um déficit do pensamento. Ele é julgado como válido porque evocado por uma emoção astênica” (LACAN, 1932-1975, p. 375, tradução nossa).

O interessante é que, em um curtíssimo espaço de tempo no mesmo ano, Lacan (1932-1987) parece passar dessa leitura deficitária para seu contrário, positivando a escrita psicótica, que nada parecerá limitar. Assim, os escritos de Aimée – estudados em seu doutoramento – não mostrariam estereotipia alguma. Eles também foram utilizados como meio de realização do diagnóstico, mas colocavam em evidência a riqueza afetiva da paciente. “A escrita de certos psicóticos como criação autêntica parece, então, excluir o uso bruto da repetição (estereotipia): é uma ‘nova sintaxe’” (SAUVAGNAT, 1999, p. 40, tradução nossa).

A posição de Lacan parece ficar ainda mais clara no ano seguinte, ao escrever “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” (LACAN, 1933-1987)3. Ali, ele localiza os temas ideacionais e os atos significativos do delírio dos paranóicos, bem como suas produções plásticas e poéticas sob três rubricas. Primeiramente, destaca “a significação eminentemente humana desses símbolos” (LACAN, 1933-1987, p. 379), utilizados pelos psicóticos, que seriam análogos às criações míticas, assim como os sentimentos que os animam seriam análogos à inspiração dos artistas. Sob um segundo aspecto, estaria a repetição que, longe de reenviar a uma forma vazia e deficitária, colocaria em jogo uma “identificação iterativa do objeto”, caracterizando o delírio com uma fecundidade próxima à dos processos de criação poética. Por fim, em um terceiro ponto, ‘o mais notável’, destaca o valor de realidade social desses delírios, situados, “com muita frequência, em um ponto nevrálgico das tensões sociais da atualidade histórica” (LACAN, 1933-1987, p. 379). O conjunto apresenta uma contribuição à civilização humana e ao problema do estilo, que esse conjunto resumiria de alguma maneira.

Lacan opera um retorno ao contrário articulado pela passagem da repetição, estigmatizada como estereotipia no primeiro caso, para a amplitude criativa do processo psicótico, presente no segundo, o caso Aimée. Fato é que nesse período, o centro do processo de criação está situado, para Lacan, na escrita dos paranóicos. Não percamos esta assertiva de vista.

Fonte: http://146.164.3.26/seer/lab19/ojs2/index.php/ojs2/article/viewArticle/335/303

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