quarta-feira, 12 de maio de 2010

A capoeira a partir da abordagem crítico-superadora em Educação Física escolar.

Processos de ensinar e aprender: teorias, metodologias e práticas.
A capoeira a partir da abordagem crítico-superadora em Educação Física escolar.

NILO SILVA PEREIRA NETTO nilonetto@gmail.com


RESUMO

O presente trabalho apresenta a experiência em andamento no município paranaense de Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, onde se realiza no interior do projeto Contra-turno Escolar da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, a oficina de Capoeira. A oficina vem sendo oferecida a crianças da rede municipal nas séries iniciais do Ensino Fundamental, privilegiando prioritariamente àquelas que se encontram em situação de risco social ou dificuldades diversas de aprendizagem. A realização da Oficina, localizada no contexto histórico e social contemporâneo ao qual estão inseridas a Capoeira, a Educação e conseqüentemente a Educação Física da escola Pública, apontou para a necessidade de primeiramente se realizar algumas reflexões, que sinalizassem articulações fundamentais para a devida organização da abordagem no projeto Contra-Turno Escolar. Dessa forma, no primeiro momento do texto, articulamos as relações entre o Projeto Contra-turno Escolar, a prática corporal Capoeira e a Educação Física Escolar, destacando determinada caracterização da capoeira e suas possíveis amarras a uma concepção de Educação Física Escolar que atendesse aos interesses da Escola Pública. Em seguida discutimos, a partir dos pressupostos adotados, as formas de trabalho construídas, onde o predomínio da ludicidade encontra dupla justificação e a concepção tríade da capoeira é explicitada. Destaca-se ainda o elenco de categorias gerais e específicas que balizam o trabalho na Oficina, dando origem ao Programa Pedagógico, do qual partem, mais especificamente, as aulas. Considera-se por fim, os limites e as possibilidades postas no decorrer das experiências ocorridas, buscando com a socialização destas, explicitar a abordagem crítico-superadora em Educação Física, como fundamental na afirmação dos interesses das classes populares, tão aflorados na dimensão histórica da capoeira.



1. Considerações introdutórias

O presente trabalho apresenta a experiência em andamento no município paranaense de Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, onde se realiza no interior do projeto Contra-turno Escolar da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, a oficina de Capoeira. A oficina vem sendo oferecida a crianças matriculadas na rede municipal de Ensino, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, privilegiando prioritariamente àquelas que se encontram em situação de risco social ou dificuldades diversas de aprendizagem. São atendidas por essa oficina aproximadamente 4202 crianças, num total de doze turmas, que possuem um encontro semanal para tal realização. Ocorrendo em duas escolas na região urbana do município e em uma no interior, a oficina possui vigência no presente ano, acompanhando o período letivo escolar normal, atendendo os educandos e educandas no contra-turno.
De forma geral, a Oficina de Capoeira objetiva: 1) Socializar aos educandos e educandas os conhecimentos ao entorno da prática corporal da Capoeira. Buscar com estes: conhecer, vivenciar, compreender suas dimensões históricas, sociais e culturais, ressignificá-la, transformá-la, praticá-la e repraticá-la dotada desses significados históricos. 2) Desenvolver segundo certos pressupostos, que serão enunciados à frente, a consciência crítica, promovendo o acesso às possibilidades reflexivas, contidas na vivência da pluralidade da Capoeira. 3) Desenvolver, segundo as necessidades expostas pela Secretaria de Educação e Cultura do Município: o ritmo e a musicalização, a coordenação motora, o equilíbrio, as valências físicas, a expressão corporal, a espontaneidade de movimentos, a canalização positiva da agressividade, o respeito mútuo, o sentimento de coletividade e o reforço da identidade cultural brasileira.
Destarte, vimos emergir a necessidade de uma contextualização mais aprofundada sobre as questões em diálogo na realização da Oficina. Localizar num contexto histórico e social contemporâneo ao qual estão inseridas a Capoeira, a Educação e conseqüentemente a Educação Física da escola Pública, tornou-se o primeiro passo a seguir.
2. O contexto da capoeira e a Educação Física
O presente trecho pretende fundamentar as relações entre o Projeto Contra-turno Escolar, a prática corporal Capoeira e a Educação Física Escolar. Para tal, destacar-se-á certa caracterização da Capoeira e suas possíveis amarras a uma concepção de Educação Física Escolar que atenda aos interesses da Escola Pública, representada nesse contexto pelo Projeto Contra-Turno Escolar.
2.1. A caracterização histórico-social da capoeira
O nascimento da capoeira se dá num momento específico. No Brasil em colonização, negros africanos eram arrancados de suas terras, transportados em navios negreiros em condições desumanas. Os que sobreviviam eram levados ao comércio, como mercadoria qualquer. Adiante,
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algumas condições eram impostas: o trabalho forçado, por longas horas e dias freqüentes debaixo das chicotadas dos senhores.
Mas a situação de terror não foi aceita passivamente e as realizações de fugas foram o principal ponto da organização daqueles trabalhadores. Enfrentar a dura opressão dos chicotes, das mutilações e dos castigos públicos usando seus próprios corpos e sua organização estaria longe de ser uma tarefa tranqüila, mas era a opção restante. Com movimentos rápidos e inesperados de atacar e defender-se, a luta do mato ralo (capoeira) vai surgindo em defesa de seu povo. Compondo a organização dos negros para suas fugas e posterior resistência nos quilombos, a capoeira se caracterizava como importante elemento para a reconstituição da identidade do negro, frente à sua nova realidade1.
Segundo André da Silva Mello (2002), a capoeira, enquanto manifestação cultural afrobrasileira, criada pelos escravos como forma de luta contra a opressão, atuou como resistência nos planos físico e cultural. Salvaguardando no seu universo simbólico e motor alguns elementos que a tornam peculiar, como: a musicalidade, a religiosidade, movimentos acrobáticos, entre outros.
Concordando com Mello, podemos afirmar que a capoeira é uma manifestação plural, na qual o lúdico e o combativo, interpenetram-se, caracterizando-a como jogo, luta e dança. Ainda nesse debate, José Luiz Cirqueira Falcão (1998), compreende a capoeira como um misto de jogo, arte, luta, dança e folclore – que vem sistematicamente adquirindo contornos desportivos – sendo esta, uma construção social que extrapola acomodações em concepções fechadas.
É nesse sentido, que entendemos a capoeira como tema da Cultura Corporal humana, historicamente construída, originada em meio a um movimento de organização dos trabalhadores e trabalhadoras para a resistência física e cultural à opressão concreta daquele dado momento.
Desde seus primeiros passos até os dias de hoje, a capoeira atravessou momentos diversos como por exemplo sua criminalização e proibição, sua posterior legalização – que veio acompanhada de uma nova roupagem, acadêmica e esportivizada, adequando-se, cooptando-se à perspectiva minimamente permissiva para a classe burguesa – , entre outras especificidades. Atualmente, tomando a discussão da adaptação da luta negra aos valores branco-burgueses e a continuidade histórica da resistência negra-trabalhadora, vemos como crescente a esportivização da
1 Destaca-se fundamentalmente, a concepção defendida aqui, que aponta para hipótese histórica da capoeira ter sido criada em solo brasileiro, por negros escravos africanos, que ao adentrar ao território, depararam-se com a anterior escravização de nativos – chamados índios – aos quais deve-se, segundo Gladson de Oliveira Silva (1993), alguns ritos, movimentos e símbolos contidos na capoeira.
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capoeira, como continuidade desse processo de transformação a que tem sofrido, adquirindo cada vez mais a forma de mercadoria2, no interior do modo de produção capitalista.
Nesse sentido, identificamos a problemática da forma mercadoria-esportivizada da capoeira, ou mesmo afirmamos a impossibilidade de conceber a capoeira fragmentadamente, na formatação com a qual o esporte hegemônico opera. Reivindica-se nesse contexto, a capoeira como manifestação da Cultura Corporal, que enquanto produto da ação humana histórica deve ser sistematicamente socializado, permitindo o acesso universalizado, no contraponto da mercadorização da capoeira, que a encaminha para reafirmação do processo histórico capitalista vigente.
2.2. A capoeira e a educação física no contexto da escola pública
Dada a caracterização da capoeira, seu decorrer histórico e sua atualidade, faz-se necessário encontrar os elos de ligação entre a concepção apresentada anteriormente e as perspectivas teóricometodológicas da Educação Física Escolar. Tal perspectiva, movimenta-se ao encontro dos interesses populares manifestados historicamente, através de determinada metodologia de ensino da Educação Física, qual seja a metodologia Crítico-Superadora.
Propondo forte crítica social, a Metodologia Crítico-Superadora visa a formação de sujeitos críticos, autônomos, conscientes de sua condição histórica e que se compreendam enquanto interventores na construção de sua própria realidade. Essa perspectiva da Educação Física aborda como objeto de trato da reflexão pedagógica o conhecimento de uma área denominada Cultura Corporal, configurada com temas ou formas de atividades, particularmente corporais, como o jogo,
o esporte, a ginástica, a dança e a capoeira, que constituirão seu conteúdo. A capoeira, tomada como manifestação da Cultura Corporal, relaciona-se enquanto conteúdo da Educação Física de forma orgânica nessa perspectiva. Dessa forma, podemos justificar a abordagem da capoeira – e da Oficina de Capoeira –, segundo uma concepção específica da Educação Física Escolar.
Ressaltamos nesse âmbito, o intento de promover através do trato com os conhecimentos engendrados pela Capoeira, um questionamento da realidade, que seja capaz de “responder
2 Araújo (2007a, 2007b, 2006) tem desenvolvido exemplarmente esse debate a partir da teoria do valor em Marx. Para o autor, as transformações da capoeira – da marginalidade à aceitação social – estão essencialmente ligadas a sua adaptação à forma mercadoria, o que não seria possível sem que o valor de uso da capoeira saísse do horizonte do produtor e fosse socialmente reconhecido pelos consumidores, nas décadas de 1930 e 1940.
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determinados interesses de classe” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 25)3 e que através da construção da crítica social, persista-se na busca da emancipação das classes oprimidas.
Tem fundamental importância para essa perspectiva, o desenvolvimento de uma noção de historicidade da cultura corporal em que o conhecimento deve ser tratado de forma a ser traçado desde sua origem e cerne, possibilitando ao educando e educanda tal visão, permitindo-lhes compreender-se enquanto sujeitos construtores da história.
A expectativa da Educação Física escolar que tem como objetivo a reflexão sobre a cultura corporal, contribui para a afirmação dos interesses de classe das camadas populares, na medida em que desenvolve uma reflexão pedagógica sobre valores como solidariedade substituindo individualismo, cooperação confrontando a disputa, distribuição em confronto com a apropriação, sobretudo enfatizando a liberdade de expressão dos movimentos – a emancipação – negando a dominação e submissão do homem pelo homem (idem, p. 46).
Nesse caso, temos o conhecimento que é tratado metodologicamente de forma que se favoreça a compreensão “dos princípios da lógica dialética materialista: totalidade, movimento, mudança qualitativa e contradição. É organizado de modo a ser compreendido como provisório, produzido historicamente e de forma espiralada vai ampliando a referencia do pensamento” (p. 41) de alunos e alunas.
Caracteriza-se nesse escopo, segundo os pressupostos da Metodologia Crítico-Superadora, a reflexão pedagógica em algumas especificidades, quais sejam: 1) Diagnóstica, pois remete à leitura e constatação de dados da realidade, esses carecem de interpretação. Para tal, faz-se necessária a emissão de um juízo valorativo, que dependerá da perspectiva de classe de quem o faz, disso, temos que essa reflexão é 2) Judicativa, pois julga os dados a partir de uma ética que representa interesses de determinada classe social. 3) Teleológica, porque determina um ponto a ser alcançado, busca uma direção. Direção essa, que pode ser conservadora ou transformadora, dependendo da perspectiva de classe.
No interior dessa especificidade, a estratégia de ação metodológica encontra consonância àquela apontada pela pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 1983 e 1991). Esta consiste nos seguintes passos metodológicos: 1) prática social, que traz o conhecimento do senso comum para então, problematizá-los; 2) problematização, que detecta as questões com necessidade de resolução
3 Obra elaborada por um coletivo de autores e autoras da Educação Física que comumente tem sido citada e aludida nessa forma. Carmen Lucia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Elizabeth Varjal, Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht estruturam esse coletivo. A obra é a referência mais importante para o campo da Pedagogia Crítico-Superadora em Educação Física.
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na prática social; 3) instrumentalização, que trata de se apropriar de instrumentos teórico-práticos necessários para uma contraposição dialogada com as questões do senso comum; 4) catarse, momento da expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social; e 5) retorno a prática social, o ponto de chegada, compreendida nesse momento de forma diferenciada.
Salienta-se oportunamente, que tais passos metodológicos são constituintes de uma concepção educacional definida, que baliza de forma geral os trabalhos na oficina, não se caracterizando como momentos estanques separados aula-a-aula.
3. Encaminhamentos e formas de trabalho na trilha dos fundamentos da capoeira
Conforme fundamentação desenvolvida até o presente momento, a necessidade de se trabalhar a Capoeira nas suas múltiplas expressões é nítida. Do mesmo modo que a opção teórico-metodológica pela perspectiva Crítico-Superadora da Educação Física Escolar está fundamentada. Assim, o seguinte trecho – partindo desses pressupostos – pretende indicar e fundamentar as formas de trabalho construídas com os alunos e alunas no trabalho da Oficina, na trilha dos fundamentos da capoeira.
A preponderância de atividades lúdicas no trabalho com a Capoeira junto às crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental no interior da Oficina aponta duplamente para sua justificação. Por um lado, a ludicidade atende diretamente à necessidade histórica da fase da vida a qual atravessam a maior parte das crianças desse ciclo de ensino, assim como atua como ferramenta pedagógica que media a assimilação de conceitos sociais.
A ludicidade nesse espaço, enquanto pressuposto do jogo e da brincadeira, torna-se imprescindível nas atividades desenvolvidas com as crianças. Aponta-nos Vygotsky (2000): Na brincadeira a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário: no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade [...] O brinquedo fornece a estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência. A ação na esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação de intenções voluntárias e a formação dos planos de vida real e motivações volitivas, tudo aparece no brinquedo (p.117).
O outro lado é descrito por Falcão (op. cit.), quando o autor descreve que a ludicidade constitui-se num dos elementos fundamentais da capoeira, constatação que remonta inclusive sua história, o seu surgimento. A dimensão múltipla da Capoeira demonstra-se nessa constatação quando os relatos historiográficos afirmam que a luta, que ora se caracterizava como única possibilidade de
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fuga e conseqüente sobrevivência, era observada por vezes, sendo praticada enquanto jogo, em momentos de não-trabalho, como uma brincadeira, como uma dança, ou ainda como a possibilidade de um treinamento para futuros combates. Nessa época, diante das desumanas condições em que viviam os escravos, mesmo os folguedos, diversões e cantos, eram reivindicados.
Tal justificativa contrapõe-se a uma prática comumente utilizada por perspectivas que adotam o lúdico enquanto estratégia de trabalho, muitas vezes em contraposição às repetições mecanicistas de movimentos. O fato é que, fundamentalmente, parte dessas perspectivas, utilizam jogos e brincadeiras lúdicas, enquanto ferramentas diferenciadas para o mesmo fim: a repetição de movimentos. O que ainda as situa numa concepção nebulosa da infância e fragmentária da pluralidade da capoeira enquanto processo educacional.
Segundo Falcão (2004) é imperativo contemplar o lúdico e a interatividade da capoeira, assim como não dissociar dessa concepção a tríade jogo-luta-dança. Na Capoeira, o jogo, a luta e a dança se interpenetram. Ao mesmo tempo, é luta, é dança e é jogo, muito embora o indivíduo praticante seja comumente definido como jogador e não lutador ou dançarino. O componente jogo, inserido na capoeira, acaba por redimensionar o próprio conceito dessa manifestação cultural, que vista sob esta ótica “consegue atender a necessidade de fantasia, utopia, justiça e estética e, ainda, desperta o gosto pelo inesperado, pelo imprevisível” (FALCÃO, 1998, p. 67). A dança se expressa no movimentar do corpo, no gingado centrado nos quadris, comandados pelo toque do berimbau. Na configuração rítmica, os capoeiristas acabam por imprimir coreografias espontâneas, fazendo com que o corpo lute dançando e dance lutando, num local imaginário situado entre o lúdico e o combativo. A luta capoeira é o remonte se suas origens. Observa-se ainda, que “o jogo e a dança contribuem para uma dissimulação do componente luta na prática da capoeira, à medida que não se efetiva um confronto direto, mas uma constante simulação de ataques e defesas, mediada pela ginga, numa ambigüidade onde o jogo, a dança e luta se interpenetram. Através do jogo de capoeira, os corpos negociam, e a ginga significa possibilidade de barganha, atuando no sentido de impedir o conflito” (FALCÃO, op. cit., p. 68).
4. Categorias gerais e específicas de trabalho na trilha dos fundamentos da capoeira
No presente trecho, pretende-se elencar algumas categorias gerais e específicas para o trabalho com a Capoeira Infantil na Oficina. Tais categorias balizam – no âmbito dos pressupostos apresentados – o Cronograma Anual de Trabalho.
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Na forma das categorias gerais, temos a proposta de trabalhar os elementos centrais da capoeira, descritos e debatidos anteriormente, quais sejam: 1) a sua história; 2) a ludicidade inerente à sua origem e à especificidade da infância; 3) e a tríade da capoeira enquanto jogo-luta-dança. Destacamos ainda como categoria geral, o contexto sócio histórico contemporâneo – que é desdobramento do primeiro item citado como categoria geral – que possibilitará: 1) a reflexão sobre mercadorização da capoeira e das práticas corporais no interior da sociedade capitalista e das relações de classe e 2) a valorização do referencial afro-brasileiro na sociedade. Enquanto categoriais específicas, desdobradas no interior dessas mais gerais – valendo-se especialmente das reflexões de Falcão (op.cit.) – encontram-se os movimentos, a musicalidade, a roda da capoeira.
Entre os movimentos, destaca-se prioritariamente a ginga, movimentação básica da capoeira, de onde partem todos os outros movimentos e golpes da capoeira. Caracteriza-se pela oposição entre braços e pernas, em que os pés deslizam para trás, em busca de um equilíbrio dinâmico.
Os golpes, podem ser entendidos como ações de luta, de ataque, de defesa, ou ainda movimentos acrobáticos que podem servir como as duas últimas e são comumente denominados floreios. Na Capoeira Infantil, esses movimentos atendem ao caráter lúdico e na maioria deles, procede-se algumas adaptações às condições das crianças, tanto em relação às limitações corporais, quanto em relação à criatividade e reinvenção realizada durante as aulas, isso na comparação com padrões motores estabelecidos. Algumas ilustrações dessas adaptações podem ser visualizadas em Freitas (2005).
A musicalidade engloba os aspectos dos cânticos, das palmas e da instrumentação, trabalhando com pontos criativos em relação à construção e reconstrução musical. A capoeira é conhecida como única luta em que seus lutadores praticam ao som de cânticos executados pelos demais componentes. O canto na capoeira fornece o ritual, a história, o ritmo e a animação para o jogo da capoeira. Ao se repetir os cantos conhecidos e construir novos, mantém-se as tradições e a memória da capoeira, assim como se promove “um constante repensar dessa mesma história” (VIEIRA, 1995). As palmas acompanham o canto do coral, marcando o ritmo e da mesma forma, animando as práticas. Elas ativam a participação contínua dos integrantes da roda.
O trabalho com os instrumentos para as crianças se dá de duas formas: pelo conhecimento dos instrumentos que participam da música da capoeira, quais são, suas partes, sua sonorização e como se toca, e possíveis adequações rítmicas no contexto da Capoeira. E também, pelo significado de cada instrumento, seu histórico no interior da Capoeira e seu papel no âmbito da musicalização dos jogos.
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A roda da capoeira é o espaço do encontro dos capoeiristas para jogar, cantar, tocar e assistir, revezando essas ocupações permanentemente. Na roda, a oralidade e a corporalidade interagem constantemente numa rica relação. Na roda de Capoeira, alguns ritos são fundamentais, como o local de entrada no jogo, a importância das palmas e do canto, entre outros. Para as crianças, essas convenções vão sendo explicadas e incorporadas gradativamente, primando pela compreensão da totalidade dos jogos e da segurança do coletivo participante.
5. Considerações finais
Permite-se com os momentos estabelecidos até o momento no trabalho com a oficina, dispor de algumas constatações a serem relatadas. Em relação à prática social e as problematizações surgidas e construídas, especificamente em relação à capoeira temos:
Sua historicização foi brevemente reconhecida, em processos estudados anteriormente em relação à colonização do Brasil. Entretanto, um certo distanciamento na auto-identificação em relação à história das lutas das camadas populares pode ser observada. Um destaque significante nesse sentido, deu-se na constatação da presença na escola e participação na Oficina, de crianças pertencentes a comunidades quilombolas remanescentes. Estas, nas problematizações, não demonstraram familiaridade acentuada em relação a tal historicização da resistência negra à escravidão.
A ludicidade é bastante presente, no entanto, a percepção trialógica da capoeira enquanto jogoluta-dança foi constatada fundamentalmente fragmentada nas participações. Breves movimentos foram observados, adaptados de outros espaços ou não. Ainda, mais especificamente sobre os floreios e saltos, esses foram com certa freqüência solicitados numa expectativa exibicionista. Sobre a musicalização específica, temos observado pouca familiaridade com seu sentido, com os instrumentos e ritmos. Para além da verificação categorizada da prática social e de suas possibilidades de problematização, se fez presente uma preocupação ressaltada por parte de familiares em relação à violência manifesta aparentemente na capoeira.
Consideramos ainda importante, ressaltar nessa leitura, que os dados supramencionados são compreendidos no interior de um todo socialmente estruturado, que é síntese de múltiplas determinações. Conforme nos aponta Hajime Nozaki (2004), a apreensão da realidade – segundo Karel Kosik – enfatiza que dialeticamente devemos nos opor a cisão da realidade em sua totalidade, pois, nos localizamos em determinado pensamento crítico, que se propõe conhecer a coisa em si,
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ultrapassando a pseudoconcreticidade. Segundo o autor, tal pensamento deriva das idéias de Marx, no qual teremos que a realidade não é caótica, desordenada ou fragmentada, incompreensível em sua totalidade e sim possui uma dimensão concreta, que deve ser apreendida. No presente encaminhamento metodológico, beneficia-se do movimento do real, que traz a representação caótica da realidade, inicialmente, para o plano do concreto idealizado e, a partir de categorias históricas de produção material, chega-se, finalmente, à totalidade concreta, síntese de muitas determinações e unidade do diverso. E nessa articulação é que procuramos pautar as discussões sobre a capoeira na sociedade de classes, a relação com a educação física e a infância.
Outra consideração fundamental a se tecer, é em relação à situação especifica, no interior da classe trabalhadora empobrecida, sujeita a toda uma sorte de mazelas e desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais, a infância conseqüentemente empobrecida, compreendida na Oficina do Projeto Contra-turno Escolar. Tal retrato é apreendido na participação de algumas crianças pertencentes ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil4 das atividades da oficina. As crianças brasileiras dessa classe social, vivem cotidianamente as agruras da desnutrição, miséria, exploração do trabalho infantil e outros diversos constrangimentos impostos pelo modo de organizar a vida na sociedade contemporânea.
Nesses termos, a expressão empobrecimento adquire sentido, movimento e uma relação de causalidade de suma importância, uma vez que essas crianças não são pobres por qualquer acaso, e sim por ingerências sociais configuradas na atualidade com acentuada perversidade. Como nos afirma Maurício Roberto da Silva (2005)5, no capitalismo contemporâneo, ao se “destruir os postos de trabalho dos pais jogando-os todos no desemprego e subemprego, obriga estas a assumirem o papel precoce de provedoras da renda familiar pela exploração do trabalho infantil urbano-rural, das mendicâncias e, às vezes, da prostituição infantil” (p. 43). Complementa Silva (op.cit.) que ao tratarmos desse tipo de infância, temos de ter em vista que os direitos dessas crianças foram e continuam sendo, ao longo da história, cotidianamente violados e negados. Essas crianças e jovens estão sendo obrigados a abdicar do tempo da escolarização e da construção de sua cultura de ludicidade, trabalhando precocemente. Dessa forma, a cultura corporal é tecida à luz de situações
4 O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil é um programa do Governo Federal que pretende retirar da situação de trabalho perigoso, penoso, insalubre e degradante as crianças e jovens do Brasil. No município de Campo Largo, o programa atende crianças na área urbana e no interior. No interior, o programa é centralizado nas escolas e algumas crianças participam da Oficina de Capoeira.
5 Em nossas reflexões a respeito da infância empobrecida no Brasil, elencamos como principal interlocutor Maurício Roberto da Silva, importante pensador e pesquisador da temática no campo da Educação Física, especialmente seus textos dos anos de 2005, 2000 e 1997.
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constrangedoras que acarretam perda da identidade infanto-juvenil, envelhecimento precoce, acúmulo de responsabilidades, além de marcas visíveis e invisíveis deixadas nos seus corpos e nas suas subjetividades.
Desse quadro inicial, explicitamos então, a veemência da abordagem crítico-superadora em Educação Física, como fundamental na afirmação dos interesses das classes populares, tão aflorados na dimensão histórica da capoeira.
A visão de historicidade [fundamental para essa perspectiva de Educação Física] possibilita uma outra lógica para o trato com os conhecimentos da cultura corporal, pois permite compreender os elementos, neste caso, os elementos da capoeira, como fruto da ação humana, na relação com o meio que o rodeia, entendendo-os enquanto sujeitos históricos e sociais, capazes de interferir, tanto no plano individual, quanto no plano social, caracterizando o conhecimento humano como produto da sua ação (ARAÚJO, 2007).
Dessa forma, instrumentalizar os momentos seguintes, na busca por ressignificar criticamente nessa concepção as práticas a partir de sua problematização, será função vigente e assim, caminhar para construção de conhecimentos historicizados, para a identificação, localização e conscientização de pertencimento à classe trabalhadora, a qual ergueu a capoeira e a manteve acesa. Buscar ainda, no interior dessa contextualização, a compreensão da imbricação eminente entre a luta, a dança e o jogo na capoeira, assim como de seus desdobramentos na ludicidade, movimentação e musicalidade.
Considera-se por fim que, entre limites e possibilidades postas no decorrer dessas experiências, a socialização destas explicita a abordagem crítico-superador
a em Educação Física como central na produção de problematizações e instrumentalizações sobre a realidade, esses intencionados em “responder determinados interesses de classe” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 25), imprimindo ainda “um sentido social estruturado, apontando relações destes fenômenos com os movimentos sociais históricos das classes em antagonismo” (NOZAKI, 2000).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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