Como num ritual de passagem, a protagonista, através de seus amigos imaginários, irá descobrir a si mesma, ao mesmo tempo que descobre as leis e discursos que regem a sociedade.
Análise da obra: Símbolos e mensagens de “A bolsa amarela”
Já no primeiro capítulo, nos deparamos com um narrador problemático: “Eu tenho de encontrar um lugar para esconder minhas vontades” confidencia Raquel ao leitor.
Nesse capítulo, “As vontades”, a protagonista-narradora nos informa que tudo que quer na vida é ser garoto, ser grande e ser escritora. Nos entanto, tais vontades são fisicamente grandes, o que acaba por causar grandes desentendimentos entre a garota e sua família. Enuncia-se, portanto, a primeira obstrução do discurso: por ser criança, Raquel não tem voz em sua casa, não possui direitos de escolher ou discordar. Na qualidade de criança, não tem vontades, segundo seus pais e irmãos maiores – símbolo da sociedade e de sua ideologia.
Como não pode ser garoto ou mais velha, a menina tenta ser escritora. Sabiamente, para Raquel, escrever é criar um novo mundo, e para isso, passa a escrever cartas endereçadas a seus amigos imaginários. O que chama a atenção em tais cartas é que elas sempre têm como remetente nomes masculinos, que ainda segundo a protagonista, são amigos mais velhos. Ou seja, a narradora escreve a si mesma, o garoto mais velho que não pode ser. Se num plano real isso é impossível, no mundo imaginário criado pela linguagem, Raquel se realiza como um homem adulto. Ela, contudo, deixa de escrever quando seus pais e irmãos encontram tais cartas e ela não tem condições de explicá-las.
Segue-se uma descrição da família de Raquel: seus pais trabalham, seus irmãos cometem abuso de uma autoridade qualquer que acham ter; ao que tudo indica, a menina é fruto de uma gravidez indesejada, e o sentimento de rejeição que ela sente é muito grande. Sua família, portanto, impõe-lhe uma série de restrições.
Para a protagonista de “A bolsa amarela”, a infância é sinônimo de proibição; o mesmo ocorre com a condição de ser mulher. Numa discussão com seu irmão, Raquel justifica sua vontade de ser mulher: “...acho muito melhor ser homem do que mulher... Vocês [homens] podem um monte de coisa que a gente [mulheres] não pode”. Logo se entrevê que, para a narradora, ser mulher e ser criança são duas grandes restrições que a vida lhe impõe; interdições que não lhe permitem viver plenamente.
É bastante curioso notas que Lygia Bojunga Nunes expõe suas críticas a uma sociedade que não dá voz ao infante e à mulher através de uma figura que tradicionalmente não tem poder de fala: a criança.
Se Raquel não consegue se desvencilhar de suas amarras dialogando com seus amigos imaginários, tenta uma outra saída: redige a história de um galo que se revolta contra as regras do galinheiro e foge. Novamente, encontramos uma figura masculina – o galo – e o desejo de sair de uma situação sufocante. A imagem do galinheiro também é sugestiva, já que se percebe claramente uma situação hierárquica em que o galo está numa posição acima das galinhas, o macho acima da fêmea, o homem acima da mulher.
Raquel é este galo, figura que engloba todas suas vontades, além de realizar uma inversão das relações de poder: sendo o galo, a menina está acima do galinheiro – sua família, a sociedade e suas regras.
Quando seus pais, porém, descobrem a narrativa, Raquel é censurada mais uma vez. A fuga imaginária que lhe trouxe alívio, agora perde validade. É quando aparece a bolsa amarela: presente de tia Brunilda que é rejeitado por toda a família. Para Raquel no entanto, será sua chance de esconder suas vontades e seus diversos amigos imaginários.
A bolsa carrega consigo uma forte simbologia: representa a mulher forte e, de alguma maneira, inserida na sociedade, que mesmo inconscientemente, Raquel sonha ser; é também o próprio interior da personagem, onde ela guarda seus íntimos segredos, longe da invasão dos adultos que se recusam a entendê-la.
Sobre a cor, é a própria narradora quem nos explica seu significado: “... pra mim amarelo é a cor mais bonita que existe. Mas não era um amarelo sempre igual: às vezes era forte, mas depois ficava fraco; ...já resolvendo que ser sempre igual é muito chato...”. Ou seja, a cor amarela representa a mutação, a mudança pela qual Raquel está passando. Em suma, a bolsa representa o interior da personagem, que busca se fortalecer diante das censuras da sociedade; representa também seu processo de amadurecimento.
O terceiro capítulo, entitulado “O galo”, retomará a figura criada por Raquel. O galo agora se materializa e torna-se uma das grandes questões dentro do livro: às vezes tal galo parece fazer parte apenas do universo mental da menina; em outras situações, contudo, parece ser um animal real e acessível a todos a sua volta.
Diz ele a Raquel que fugiu do galinheiro, indo parar na bolsa amarela. A menina dá-lhe o nome de Rei, mas o galo recusa-o: no universo da criança, não há espaço para a hierarquia que a figura do rei sugere; todos são iguais. A partir desse momento, o galo passa a se chamar Afonso – outro nome masculino que remete às aspirações da garota em tornar-se homem – e conta que fugiu do galinheiro pois não agüentava mais as imposições de seus donos.
Sobretudo, ao fugir do galinheiro, Afonso carrega consigo uma ambição: “Acabei resolvendo que ia lutar pelas minhas idéias”, mas no entanto, ele não sabe ainda por quais idéias lutar. É fácil notar que a ambição é, na verdade, de Raquel, que num momento de transformação, está construindo, questionando e investigando os valores que quer para si, e quais vai deixar para trás, na infância.
O capítulo seguinte, “História do alfinente de fralda (que mora dentro do bolso bebê da bolsa amarela)”, narra o dia em que Raquel descobre, perdido, no meio da rua, um alfinente de fraldas, que representará a essência do que é puro e infantil na protagonista.
Já em “A volta da escola”, é apresentado ao leitor outro personagem de “A bolsa amarela”. Trata-se de um guarda-chuva mulher que o galo Afonso encontra e dá a Raquel como presente. É uma rara menção de um elemento feminino dentro da narrativa. O guarda-chuva – ou a guarda-chuva, como a menina chama – vai representar uma ainda incipiente conciliação entre a garota e seu gênero. É símbolo de abrigo e proteção, que está conquistando em si mesma.
O mecanismo do guarda-chuva de poder ter sua haste esticada carrega, também, uma simbologia: por fim, Raquel entenderá que o adulto que ela sonha ser já está contido nela, e que mesmo um dia tornando-se essa mulher forte e independente que inconscientemente sonha ser, terá ainda consigo a criança que é hoje.
Ainda dentro deste capítulo aparece, talvez, a mais importante figura simbólica da obra: o galo de briga Terrível, primo de Afonso. Acumulará em si uma impressionante carga de símbolos; irá, sobretudo, explicitar várias relações de poder. Afonso nos informa que Terrível é um galo de briga que teve o pensamento costurado por uma certa Linha Forte, e que a única parte livre de seu pensamento é aquela que o obriga a pensar somente em brigar e ganhar de todos. Terrível foi ensinado a abominar a derrota e jamais admiti-la.
Dessa forma, a autora faz novas críticas aos discursos embutidos na sociedade. Ora, num mundo capitalista, o importante é sempre a vitória – o lucro –, sobretudo se encaixarmos tal premissa na figura do galo de briga. Ele traz lucros para seu dono ou treinador (como querem alguns). Da mesma forma, o trabalhador comum exerce sua profissão para a companhia ou empresa em que trabalha, sendo sua remuneração uma parte ínfima dos rendimentos de tal companhia ou organização.
O galo Terrível também tem o pensamento costurado – imagem que remete ao leitor a uma estratégia radical de obstrução do discurso: a lobotomia – e, pode-se deduzir que Lygia Bojunga Nunes quer usar de seu galo de briga Terrível, o oposto de Afonso, de pensamento livre, como metáfora para o cidadão médio, escravo de um sistema que o prostitui e cerceia seu pensamento.
Como agravante, uma certa Linha Forte é a responsável por costurar o pensamento do galo de briga. Analisando a conjuntura política brasileira em 1976 – ano de publicação do livro – fica difícil não fazer uma rápida associação entre Linha Forte e a chamada “linha dura” do regime militar. Em raros momentos da literatura brasileira uma metáfora foi tão bem construída – e pensar que estamos tratando de um livro destinado a crianças.
Por fim, terrível se desvencilhará dessa armadilha social, se revoltará contra o sistema em que está inserido e vai fugir num barco – símbolo do exílio concedido àqueles considerados subversivos.
A autora, posteriormente, brinda o leitor com mais uma bela metáfora. Já que o guarda-chuva mulher está quebrado, e para ser consertado, precisa ser levado à Casa dos Consertos. Nesse lugar fantástico, a príncipio, as tarefas são organizadas e distribuídas aos seus moradores. Porém, todos revezam as tarefas em todos possuem poder de fala.
Seria essa, uma maneira ideal, para Lygia Bojunga Nunes, de organização familiar e social: todos sendo vistos como capazes, independentemente do sexo ou da idade; todos com poder de decisão nas questões políticas e sociais.
Com essas novas conclusões, as vontades da menina diminuem e seus amigos, o galo Afonso e o guarda-chuva mulher estão prontos para irem embora. É nesta etapa da narrativa que Afonso descobre por qual idéia lutará: não deixará que ninguém tenha o pensamento costurado como aconteceu com seu primo Terrível.
Raquel mudou, conseguiu criar seu próprio mundo, entender a si mesma como criança, como mulher; não mais quer ser homem ou adulto, está feliz consigo mesma. A única vontade que guarda dentro de si é a de ser escritora – somente assim continuará construindo seu universo particular, e não importa qual seja sua idade. Tomando para si o ideal de Afonso, também irá cumprir sua função social como escritora: denunciar a opressão e esclarecer seus leitores.
A última mensagem que a autora deixa, também é de suma importância num livro infantil: de todos os elementos que compunham seu imaginário, o único que Raquel guardará consigo é o pequeno alfinete para fraldas. Portanto, mesmo que madura, a garota sempre terá consigo uma essência inocente e pueril.
O livro termina com o esvaziamento da bolsa amarela e uma narradora feliz, leve e satisfeita consigo mesma.
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