segunda-feira, 19 de julho de 2010

Eros e Educação

No final do maravilhoso texto “Educação: socialização e individualizaçã o” (1), o filósofo americano Richard Rorty faz um elogio à célebre atividade erótica de Sócrates como o que poderiria ser tomado como a atividade pedagógica par excellence. Rorty sugere claramente que aquilo que o professor pode fazer de melhor – especialmente na universidade – é se deixar inserir no jogo de sedução que se estabelece entre alunos e mestres. Para ele, a arte de cortejar se estabelece com facilidade no ambiente universitário, quando este é livre e estimulante, e então os estudantes podem se apaixonar tanto por autores vivos (os professores) quanto mortos (uma boa parte dos autores que habitam a biblioteca), encontrando o leito fecundo de uma educação liberal.

Rorty elogia a universidade americana liberal quando ela é administrada por professores que, entendendo isso, mantém tais recantos como os centros em que a liberdade americana dá o seu melhor.

Todavia, não é fácil para os administradores escolares, mesmo quando se trata de professores competentes, entenderem essa articulação entre liberdade e erotismo e, mais que isso, a própria perambulação de Eros pela universidade. O senso comum acadêmico pode não ser ignorante, mas é estreitamente moderno, tem dificuldade de vislumbrar do que se está falando quando evocamos eros, na tradição filosófica. Os serviços que envolvem o erotismo estão na base da filosofia da educação de Rorty. Esta filosofia nada é senão a busca, ainda que extemporânea, de continuidade da atividade socrática. O centro do problema, então, está na própria concepção que nós modernos temos de eros.

Há uma enorme variação entre os gregos antigos do que pode e não pode estar sob o comando de eros ou até do que é eros. E mesmo quando tratamos somente de Sócrates, o assunto não é fácil. Mas, se optamos por um específico recorte, ao menos um lado da atividade de eros enquanto envolvida na atividade pedagógica pode ganhar alguma luz. C. D. Reeves (2) traz uma boa pista ao apontar para o Lysis, de Platão.

Ao contrário de nós, cristãos e kantianos, isto é, modernos, os gregos antigos não concebem o amor como tendo uma faceta importante recheada de elementos de altruísmo. Para eles, é corriqueiro que o amor solicite a troca de favores em um sentido que nós, modernos, ficamos tentados a qualificar como egoísmo e, talvez, até como falso amor. No entanto, segundo Platão, nem todo grego sabe lidar com essa troca de favores de modo eficiente. Sócrates é o mestre dessa arte. No Lysis, Sócrates anuncia isso. Ainda que possa até dizer que é ignorante em muitas coisas, sabendo apenas que não sabe, Sócrates afirma claramente que há algo que ele sabe como ninguém, a arte do amor [ta erôtika]. Platão pratica um jogo de palavras proposital, que não deve ser desprezado: eros significa amor e erôtan quer dizer “arte de questionar”. Assim, Platão identifica a arte do amor com a arte de questionar à maneira de Sócrates (no limite, o método do elenkhós, o método da refutação) (3). Aprender o segredo dessa arte do amor é o que Hippothales necessita, e por isso ele vem solicitar ajuda de Sócrates.

Hippothales faz poesias para seu namorado, Lysis. Todavia, quanto mais assim age, menos consegue do jovem Lysis o que deseja. Então, ao consultar Sócrates, ouve do filósofo um recado curto e claro. Sócrates diz para ele que elogios não valem; que ele deve trazer Lysis para o diálogo e, então, no jogo conversacional, mostrar a Lysis que ele nada sabe e, assim, colocá-lo na parede, talvez até humilhá-lo. Não podendo explicar como funciona essa conversação, Sócrates pede a Hippothales que traga Lysis até ele, para que ocorra uma demonstração da conversação necessária, a que será feita em função da sedução do jovem de um modo inescapável. Hippothales traz Lysis ao encontro de Sócrates e este, exercendo sua conhecida forma de argumentação, faz o interlocutor ficar em uma encruzilhada: ou admite que não sabe o que dizia saber ou, então, cai em mais e mais confusão. E o tema da conversa é, apropriadamente, o amor. Lysis se vê tendo de admitir que não sabe o que é o amor.

É claro que, em outros diálogos, principalmente no célebre O banquete, percebemos, então, que o que é feito com o namorado de Hippothales nada é senão colocá-lo no primeiro degrau da “escada do amor à sabedoria” – a escada para a condição de filósofo. Não é o caso, aqui, de discutir os outros degraus, o que deixo para um próximo texto (já colocado em alguns vídeos e apontado em livros meus). Aqui, centro a atenção apenas no primeiro degrau, para que não se perca o foco no assunto. Nesse primeiro degrau o que ocorre é um estágio importante da pederastia, a atividade do homem mais velho sobre o jovem, mostrando ao jovem que ele nada sabe e trazendo-o, então, para a sua guarda. A reação do jovem, uma vez humilhado, é a de descer do seu pedestal, no qual se colocou pelo próprio trunfo inicial, o de ser jovem e belo. O jovem se percebe na condição de efetivamente se dispor à troca com o homem mais velho. Nesse sentido, a arte da sedução do amor é perfeitamente a arte da melhor conversa. Na sugestão de Sócrates, essa melhor conversa é feita no inquérito da refutação, o elenkhós, no qual ele, Sócrates, tornou-se o melhor esgrimista de todos os tempos.

O namoro moderno também é assim, ainda que de forma variada que, no sendo comum, guarda apenas pouco da fecunda pederastia exercida entre pessoas cultas do mundo grego antigo. A sedução entre o professor e o aluno (e no nosso caso, com o professor e a aluna ou vice-versa, uma vez que nossas relações incluem a heterossexualidade) é exatamente o que se passa na demonstração socrática. Em um determinado momento o estudante se põe arrogante, negando carinhos e afagos solicitados direta ou indiretamente pelo professor, físicos ou não; ele se mantém imponente, como o único proprietário de seu corpo belo, de sua juventude, de seu frescor de alma etc. Em um segundo momento, à medida que a conversa entre o professor e o estudante se mostra como o exercício exímio, pelo professor, da arte do amor, da arte do questionamento, o estudante percebe que vai acabar sendo colocado na parede. Quer parar os encontros com o professor, mas já não pode mais. Sente que uma força o empurra para o encontro e, neste, ao diálogo. Na tentativa de responder ao professor e, às vezes, contestá-lo – quer vencê-lo. Não raro, quer impressioná-lo. E então, cada vez mais se envolve na conversação com o mestre. Eis que o aluno percebe que vai sucumbir diante das refutações do mestre, e que, na verdade, isso é um grande passo do processo erótico. O aluno começa a perceber que está se apaixonando – já não pode deixar de ir a um encontro. Não consegue faltar às oportunidades de estar junto do professor. Já não se sente humilhado ao ser efetivamente humilhado, posto na condição de quem não sabe, pois saboreia a troca que, enfim, está pronta para se realizar de forma plena com o professor.

Caso a situação fosse a dos gregos antigos, nada haveria de perturbador nisso tudo, nesse “clima” gerado entre mestre e estudante. Seria, é claro, uma situação de amor, mas não traria a confusão mental que pode trazer ao estudante e, às vezes, ao professor, em nossa sociedade e em nossa universidade. No nosso caso, uma parte da atividade, a parte sexual, se põe como problemática. O aluno moderno fica sem saber se o amor que sente é ou não de “caráter sexual”. Para o grego, essa dicotomia não se coloca: a sedução se deu e pronto; ta erôtika é a arte do amor e a arte de questionar ou, dizendo de um modo mais compreensível, a arte da conversação que tem seu modelo no namoro quente, bem encaminhado. Na situação grega antiga, nenhum jovem ficaria preocupado em, tendo sido levado a uma posição de dependência emocional e intelectual em relação ao mestre, querer saber se vai ou não ocorrer uma troca de carícias físicas. Mas, enfim, o nosso jovem moderno pode tropeçar aí, nesse caso. Todavia, se ele souber entender a natureza da atividade pedagógica em que se meteu, verá que sua paixão pelo professor é o que melhor poderia ocorrer a ele na universidade. Alguns chegam a dizer isso: “amo aquele professor”, “amo aquela aula”, “amo aquele livro”. No caso aí, amor é amor. Seria bom que o jovem soubesse curtir isso sem se perguntar aquilo que um grego jamais perguntaria, se esse amor é ou não de conotação sexual. A atividade erótica é a atividade erótica. Ela é prazerosa e ao mesmo tempo angustiante, não raro coloca o aluno de joelhos diante do mestre quando tudo fazia crer que ele, mestre, é que estaria de joelhos diante da beleza e juventude do aluno.

Essa força de eros pode aparecer entre aluno e professor, mesmo que a nossa modernidade tenha feito de tudo para eliminar esse segredo da pedagogia, vivido na pederastia grega. Uma sociedade pode ser deserotizada, como de fato é a nossa sociedade. Mas, a universidade ainda é um pólo de subversão dessa deserotização. Nela, escondido em estantes de velhas bibliotecas, sentado na mesa de uma cantina pouco importante, posto ao lado de um quadro negro em uma sala perdida de um bloco desconhecido, pode viver Eros, esperando o encontro de um professor e uma estudante ou vice versa (ou quaisquer outros gêneros envolvidos) para iniciar sua atividade de daimonion, sua atividade daimon-íaca. Hoje em dia, isso não é para qualquer um. Não é mesmo, mas Eros, sabemos, está por aí solto, ele era um gênio na Grécia antiga e, assim, imortal. Pode estar escondido, esquecido, não morto. Cuidado!

© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

1. Rorty, R. Educação: socialização e individualizaçã o. In: Ghiraldelli Jr., P. O que você precisa saber em filosofia da educação. Rio de Janeiro: DPA, 2001.

2. Reeves, C.D. Love’s confusion. Londres: Harvard University Press, 2005.

3. Sobre o elenkhós ver: Ghiraldelli Jr., P. História da Filosofia. São Paulo: Contexto, 2008.


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