quarta-feira, 26 de maio de 2010

DIALOGANDO COM FREIRE E BOAVENTURA SOBRE EMANCIPAÇÃO HUMANA, MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO POPULAR

DIALOGANDO COM FREIRE E BOAVENTURA SOBRE EMANCIPAÇÃO HUMANA, MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO POPULAR
Maria do Amparo Caetano de Figueiredo

RESUMO

Este trabalho tem o intuito de refletir as concepções de emancipação e multiculturalismo apresentadas por Paulo Freire e Boaventura dos Santos. Portanto, este diálogo busca dar visibilidade às práticas onde o ser humano possa ter o direito de ser, de se expressar nos seus potenciais, capacidades e diferenças, contemplar na ação educativa o respeito e a valorização das diferenças sejam elas de raça, gênero, cor, etnia. A partir dessas reflexões, quero trazer à tona o papel desenvolvido pela educação popular no processo instituinte de ações emancipatórias num contexto multicultural. Nessa perspectiva, estes autores têm contribuído para fortalecer as concepções e práticas no campo da educação popular, que vem sendo gestadas e nutridas por um projeto de sociedade emancipada.
Palavras - chave: Emancipação Humana - Multiculturalismo - Educação Popular

INICIANDO O DIÁLOGO

Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à “fereza” da ética do mercado. (FREIRE, 1998).
Nesse novo milênio estamos vivendo diante de um grande paradoxo: ao mesmo tempo em que avançamos com relação ao progresso tecnológico, por outro lado, caminhamos num sentido quase inverso às nossas capacidades de garantir um norte ético e emancipatório para a nossa vida em coletividade. Estamos diante de uma sociedade cada vez mais globalizada, tecnologicamente avançada. Contraditoriamente, a maioria da população vive submetida a processos de exclusão e violência sem precedentes. Há uma ética que atende muito mais aos interesses do mercado, do que a espécie humana. Tem-se o desenvolvimento da ciência, e ao mesmo tempo, a banalização da vida, a desumanização do ser.
Paulo Freire e Boaventura dos Santos apresentam críticas ao projeto de globalização e as políticas neoliberais excludentes que se consolidam em nível nacional e internacional. Nesse sentido, Freire reflete sobre o papel e o compromisso da ciência e a da tecnologia. “A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres” (FREIRE, 1998, p.147). Uma ciência e tecnologia a serviço do processo de emancipação humana. Por outro lado, Boaventura defende uma globalização contra-hegemônica, ou seja, uma globalização condizente com um projeto de sociedade que respeite as culturas locais, multicultural e emancipada.

Assim, neste contexto da globalização hegemônica, a educação muitas vezes se encontra pouco vigorosa para dar a sua contribuição no processo de emancipação humana. Diante dessa situação, as idéias sobre emancipação precisam ser (re)discutidas, através de um debate teórico que contemplem os dilemas e as perspectivas da emancipação da humanidade frente às novas configurações societárias instituídas. “O desafio é a construção de propostas concretas para superar dialeticamente os processos socioculturais desumanizantes construindo, igualmente, novas bases filosófico-científicas capazes de orientar um projeto emancipatório de sociedade” (ZITKOSKI, 2003, p.1).Portanto, a elaboração desse texto nasce do desejo e da necessidade de estar refletindo as perspectivas de uma sociedade emancipada que contemple o multiculturalismo, identificando as possibilidades e os limites que as práticas emancipatórias colocam para a Educação Popular. Inicio o ensaio a partir do debate com Paulo Freire sobre emancipação e multiculturalismo. Posteriormente, apresento as reflexões desenvolvidas por Boaventura dos Santos sobre o projeto de sociedade emancipada e multicultural, enquanto um projeto contra-hegemônico diante do atual estágio do capitalismo globalizado. Feitas essas reflexões conceituais, abordo os desafios, limites e perspectivas presentes no campo da Educação Popular, vislumbrando a instituição de uma sociedade emancipada. “A educação popular, pelo diálogo, caminha para a superação das formas existentes de opressão, uma pedagogia emancipatória... Uma pedagogia orientada pela interpretação do mundo, considerando que todos se educam pelo diálogo, intersubjetivamente”. (MELO NETO, 2004, p. 176).
Encontro-me, pois, no desafio de realizar uma provocação teórica-prática sobre os desafios e as perspectivas de emancipação da humanidade, sem a pretensão de esgotar ou até mesmo concluir este debate. Encontro-me também mobilizada pelo desejo de tentar processar as possibilidades da atividade da educação popular nessa empreitada emancipatória. Enfim, escrever sobre a emancipação humana é discorrer sobre um conjunto de ações, utopias, lutas, sonhos, projetos, ações humanas em busca da felicidade, da justiça, da liberdade e da fraternidade.

SOBRE O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO E MULTICULTURALISMO

Para desenvolver o debate sobre emancipação buscarei me fundamentar no pensamento de Paulo Freire e Boaventura dos Santos, através das suas construções teóricas sobre estes.

Segundo o Dicionário do Pensamento Marxista, o conceito de emancipação tem a ver com a liberdade em nível da supressão dos obstáculos à emancipação humana, ou seja, ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma nova forma de associação digna da condição humana. “Dentro da comunidade terá cada indivíduo os meios de cultivar seus dotes e possibilidades em todos os sentidos” (MARX, apud BOTTOMORO, 1997, p.124). Assim, quanto tratarmos da concepção de emancipação, em alguns momentos do texto, vamos fazer referência aos conceitos de liberdade e de emancipação como termos aproximados.
No entanto, situarei brevemente a origem e a evolução do conceito de emancipação, sobretudo por compreender que as concepções desses autores se referenciam também nesta história.
Segundo Pogrebinschi (2004), a origem do conceito de emancipação, em sua formulação latina original emancipatio, deriva de e manu capere, enquanto ato jurídico através do qual o paterfamilias da República Romana tinha autorização para libertar seu filho do pátrio poder. Este conceito é retomado pelo projeto do iluminismo, através dos ideários de liberdade e igualdade, inspiradores da Revolução Francesa. Nesse contexto, o conceito de emancipação é também aprestado na perspectiva de auto-emancipação, passando a ser ação do próprio sujeito. Portanto, se na Roma republicana a autoridade que proporcionava a emancipação era o paterfamilias, na Idade Média ela passa a ser o direito emanado do Estado, tem-se, portanto, a emancipação no campo público, político. O Estado representa o agente emancipatório, ou seja, um instrumento de realização da emancipação. Entretanto, no século XIX, o Estado constitui o próprio objeto de emancipação, ou seja, a origem da opressão da qual se deseja emancipar. No entanto, somente em Marx o conceito de emancipação se libertará do Estado.Assim, em A questão judaica (1978), Marx estabelece uma distinção entre os conceitos de emancipação política e emancipação humana. A emancipação política se configurou pela superação da forma de sociabilidade feudal, em que o modo de produção estabelecia uma desigualdade jurídica e política explícita entre as classes sociais. Portanto, a emancipação política, não extingue, antes solidifica a desigualdade social. Não obstante, para Marx, a emancipação política para o seu contexto, representa um grande progresso.“É certo que não é a última forma da emancipação humana, mas é a última forma da emancipação humana na ordem do mundo actual. Entendamo-nos: falamos da emancipação real, da emancipação prática”. (MARX, 1978, p. 23).
Dessa forma, o marxismo torna-se herdeiro de um conceito mais fértil e mais amplo de emancipação: “emancipação humana geral”, enquanto a mais elevada expressão das potencialidades humanas. A “emancipação humana só é realizada quando o homem reconheceu e organizou as suas próprias forças como forças sociais, deixando, pois de separar de si a força social sob a forma de força política” (MARX, 1978, p.46). Nesse sentido, pauta sua obra no conhecimento e crítica à sociedade burguesa, vislumbrando alternativas, caminhos, ações instituintes de emancipação da espécie humana.

O conceito de emancipação também foi constituinte do projeto dos pensadores da Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt. Estes pensadores desenvolveram nos seus estudos profundas críticas e alternativas a sociedade de suas época e, sobretudo diante da não efetivação de uma sociedade emancipada, inclusive no contexto do chamado socialismo real. A Escola de Frankfurt foi criada na Alemanha em 1923. Constituiu um grupo de intelectuais que formularam uma teoria social específica, de inspiração marxista Contudo, não permaneceu na Alemanha, pois foi “transferida” para os Estados Unidos em 1933, onde permaneceu até 1950, retornando ao país origem. Seus principais representantes foram: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas.

Adorno realiza uma conversação com Hellmut Becker e Gerd Kadelbach (1969) sobre o processo educacional e a prática emancipatória. Adorno recoloca o desafio de no mínimo fazer oposição à barbárie, a partir de uma educação que promova a emancipação.

EMANCIPAÇÃO E MULTICULTURALISMO EM PAULO FREIRE

Freire em toda a sua obra, deixa claro sua própria posição na sociedade, na educação, na vida, diante do outro, diante dele mesmo. Ele sempre nos desperta para refletir sobre os limites da educação. Entretanto, destaca fundamentalmente o papel que temos e a responsabilidade de assumi-lo bem, na construção de uma sociedade mais democrática e humana. Nesse sentido, Freire reconhece que o projeto de emancipação humana só será efetivado na sociedade socialista. Freire reconhece assim como Marx, o progresso da emancipação política, no caso de Freire, a vivencia da cidadania, mas considera que só com a instituição do socialismo é possível a emancipação geral da humanidade. Para Freire, o contexto atual nos possibilita projetar novas experiências socialistas, transcendendo ao modelo negativo do socialismo soviético, assim como o paradigma autoritário do chamado socialismo real:
O discurso contra a utopia socialista – o discurso liberal ou neoliberal – necessariamente e obviamente enaltece o avanço do capitalismo. Eu me recuso a pensar que se acabou o sonho socialista porque constato que as condições materiais e sociais que exigiram esse sonho estão aí. Estão aí a miséria, a injustiça e a opressão. E isso o capitalismo não resolve a não ser para uma minoria. Eu acho que nunca, nunca na nossa História, o sonho socialista foi tão visível, tão palpável e tão necessário quanto hoje, embora, talvez, de muito mais difícil concretização. (FREIRE, 2001, p. 209).
Nesse sentido, a emancipação humana não acontecerá por eventualidade, por concessão, mas será uma conquista efetivada pela práxis humana, que demanda uma luta ininterrupta. Assim, Freire não defende uma libertação enquanto ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. A liberdade é condição imprescindível ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos... “A libertação, por isto, é um parto[...] O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos” (FREIRE, 1991, p.35).
De tal modo que a superação dessa contradição é um processo que traz ao mundo novos seres, não mais opressores, nem oprimido, mas homem libertando-se. Nesse contexto, A pedagogia do oprimido (1991), constitui a pedagogia dos homens e das mulheres empenhando-se na luta por sua emancipação. A origem da pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, “deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”. (FREIRE, 1991, p. 41).
Destarte, o processo de emancipação humana na perspectiva de Freire contempla o processo de humanização tanto do oprimido quanto do opressor. Essa luta unicamente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem reconstruir sua humanidade, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. “E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores.”(FREIRE, 1991, p.30):

A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais... Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (FREIRE, 1987, p.30).
Assim, emancipação na perspectiva de Freire é apropriar-se e experimentar o poder de pronunciar o mundo, a vivência da condição humana de ser protagonista de sua história. Freire nos possibilita um projeto de educação popular que almeja a libertação, humanização e emancipação humana. Sua pedagogia caminha “em torno de uma ontologia social e histórica. Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária e inevitável, não a entende como uma a priori da História. A natureza humana se constitui social e historicamente”. (FREIRE, 2000, p.119). A emancipação consiste num fazer cotidiano e histórico permeado de desafios, sonhos, utopias, resistências e possibilidades. “Vocacionado à Liberdade, o ser humano busca responder através de sua disposição de cavar, sem cessar, espaços de autonomia, em vista de um renovado compromisso com a causa emancipatória, seja no plano pessoal, seja no âmbito coletivo” (CALADO, 2001, p. 55). Freire busca realizar o sonho político a favor da emancipação humana. Esta tarefa, no entanto, “não pode ser proposta pela classe dominante. Deve ser cumprida por aqueles que sonham com a reinvenção da sociedade, a recriação ou reconstrução da sociedade”. (FREIRE, 2001, p.49).
Libertação e opressão, porém, não se acham inscritas, uma e outra, na história, como algo inexorável. Da mesma forma a natureza humana, gerando-se na história, não tem inscrita nela o ser mais, a humanização, a não ser como vocação de que o seu contrário é distorção na história... Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade. (FREIRE, 1997, p. 100).

Assim, no contexto da sociedade capitalista, há muitos limites ao processo de emancipação humana. Esta emancipação será sempre um processo em construção, um devenir. Nesse sentido, a emancipação humana no pensamento de Freire é um vivenciar cotidiano, não um projeto a ser concretizado somente num futuro longínquo, inclusive para ser construído e vivido por outros. Portanto, as práticas emancipatórias da humanidade se efetivarão ao mesmo tempo no cotidiano e na história. Ocorre em casa, nas relações entre pais, mães, filhos, filhas, na escola, nas relações de trabalho, não importa o seu grau, afirma Freire (2000), “o essencial é se sou uma pessoa coerentemente progressista”. Nesse sentido, a educação popular constitui um dos espaços fundamentais que possibilita aos seres humanos ir exercitando o processo de emancipação individual e coletiva. Assim, na perspectiva freireana, a emancipação inclui a vivência das necessidades matérias e subjetivas, contempla a festa, a celebração, a alegria de viver:

Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, tem que ser abrangente, totalizante; ela tem que ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver. E não apenas com a rigorosidade da análise de como a sociedade se move, se mexe, caminha, mas ela tem a ver também com a festa que é vida mesma. Mas é preciso fazer isso de forma crítica e não de forma ingênua. Nem aceitar o todo-poderosismo ingênuo de uma educação que faz tudo, nem aceitar a negação da educação como algo que nada faz, mas assumir a educação nas suas limitações e, portanto, fazer o que é possível, historicamente, ser feito com e através, também, da educação. (FREIRE, 2001, p. 102).
Neste aspecto, Freire argumenta contra a concepção bancária de educação. Uma educação que não promove a emancipação, ao contrário, reduz o ser humano ao “autômato”, que constitui a negação de sua ontológica vocação de ser mais. Uma concepção de homem como ente “vazio” a quem o mundo “encha” de conteúdos, constituído numa consciência particularizada, mecanicistamente compartimentada:
Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio” a “educação” “bancária” mantém e estimula a contradição. (FREIRE, 1987, p. 59).
Freire desenvolve uma concepção dialógica da educação fundamentada numa compreensão problematizadora do ato de conhecer e a intencionalidade de mudar o mundo. Freire propõe uma educação que, eliminada a roupagem alienada e alienante, consista em uma força de transformação, emancipação e libertação humana.(FREIRE, 1987). A sociedade que aí está impõe sua cultura, linguagem, sintaxe, semântica, gostos, sonhos, projetos de classe dominante. Como exemplo, Freire cita a imposição da escola:
É por isso que não há verdadeiro bilingüismo, muito menos multilingüismo, fora da multiculturalidade e não há esta como fenômeno espontâneo, mas criado, produzido politicamente, trabalhado, as duras penas, na história... É a criação histórica que implica decisão, vontade política, mobilização, organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns. Que demanda, portanto, uma certa prática educativa coerente com esses objetivos. Que demanda uma nova ética fundada no respeito às diferenças”. (FREIRE, 1997, p.157).
Desse modo, o projeto de emancipação humana defendido por Freire, contempla a questão do multiculturalismo. O direito e o respeito às diferenças constitui um dos aspectos abordados por Freire, principalmente nos seus últimos trabalhos. Segundo Freire (1997, p.156), refletir sobre a multiculturalidade constitui um tema que demanda uma análise crítica da sua constituição. “A multiculturalidade não se constitui da justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da outra”. Assim, numa sociedade com perspectivas de emancipação multicultural, o desafio consiste em estabelecer uma análise crítica das práticas educativas, com o intuito de não se confundir uma justaposição de culturas com o multiculturalismo.
Portanto, a perspectiva multicultural freireana se expressa enquanto a concretude de um diálogo crítico entre as culturas, potencializando ao mesmo tempo ações que vislumbrem formas mais humanas de convivência e de crescimento individual e coletivo de todos os seres humanos. Refere-se a processos educativos que efetivamente contribuam com a “construção da humanidade do ser humano, de todos os seres humanos em todos os quadrantes do globo” (SOUZA, 2001).
Dessa forma, Freire é claro quando argumenta que não basta apenas garantir o direito a essa diversidade numa sociedade dita democrática. Freire critica o modelo de pós-modernidade “de direita”, que difunde a idéia que foi suprimida as classes sociais, as ideologias, os sonhos e utopias. (FREIRE, 1997, p.198). Nessa perspectiva, tem-se o discurso de que a categoria classe social foi abolida nos estudos sociológicos e educacionais, e de que não existem mais classes sociais, e os trabalhadores estão diluídos em várias frentes: pelo trabalho, pela sobrevivência imediata. Entretanto, reflito que a questão básica ainda é a desigualdade social de classes. E, as outras temáticas em questão nos tempos atuais, tais como, a defesa da natureza, as lutas étnicas, das mulheres, o direito à diferença, demandam também o debate sobre as classes. Ou seja, a forma desigual como os mais diversos grupos sociais têm participado do processo de produção e usufruto dos bens culturais e materiais produzidos pela humanidade:
Num primeiro momento a luta pela unidade da diversidade que é obviamente uma luta política, implica a mobilização e a organização das forças culturais em que o corte de classe não pode ser desprezado, no sentido da ampliação e no do aprofundamento e superação da democracia puramente liberal. É preciso assumirmos a realidade democrática para a qual não basta reconhecer-se, alegremente, que nesta ou naquela sociedade, o homem e a mulher são de tal modo livres que têm o direito de até de morrer de fome ou de não ter escola para seus filhos e filhas ou de não ter casa para morar. O direito, portanto, de morar na rua, o de não ter velhice amparada, o de simplesmente não ser. (FREIRE, 1997, p. 157). (Grifos nossos)Portanto, o multiculturalismo não constitui simplesmente a afirmação do direito de ser diferente, quando esta diferença está sendo caracterizada pela desigualdade social. Pois o simples direito à diferença entre as multiplicidades de culturas é insuficiente para se dizer que estamos numa sociedade multicultural. Nesse sentido, a pedagogia freireana tem cada vez mais se colocado radicalmente “a favor da transformação das condições e situações de vida e de existência das maiorias desapossadas de quaisquer poderes econômico, social e político”. (SOUZA, 2001, p.119). Diante desse debate Freire faz uma distinção entre a pós-modernidade progressista e a conservadora, neoliberal, combatendo essa última, e reafirmando a opção pelos excluídos. Nesse contexto, Freire assume-se enquanto um pós-moderno crítico:
Para mim, a prática educativa progressistamente pós-moderna é nela que sempre me inscrevi, desde que vim à tona, timidamente, nos anos 50 – é a que se funda no respeito democrático ao educador como um dos sujeitos do processo, é a que tem no ato de ensinar – aprender um momento curioso e criador em que os educadores reconhecem e refazem conhecimentos antes sabidos e os educandos se apropriam, produzem o ainda não sabido. É a que desoculta verdades em lugar de escondê-las. (FREIRE, 2001, p.159).
Freire identifica assim como Boaventura, que há diferentes culturas ou traços culturais de uma mesma cultura nacional, embora se encontrem justapostas ou em situações de dominação e subalternidades. O desafio consiste, portanto, transcender essa diversidade cultural, por meio do diálogo crítico entre as culturas e das culturas (interculturalidade), numa multiculturalidade.(SOUZA, 2001, p.123).
Nessa perspectiva, a multiculturalidade assim como a interculturalidade não são situações espontâneas, são projetos, “ainda desejos, utopias, metas de alguns poucos grupos sociais, especialmente dos novos movimentos sociais”. Assim, a multiculturalidade se efetivará como conseqüência de uma construção desejada política, cultural e historicamente. Portanto, esta utopia, sua esperança, poderá tornar-se uma nova configuração da convivência humana (em suas dimensões econômica, política e gnosiológica), nos novos cenários mundiais. (SOUZA, 2001, p.126). A experiência do Fórum Social Mundial tem oportunizado esse movimento global de expressão, partilha e solidariedade entre diversos povos, culturas.

EMANCIPAÇÃO E MULTICULTURALISMO EM BOAVENTURA DOS SANTOS

Boaventura dos Santos aporta uma nova concepção de emancipação. Esta perspectiva nasce do aprofundando da teoria democrática, que contempla uma nova equação entre subjetividade, cidadania e emancipação. Segundo este pensador, no contexto atual, o socialismo encontra-se liberto da caricatura grotesca do “socialismo real” e torna-se, portanto disponível para voltar a ser a utopia de uma sociedade mais justa e de uma vida melhor para todos.
Santos (2003), coordenou um projeto de pesquisa de âmbito internacional intitulado: Reinventar a emancipação social: Para novos manifestos. O ponto central desse projeto é que a atuação e a concepção que estearam e deram credibilidade aos ideais modernos de emancipação social encontrar-se no momento atual fortemente questionado pelo fenômeno da globalização, que embora não seja novo, tem adquirido nas duas últimas décadas uma amplitude tal que tem redefinido os contextos, as configurações, os objetivos, os meios e as subjetividades das lutas sociais e políticas. A idéia, portanto desse projeto é que esta forma de globalização, embora hegemônica, não é a única e de fato tem sido progressivamente confrontada por uma outra forma de globalização: “alternativa”, “contra-hegemônica”, instituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, através de “vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais justo e pacífico que acreditam possível e a que sentem ter direito” (SANTOS, 2003, p.14):
A emancipação não é mais do que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político das processualidades das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social. (SANTOS, 2003, p. 277).
Essa perspectiva de emancipação emergiu no I Fórum Social Mundial em Porto Alegre e se fortalece até os dias atuais. “É nesta globalização alternativa e no seu embate com a globalização neoliberal que estão sendo criados os novos caminhos da emancipação social”. De acordo com Santos (2003, p.35), esta visão alternativa de globalização vai se fundamentar no marxismo perante a idéia da importância das articulações internacionais das lutas no contexto do capitalismo globa:
O sucesso das lutas emancipatórias depende das alianças que os seus protagonistas são capazes de forjar. No início do século XXI, essas alianças têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e tem de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de opressão. (SANTOS, NUNES, 2003, p.64).
De acordo com Nunes e Santos (2003), essas lutas têm sido travadas em um contexto histórico, onde se observa a emergência de diferentes lutas e atores coletivos distintos: as mulheres, os ambientalistas, os movimentos anti-racistas. Segundo estes autores, diante das novas configurações do capitalismo globalizado, não é mais possível atribui apenas a um ator coletivo – o “proletariado global”, o papel principal das lutas contra as formas diversas de opressão, exclusão e dominação. Tem-se a emergência de uma diversidade de lutas e sujeitos coletivos. Portanto, “torna-se necessário reconceitualizar a escala espacial dessas lutas, que são travadas nos espaços nacionais, supranacionais e subnacioanis em que opera o capitalismo”. (SANTOS, 2003, p.35).
Desse modo, a globalização hegemônica, ao mesmo tempo em que sucinta novas formas de racismo5, também tem criado condições para a emergência do multiculturalismo. Santos (2003), escreve sobre multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos e cidadanias plurais, enquanto termos que permeiam o debate em torno da tensão entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de distribuição que possibilite a efetivação da igualdade. Essas tenções ocorrem no seio das lutas dos movimentos sociais com perspectivas emancipatórias, contra as reduções eurocêntricas de alguns termos, buscando propor concepções mais inclusivas e ao mesmo tempo, respeitadoras da diferença de concepções e práticas alternativas que buscam a dignidade humana (SANTOS, NUNES, 2003, p.25).
Nesse contexto, Santos e Nunes (2003, p.28), debatem o multiculturalismo enquanto um termo controverso e atravessado por tensões6. A expressão multiculturalismo designa, originalmente, a convivência de formatos culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no âmbito das sociedades “modernas”. Este termo tem sido usado, portanto, para designar as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Desse modo, existem diferentes noções de multiculturalismo, no entanto, nem todas têm um sentido emancipatório. Este tanto pode ser conservador, quanto emancipatório. Segundo estes autores, este termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de cultura. Um dos conceitos dominante refere-se aos caminhos do saber institucionalizado no Ocidente. No entanto, há outras concepções, que reconhecem a existência de uma pluralidade de culturas, “definindo-as como totalidades complexas que se confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de vida baseados em condições materiais e simbólicas” (SANTOS e NUNES, 2003, p.27).

A partir do racismo tem-se a justificativa ideológica para a prática do imperialismo e do colonialismo. Relaciona-se com a ascensão e domínio ocidental e capitalismo no globo. Proclamando a superioridade da cultura e da religião ocidental, justificando as ações de colonização para a civilização dos povos bárbaros e pagãos. Daí o surgimento do termo “ocidentalismo’. Nessa perspectiva, o multiculturalismo assume a perspectiva de luta para combater os legados do racismo e garantir a instituição de uma sociedade mais justa. (GHAI, 2003, p.557).
6 Para aprofundar as críticas que são feitas sobre o conceito multiculturalismo ver Santos e Nunes (2003).
V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005
Destarte, mesmo diante da globalização, é possível se falar em versões emancipatórias do multiculturalismo. Sua relevância consiste no fato de ser a cultura, “na era do capitalismo global, o espaço privilegiado de articulação da reprodução das relações sociais capitalistas e ao mesmo tempo, o do antagonismo a elas”. (SANTOS e NUNES, 2003, p.33). Portanto, para estes autores a relação entre globalização e multiculturalismo é ambígua. Ao mesmo tempo em que a globalização favorece a relação entre as diversas culturas, reforçando os contatos entre os diferentes povos do globo, observa-se a influência homogeneizadora do capitalismo e dos mercados globais sobre estas culturas.
Assim, Santos (2003), defende o multiculturalismo emancipatório, que se baseia no reconhecimento da diferença e no direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além da diferença de vários tipos. No entanto, a igualdade ou a diferença, por si sós, não são aspectos suficientes para uma política emancipatória. O debate sobre os direitos humanos e sua reinvenção como direitos multiculturais, bem como a luta das mulheres, dos povos indígenas, mostram que a afirmação da igualdade com base em pressupostos universalistas, bem como os que determinam as concepções ocidentais, individualistas, dos direitos humanos, leva muitas vezes à descaracterização e negação das identidades, das culturas e das experiências históricas diferenciadas. Portanto:
[...] como compatibilizar a reivindicação de uma diferença enquanto coletivo e, ao mesmo tempo, combater as relações de desigualdade e de opressão que se constituíram acompanhando essas diferenças? Que experiências existem neste campo e o que nos ensinam elas o saber as possibilidades e as dificuldades de construção de novas cidadanias e do multiculturalismo emancipatório? (SANTOS, NUNES, 2003, p.25).
Enfim, o conceito de emancipação (a globalização contra-hegemônica) proposta por Santos, é baseada na construção de cidadanias emancipatórias partir das lutas e iniciativas locais-globais de grupos populares na perspectiva de resistir à opressão, à descaracterização e à exclusão instituídas com o modelo da globalização hegemônica, por intermédio de redes e de coligações mundiais, através de um conjunto de lutas, de diferentes povos, culturas. Assim, as políticas emancipatórias e a invenção de novas cidadanias colocam-se no terreno do conflito entre igualdade e diferença, entre o requisito de reconhecimento e o imperativo da nova distribuição da justiça social. Conforme Santos e Nunes (2003, p.63), “a afirmação da diferença por si só pode servir de justificativa para a discriminação, exclusão ou inferiorização, em nome dos direitos coletivos e de especificidades culturais”. Nesse aspecto, Santos (2003), propõe que para abolir este dilema se faz indispensável defender a igualdade sempre que a diferença originar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade referir-se à descaracterização.
EDUCAÇÃO POPULAR, EMANCIPAÇÃO E MULTICULTURALISMO
A história da educação “popular” emerge da necessidade de contestar o discurso formal da igualdade e do Estado de direito, instituído desde a Revolução Francesa, e tem sido desenvolvida na América Latina, enquanto uma educação aberta aos camponeses, indígenas, mulheres, trabalhadores rurais, moradores de favelas, populações que historicamente tem sido excluídas do usufruto dos bens materiais e culturais produzidos socialmente. Nesse aspecto, a educação popular recusa a neutralidade política e científica e afirma concepções e práticas
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V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22-setembro 2005
emancipatórias da humanidade.
Portanto, a educação popular submerge da compreensão de que a educação é um processo permanente de afirmação da condição do ser de sujeito histórico. Sua proposição fundamental constitui estimular processos que promovam a liberdade, emancipação, autonomia individual e coletiva. Essa perspectiva de educação se fundamenta no pensamento marxista, na concepção de Homem construtor da sua história e da sua cultura, enquanto ser da práxis. De acordo com Melo Neto, a educação caracterizada popular está relacionada:
[...] as lutas políticas com a construção da hegemonia da classe trabalhadora (maiorias), mantendo o seu constituinte permanente, que é a contestação [...] Uma ação é popular quando é capaz de contribuir para a construção de direção política dos setores sociais que estão à margem do fazer político. (MELO NETO, 2003, p.52).
Deste modo, o conceito de popular refere-se a uma ação que contemple os seguintes elementos que se relacionam entre si, no entanto diferenciando-se: tem uma origem nas maiorias (povo), ou a ele esteja encaminhado, tem o político como componente de promoção de hegemonia dos setores majoritários da sociedade, no aspecto metodológico, vislumbra uma prática para o exercício da cidadania crítica e geradora de ação. No tocante a dimensão ética e utópica, fundada em princípios de solidariedade, tolerância e justiça pela busca incessante de alternativas de vida e de felicidade. (MELO NETO, 2003).
Paulo Freire nas suas diversas obras expressa a sua compreensão de educação popular vinculada às ações com os oprimidos. Freire propõe uma metodologia que facilite o processo de emancipação do indivíduo e da sociedade, na esperança de superação da opressão, exploração e desigualdade social. Nessa perspectiva, Freire coloca que uma das primordiais tarefas da educação crítica radical libertadora (popular) “é trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação da realidade injusta”. Assim, a educação popular defendida por Freire é aquela que persegue o sonho da construção de uma sociedade:
[...] reinventando-se sempre com uma nova compreensão do poder, passando por uma nova compreensão da produção, uma sociedade em que a gente tenha gosto de viver, de sonhar, de namorar, de amar, de querer bem. Esta tem que ser uma educação corajosa, curiosa, despertadora da curiosidade, mantenedora da curiosidade. (FREIRE, 2001, p.101).
Freire indaga a favor de quem e contra quem são desenvolvidas as práticas de libertação e emancipação humana no processo educativo. Como é que a prática em educação se articula a outras ações vislumbrando a construção de uma nova sociedade? Nesse aspecto, Freire está atento para os limites da educação como prática de liberdade. Para ele, a educação é modelada pela sociedade segundo os interesses dos que detêm o poder, e sozinha não vai instituir uma sociedade emancipada. Portanto, Freire enfatiza que embora a educação não seja a “alavanca da transformação social", a transformação em si, não obstante, é um evento educacional:
Sei que o ensino não é a alavanca para a mudança ou a transformação da sociedade, mas sei que a transformação social é feita de muitas tarefas pequenas e grandes, grandiosas e humildes! Estou incumbido de uma dessas tarefas. Sou um humilde
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agente da tarefa global de transformação. Muito bem, descubro isso, proclamo isso, verbalizo minha opção. (FREIRE, 2001, p.60).
No contexto atual, o desafio da educação popular é estimular e possibilitar, nas circunstâncias mais diferentes, a capacidade de intervenção e transformação do mundo na perspectiva da emancipação humana contemplando a diversidade cultural. Nesse sentido, Freire (2000), destaca a experiência tanto dos quilombos quanto dos camponeses das Ligas e os sem-terra de hoje, o protagonismo histórico desses sujeitos sociais:
[...] anteontem, ontem e agora sonharam sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história como “façanha da liberdade”... Se os sem-terra tivessem acreditado na “morte da história”, da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficácia dos testemunhos de amor à liberdade; se tivessem acreditado que a crítica ao fatalismo neoliberal é a expressão de um “neobobismo” que nada constrói; se tivessem acreditado na despolitização da política, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje é “pouca conversa, menos política e só resultados”, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido das ocupações e voltado para suas casas, mas para a negação de si mesmos, mais uma vez a reforma agrária seria arquivada. (FREIRE, 2000, p. 61).
Dessa forma, Freire desenvolve uma discussão centrada na educação libertadora enquanto educação democrática, desveladora, desafiadora, um ato crítico do conhecimento, da leitura da realidade, da compreensão de como funciona a sociedade, a escola, como também, os processos educativos que se dão no interior dos movimentos sociais e das práticas em educação popular. Em uma de suas últimas obras: Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1998), Freire apresenta diversos saberes imprescindíveis à ação educativa. Destaco dois saberes abordados por Freire fundamentais na constituição de uma educação popular emancipatória: “é o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo” (FREIRE, 1998, p. 85). Outro saber é o de que, “como experiência designadamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo”. (FREIRE, 1998, p.110).
Assim, diante dessas reflexões sobre as concepções de educação popular, observa-se que os projetos em educação popular na atualidade precisam buscar uma saída teórico-prática que responda aos desafios e as possibilidades postas pelas novas configurações humano-sociais:
Precisam tornar-se projetos atrelados à busca de realizações de novas relações sociais, pautadas em outros fundamentos. Podem estar voltadas à construção de um novo estilo de vida...Elas parecem ter significado à medida que sejam conduzidas a processos que mantenham o humano como centro dessas realizações e o trabalho impulsionador de sua emancipação, assegurando a existência da própria vida humana resultante de sua intervenção na natureza (MELO NETO, 2004, p.85).
Conforme Souza (2001, p.127), o modelo de globalização que está aí, tem provocado diversas “transculturações”, especialmente, ao longo dos últimos 50 anos. No entanto, não tem provocado uma unidade na diversidade de culturas, apenas, possibilitado uma diversidade cultural ou pluriculturalidade que tende, predominantemente, à fragmentação cultural. Nesse sentido, diversos movimentos sociais têm denunciado permanentemente essa problemática. Como exemplo têm-se os protestos dos vários movimentos sociais, efetivados durante diferentes encontros de âmbito internacional “dos donos do mundo” (Seatle, Danos, Gênova).
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Por outro lado, há também as ações propositivas do Fórum Mundial Social, cujo mote central é “Um outro mundo é possível”.
Nessa perspectiva, o multiculturalismo pode ser uma alternativa de resistência diante das transculturações provocadas pelos processos atuais de globalização hegemônica (Santos, 2003), marcada por uma nova sociabilidade humana, diante da diversidade cultural, vislumbrando o diálogo, o respeito, o compartilhar dessas diferenças. Portanto, nesse contexto, a educação popular encontra-se desafiada por outros papéis e novas demandas:
[...] não apenas conceituais, mas procedimentais e organizativas, sobretudo em termos de seus conteúdos e práticas pedagógicas. Se deseja que os processos educativos potencializem, a partir da diversidade cultural, o crescimento humano integral de todo o ser humano e de todos os seres humanos da Terra, no respeito, promoção, proteção e desenvolvimento do meio ambiente natural e cultural. (SOUZA, 2001, p. 122).
Vejo a identidade entre Freire e Boaventura quando estes propõem o respeito às diferenças e o diálogo entre as culturas como processo de emancipação humana. Desse modo, a educação, os movimentos sociais, constitui o “lócus” privilegiado do aprendizado permanente desse processo. Nessa perspectiva, o multiculturalismo constitui um diálogo horizontal entre as pessoas, as culturas, os povos, os territórios, as nações, os estados. Conforme Santos (2001, p.560), o multiculturalismo emancipatório e as ações alternativas de justiça social se opõem à diferenciação desigual da identidade, à dominação. Nesse sentido, observa-se o potencial emancipatório dos direitos humanos, incluindo a formação de redes baseadas nos direitos humanos e iniciativas locais, assim como a importância dos direitos individuais e coletivos, o pluralismo e o respeito às diversidades étnicas, sociais e culturais.
DECLARAÇÕES “FINAIS”
O projeto neoliberal e globalizado que aí está, tem difundindo um discurso fatalista, conservador e alienatório sobre os caminhos e as perspectivas da humanidade. Nesse aspecto, sou cúmplice de Freire (2000), quando declara que o discurso da impossibilidade de mudar o mundo é o discurso de quem, por diferentes razões, aceitou a acomodação, inclusive por lucrar com ela. Freire sublinha a necessidade do aprendizado constante da “leitura do mundo”, exigindo fundamentalmente a compreensão crítica da realidade, que envolve, de um lado, sua denúncia, de outro, o anúncio do que ainda existe, mas poderá existir: uma sociedade emancipada.
Portanto, após a feitura desse texto, muitas reflexões permanecem em aberto. Emancipação em que nível? Como conduzir um projeto de emancipação humana geral em um globo cada vez mais apartado por políticas neoliberais e excludentes? Como conduzir uma prática emancipatória em um contexto cada vez mais opressor, individualista, cujas leis maiores estão sendo as do mercado, a da luta pela sobrevivência imediata? A emancipação humana “é um sonho possível ou não? Se é menos possível, trata-se, para nós, de saber como torná-lo mais possível” (FREIRE, 2000).
Conforme penso, a educação para a emancipação não é tão fácil de ser instituída, pois a
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educação por si só não é fundamentalmente um fator de emancipação. Nessa perspectiva, Freire, Adorno, Boaventura... nos convidam a pensar a sociedade e a educação em seu devir, vislumbrando fixar alternativas históricas tendo como base uma educação para a emancipação humana, enquanto um processo instituinte ao longo da história da humanidade. Nesse contexto, compreendo o conceito de emancipação enquanto “uma categoria dinâmica, como um vir-a-ser e não um ser”. (ADORNO, 2003).
Portanto, dialogar sobre a emancipação humana no âmbito das práticas em educação popular constitui uma utopia, um que fazer político, pedagógico, social, cultural, humano, ético, construído ao mesmo tempo no cotidiano e na história. Uma vez que, no âmbito da sociedade capitalista ela será sempre incompleta, um processo em construção, pois os obstáculos estruturais emperram sua realização efetiva. Desse modo, a consolidação da emancipação passa pelas transformações profundas no âmbito das relações sociais de produção, assim como nas micro-relações. No entanto, mesmo diante de todos esses limites, ela vem ocorrendo a partir de diferentes formas de luta e manifestações de sujeitos sociais, nos vários lugares, formatos, sentidos, pelos vários povos, culturas, utopias em defesa de um mundo mais justo e fraterno:
O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz. (FREIRE, 1997, p. 99).
Enfim, acredito que através das práticas em educação popular emancipatória, que vêm sendo desenvolvidas pelos diversos setores da sociedade, no âmbito das Organizações Governamentais, das Organizações Não-Governamentais e dos Movimentos Populares, está sendo fundada uma outra sociedade munida de valores, tais como o respeito humano, a liberdade, a solidariedade, a cooperação. “É neste sentido que mulheres e homens interferem no mundo enquanto os outros animais apenas mexem nele. É por isso que não apenas temos história, mas fazemos a história que igualmente nos fazem e que nos torna, portanto históricos”. (FREIRE, 2000, p. 40).
Nessa esperança, o processo de emancipação no âmbito da educação popular busca instaurar progressivamente uma transformação humano-social, através de uma prática que possibilite aos sujeitos sociais a vivência da autonomia, participação na tomada de decisões, produção e usufruto de um conjunto de bens tanto materiais quanto simbólicos, fruto do seu trabalho e do trabalho coletivo. Desse modo, não posso falar em emancipação apenas na perspectiva social, ou econômica, ou política, ou cultural, mas geral que possibilite ao ser humano expressar-se ao máximo na sua capacidade, criatividade, potencialidade, realização da sua humanidade.
Destarte, refletir sobre emancipação humana na educação popular é discorrer sobre projetos, utopias, sonhos de pessoas, sua compreensão cognitiva e afetiva de como vislumbrar, vivenciar práticas para alcançar liberdade e felicidade em sociedades mais solidárias, amorosas e democráticas. Daí a necessidade de trazer à tona o debate sobre o multiculturalismo, o respeito e o diálogo com as diferenças e as potencialidades humanas, considerando que esta sociedade que sonho emancipada deverá contemplar a beleza, os saberes e os fazeres de todos que compõem a história da humanidade.

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REFERÊNCIAS


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