domingo, 4 de outubro de 2009
A mística do guarda-chuva
Dias atrás tomei uma decisão fulminante: vou comprar um guarda-chuva decente. Um guarda-chuva caro. Um guarda-chuva incapaz de se dobrar ao vento, como todos aqueles últimos colecionados nos anos passados, comprados às pressas na saída de algum metrô em imprevisíveis dias chuvosos. É quase como uma mudança de eras que ocorre com um homem quando este decide finalmente comprar o guarda-chuva definitivo, aquele que não durará uma estação e sim anos, longos anos, e o acompanhará por dias e noites em pluviais travessias pela cidade.
Certamente há algo de ridículo no que acima escrevi. Mas o ridículo é uma questão de perspectiva, de interpretação, e é possível encontrá-lo em qualquer acontecimento, mesmo aqueles que se querem sérios e carrancudos. Eu mesmo achei engraçado quando um amigo contou-me meses atrás sobre sua decisão de comprar um guarda-chuva decente após anos utilizando aqueles cujas varetas entortam inexplicavelmente. Mas não há nada de engraçado nisso e agora eu consigo entender perfeitamente a mudança espiritual que um homem sofre após comprar seu primeiro guarda-chuva de verdade.
É necessário que eu explique melhor.
Primeiro de tudo é importante dizer que o primeiro guarda-chuva decente de um homem não pode ser comprado em um camelô. Isso serve para quem está com pressa e definitivamente não é disso que estou falando. Este guarda-chuva decente é antes de tudo um símbolo e, portanto, sua aquisição deve ser realizada obedecendo a uma determinada liturgia. Em outras palavras: deve ser adquirido em uma loja, e quanto mais especializada melhor. Esqueça os shopping centers: eles tornam o ritual um fracasso. Uma loja de rua, aquelas antiquadas, sem nenhum apelo de modernidade, com seu dono vetusto do outro lado do balcão e incapaz de sorrir porque a vida de hoje já lhe causa enjôos, é o templo ideal, o Pantheon onde se encontra não só guarda-chuvas, mas bolsas, chapéus, luvas, bengalas e utensílios para tabacaria. O preço deve ser no mínimo dez vezes maior do que o dos camelôs, a haste curva, ter uma ponta perfurante e me recuso a dizer que para este guarda-chuva a única cor aceitável é negra.
Depois da compra o primeiro passeio com o guarda-chuva é tão importante quanto sua aquisição (tanto melhor se estiver chovendo, já se deixa a loja batizando-o com as gélidas águas ex caelo). E é neste momento, neste passeio na rua munido de um guarda-chuva, que opera-se uma espécie de curiosa alquimia, ou revelação, arrisco a dizer quase iniciática, entre um homem e seu primeiro guarda-chuva. Sentir-se protegido por este objeto secular, cuja forma nunca foi superada mesmo após tantas descobertas científicas, é quase como experimentar uma comunhão mística com todos os homens de eras de antanho (sou da opinião de que objetos/lugares antigos estão impregnados de uma carga energética das pessoas que os utilizaram no passado). O passeio é agradável e parece que estamos distantes (espiritualmente distantes) de toda a agitação ao redor. Olha-se com desgosto para os guarda-chuvas coloridos , prova inconteste do mau gosto e da deselegância. Às mulheres permite-se o uso de cores variadas para suas sombrinhas: o guarda-chuva só tem transcendência mesmo para um homem. A mulher o utiliza como um objeto que a impede de ficar molhada; já para um homem o guarda-chuva é uma espécie de cetro. Uma mulher com um guarda-chuva negro é uma visão urbana totalmente aceitável; um homem apressado que abre um guarda-chuva multicolorido não consegue ser levado a sério.
O formato fálico do guarda-chuva talvez seja um outro elemento que explique por que somente homens são capazes de manter com estes objetos uma relação quase fraternal. Todo homem é amigo do próprio pênis e teme por ele mais do que pela própria vida, e esta relação se estende ao guarda-chuva. Perceba também que o guarda-chuva tem o mesmo formato de uma espada ou uma lança, objetos que são por excelência masculinos e que ao longo da história foram símbolos de poder, tanto espiritual quanto temporal. Até hoje são comuns garotos brincando com guarda-chuvas como se fossem gladiadores, o que mostra a especial ligação que o homem possui com este objeto. Bengalas também se assemelham a guarda-chuvas e figuram ao lado deles como objetos de elegância e masculinidade.
Graciliano Ramos andava para qualquer lugar que fosse com seu guarda-chuva negro debaixo do braço. Certa vez, de viagem (se não me engano ao Rio de Janeiro), em um dia de pleno sol, lhe perguntaram o porque levar um guarda-chuva em um dia tão bonito, sem nenhuma nuvem. Respondeu em um resmungo: “A gente nunca sabe.” Certamente o escritor alagoano, com seu estilo duro, azedo, implacável, foi um dos iniciados na mística do guarda-chuva. Lamentava aqueles que não o traziam consigo. Detestava aqueles que chegavam molhados aos encontros, com as roupas grudadas no corpo, os cabelos desalinhados pelas gotas sem clemência. O (suposto) Borges de “Instantes” (“Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas”) odiaria a resposta de Graciliano. Assim como Graciliano desprezaria este Borges fictício autor de poemas hippies, e o trataria como um moleque, como um cego reacionário que nada entende da grandiosidade interior que um guarda-chuva negro, adquirido no momento certo e mediante determinado ritual anteriormente explicado, confere àquele que o possui.
E nas tempestades que arrasam as ruas, hoje caminho com meu guarda-chuva negro, elevando-o tal como um objeto de culto (o que de fato ele é, apesar da incredulidade geral). Ao fazer isso, sou indivíduo do presente, mas estabeleço uma conexão metafísica com um tempo que já passou. Há melancolia na figura do homem que caminha sob a chuva empunhando um guarda-chuva; uma espécie de nostalgia também; mas nenhum destes sentimentos é acompanhado de compaixão. Ao contrário: a melancólica e nostálgica imagem do homem que caminha com seu guarda-chuva negro é uma imagem de nobreza, de sobriedade, de afirmação de uma vontade de permanecer incólume perante as atribulações, as desgraças, os descaminhos. O comprar o primeiro guarda-chuva decente é, para um homem já feito, o equivalente ao Crisma na tradição católica: confirma-se a introdução do indivíduo no universo adulto. E tal como na celebração da Eucaristia, o homem que sai de casa com seu guarda-chuva negro renova um pacto entre o presente e o passado. E este pacto, que no catolicismo é a hóstia consagrada, na mística do guarda-chuva é um novo olhar, um melancólico e nostálgico olhar para o presente, um olhar que não se perde nas primeiras gotas de chuva, por mais densa que esta seja, e consegue ir além da cortina da água, consegue escapar da força das úmidas rajadas ex caelo e permanecer distante e livre de seus efeitos.
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