domingo, 4 de outubro de 2009

ESPELHO
Epílogo


“Em ESPELHO, o seu quarto CD, o Grupo ANIMA mostra (...) as mútuas reflexões entre repertórios musicais da música antiga européia, especialmente os de linguagem modal e o da música de tradição oral brasileira. Aqui, entretanto, alguns dos temas das canções participam desse jogo especular (...) a interpretação do ANIMA é o que faz com que ESPELHO reflita de modo tão marcante e nítido para nossos ouvidos atuais essa música das origens, produzida por um homem ancestral. Uma música que já carrega em si um especial poder de refletir o mundo, compartilhando as mesmas propriedades do instrumento ótico”. (FCD bibl. 4)

“Espelho, desde os antigos, é atributo de Sabedoria, mas Carnalidade também o segura nas mãos; nem é preciso dizer que se trata de uma Virtude e de um Vício”. (FCD bibl. 4)

ESPELHO é uma alegoria musical que parte da hipótese que a música é também um poderoso espelho capaz de refletir culturas e mundos distantes, mensagens escritas há muito tempo e captadas hoje – refletidas pelos seus intérpretes – não fidedignamente, mas com lealdade e também distorções, a ferrugem do tempo, o filtro das culturas e as impurezas de uma, entre as infinitas interpretações possíveis do passado, no presente. Sabíamos, de antemão, da impossibilidade de lidar com a dimensão de um tema desta profundidade – o espelho constitui, na mística muçulmana, por exemplo, o próprio símbolo do simbolismo. Nem seria essa nossa intenção, meros músicos “práticos” que somos. Compartilhamos, como tal, do princípio que a música se faz a partir da “concretude” dos sons – considerando que essa seja apenas uma “meia-verdade”, ou melhor, um terço de verdade. Contraditoriamente, porém, o mar revolto da criação, símbolo da própria liberdade criativa, gerou a necessidade de âncoras de segurança, ou melhor, de pontos de apoio para a organização do “caos”.

O primeiro ponto de organização, ou apoio, é a própria poética dos artistas anônimos, espalhados pelo tempo e espelhados no Brasil contemporâneo, engendrando a arte que sobrepõe à pobreza material das vítimas potenciais de todos os esquecimentos. Esse homem, originado em uma cultura iletrada, anônima, que transmite sua arte e conhecimento através da oralidade, é exemplo de um grande jogo de espelhos, que reflete os saberes de geração em geração, com olhares múltiplos gerados pela porosidade das fronteiras e da memória.

Um segundo ponto de apoio será, como conseqüência, o trabalho realizado por pesquisadores e musicólogos que registraram pacientemente, em suas jornadas e acervos, imenso material musical, disponibilizando-o a futuros intérpretes como nós. Nesse âmbito, a reverência é sempre à figura de Mário de Andrade. Não menos importante, apoiamos também grande parte do trabalho do ANIMA sobre os de artistas que, em diferentes épocas e locais, tanto luthiers renomados quanto artesãos anônimos, fabricaram nossos instrumentos musicais - nossos guias a partir dos quais, por um caminho inicialmente traçado às cegas, construímos uma arquitetura musical sustentada pela própria diversidade de origem desses mesmos instrumentos.

Uma outra questão importante para nós é a “reflexão” sobre o fazer musical no palco, a performance musical. Trata-se de uma questão relativamente nova na arte dos sons, principalmente na questão da transposição de práticas musicais ligadas a algum ritual (boi-bumbá; reisados; cantos de devoção ou ligados à alguma liturgia, danças medievais, etc.) para o ambiente de concerto, moldado para receber mais apropriadamente a “música pura” do que uma “música híbrida”. Aqui também o espelho nos oferece uma bela metáfora, como bem nos mostrou Fernando Carvalhaes: “a tida peça musical reflete de maneira especial o mundo ao qual ela se abre, pois o ouvinte nela também se reconhece, agindo em cada escuta. Nós, os espectadores – ouvintes de uma interpretação musical – somos, por nossa vez, um espelho para o retrato – uma obra de arte a refletir a realidade, emprestando-lhe sensibilidade e sentido”(FCD bibl. 4). Após quinze anos trilhando esse caminho, percebemos que o momento transformador do palco não deveria ser imposto a nós como uma questão fechada, mas, pelo contrário, suscetível a leituras diversas, assim como o são os arranjos e composições escritos para ou pelo grupo. Para tanto, buscamos ajuda de outros olhares sensíveis a tais realidades e encontramos no LUME Teatro, na direção cênica de Jesser de Souza e Raquel Scotti Hirson, uma acolhida calorosa que nos auxilia a levar esta música para o palco também enquanto linguagem cênica.

Em ESPELHO contamos, sobretudo, com a participação fundamental do medievalista, musicólogo, compositor, arranjador, cantor e amigo Fernando Carvalhaes Duarte, que elaborou três arranjos especialmente para este projeto, e nos orientou emprestando sua sensibilidade musical com inestimáveis trocas de correspondência, ensaios e aconselhamentos sobre interpretação. A ele dedicamos este trabalho in memoriam.



SPECULUM MUNDI (enciclopédia)“Etimologicamente provém de Speculum que deu nome à especulação: originalmente, especular era observar o céu e os movimentos relativos das estrelas, com o auxílio de um espelho. Na mística muçulmana é considerado o próprio símbolo do simbolismo. A noção neoplatônica das duas faces da alma, que teria um lado inferior, voltado para o corpo e um lado superior, voltado para a inteligência exerceu uma grande influência entre os sufistas. Attar diz que o corpo está em sua obscuridade assim como as costas do espelho; a alma é o lado claro do espelho. A propósito dessas duas faces do espelho, Rumi explica que Deus criou este mundo, que é obscuridade, a fim de que sua luz pudesse manifestar-se. Analogamente, segundo a teoria do microcosmo como imagem do macrocosmo, o homem e o universo estão nas posições respectivas de dois espelhos. Do mesmo modo as essências individuais se refletem no Ser divino, segundo Ibn´Arabi, e o Ser divino se reflete nas essências individuais. Sendo o coração simbolizado por um espelho – de metal, antigamente -, a ferrugem simboliza o pecado e o polimento do espelho, sua purificação.” (DS bibl. 5, p. 393;396)

Segundo a simbologia medieval essa polaridade é representada pelo “Espelho da Natureza, que revela ao homem sua alma, segundo uma verdade perfeita. Na outra fonte... nada é estável. É um espelho perigoso... Nenhum homem pode reconhecer sua face nas águas escuras... essa é a fonte que matou Narciso: quando alguém olha para suas águas não vê sua alma, mas simplesmente o corpo, uma imagem transitória que toma pelo seu verdadeiro eu”. (FCD bibl. 4 )

“A inteligência celeste refletida pelo espelho se identifica simbolicamente com o Sol: é por isso que o espelho é freqüentemente um símbolo solar. Mas ele é ao mesmo tempo um símbolo lunar, no sentido em que a Lua, como um espelho, reflete a luz do Sol. A Sabedoria do grande Espelho do budismo tibetano ensina o segredo supremo, a saber, que o mundo das formas que nele se reflete não é senão um aspecto da shunyata, o vácuo.” (DS bibl. 5, p. 394). A esse respeito, Guimarães Rosa trava, no conto “O espelho”, um permanente diálogo entre o mundo transcendente do espelho e o mundo real: “O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (ROSA, 1988, p. 65). Como reverso da iluminação, a face obscura do espelho é mencionada nesta passagem de Grande Sertão: Veredas: “Nem pensei mais no redemoinho de vento, nem no dono dele – que se diz – morador dentro, que viaja, o Sujo: o que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que completa tudo em obra; o que a gente pode ver em folha dum espelho preto; o Ocultador”.(ROSA, p. 243-244, apud ARROYO, 1984, p. 148). Estaria ele dizendo que o Bem e o Mal estão lado a lado dentro da gente?

Nenhum comentário:

Postar um comentário