quinta-feira, 8 de julho de 2010

UMA INTRODUÇÃO ÀS REDES SOCIAIS

Augusto de Franco (2008)

Introdução do livro “Escola de Redes: novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a Internet, a política e mundo glocalizado” (Curitiba: Escola-de-Redes, 2008).

Uma mudança significativa em nossa visão sobre a sociedade vem ocorrendo nos últimos anos com a descoberta das redes sociais. Com efeito, as redes sociais são surpreendentes. Elas surpreendem, em primeiro lugar, os que vivem antenados com as novidades e esperam assumir uma posição de vanguarda ou de destaque ao “aderirem” a elas. Essas pessoas, muitas vezes, ficam chocadas quando se lhes diz que a rede social não é nada mais do que a sociedade. Em geral, elas “entram na onda” das redes porque acham que descobriram um novo modo de chamar a atenção para si próprias, para suas idéias ou para seus produtos.
Já existe uma ampla literatura empresarial afirmando que quanto mais conectada estiver uma pessoa, mais chances de sucesso ela terá em sua carreira ou em seus negócios. Atualmente, há todo um setor do marketing tentando descobrir as regras do marketing em rede ou do marketing viral.
Se os interessados nas redes sociais são políticos com vocação para reformadores do mundo, então, acham que agora estão prestes a descobrir um novo meio de mobilizar as massas em torno de suas propostas de mudança ou de transformação da sociedade. Muitos ouviram falar do swarming civil, ocorrido na Espanha entre 11 e 13 de março de 2004, que mudou bruscamente o destino das eleições que levaram Zapatero ao poder pela primeira vez e, então, ficam querendo descobrir o segredo de como atingir o tipping point, de como desencadear ações que possam crescer exponencialmente, amplificadas pelos mecanismos próprios das redes, de sorte a mudar o comportamento dos agentes do sistema em ampla escala.
Toda essa curiosidade é legítima, mas o mesmo não se pode falar, em geral, das motivações e atitudes, que, às vezes, a acompanham. Se quisermos usar as redes sociais com essa expectativa instrumental, é quase certo que teremos problemas de frustração de expectativas. Não que esses fenômenos desejados não ocorram: eles podem, sim, acontecer de fato. Mas a questão está na atitude de utilização que freqüentemente nos impede de ver que as verdadeiras redes sociais — quer dizer, as redes sociais distribuídas — não podem ser urdidas pelo desejo de controle ou pela vontade de poder. Quem permanece com essa visão, em geral, não consegue articular redes sociais. Antes de qualquer outra coisa, não consegue entender o que são realmente redes sociais.
Em geral (em mais de 90% dos casos), tem-se indevidamente denominando de redes estruturas descentralizadas que tentam conectar horizontalmente instituições verticais, quer dizer, organizações hierárquicas, mesmo que essas organizações façam parte da sociedade civil e pertençam à nova burocracia associacionista das ONGs.

Mas, então, pergunta-se, freqüentemente, como fazer uma rede social propriamente dita, quer dizer, uma rede distribuída. Para se chegar a uma resposta, é preciso começar dando uma boa olhada nos velhos diagramas de Paul Baran (1964), esboçados em um documento em que o autor descrevia a estrutura de um projeto que mais tarde se converteria na Internet, em sua versão original (1).
FIG. 1 | Diagramas de Paul Baran


Nos três desenhos (da FIG. 1), os pontos (nodos) são os mesmos, o que varia é a forma de conexão entre eles. Redes propriamente ditas são apenas as redes distribuídas (o terceiro grafo). As outras duas topologias — centralizada e descentralizada — podem ser chamadas de redes, mas apenas como casos particulares (em termos matemáticos). Ambas são, na verdade, hierarquias.

Bem, para que redes sejam articuladas, em primeiro lugar, faz-se necessário conectar pessoas ou redes propriamente ditas, quer dizer, redes distribuídas. A conexão horizontal de instituições hierárquicas não gera redes distribuídas pela simples razão de que o fluxo pode ser interrompido (controlado, filtrado) em cada nodo. Se isso acontecer, a topologia passa a ser descentralizada, isto é, multicentralizada. Em segundo lugar, é preciso conectar as pessoas entre si e não apenas com um centro articulador ou coordenador, mesmo que esse centro se chame equipe de animação.

Bastaria isso? Sim, a rigor isso seria o bastante. Mas, então, por que as iniciativas voltadas para a articulação de redes não costumam funcionar?

Ora, porque, em geral, não se faz isso. Simples assim. De modo geral, são conectadas instituições hierárquicas e não pessoas (ou redes distribuídas de pessoas, o que é a mesma coisa). Ou, então, quando se conectam pessoas, institui-se — sob o pretexto de se realizar o trabalho de animação da rede — um centro coordenador, que mantém, de fato, uma ligação direta e transitiva com cada nodo da rede, mas que, na prática, acaba funcionando como uma espécie de direção que decide o que será feito em termos coletivos. Decide pela rede. Decide para toda a rede.

Bem, e se apenas pessoas (ou redes distribuídas de pessoas) forem conectadas? E se essas pessoas estiverem conectadas entre si e não for exercido demasiado protagonismo a título de animação a ponto de desestimular o surgimento de iniciativas diversificadas, ficaria garantido que a rede funcionaria?

Sim, com certeza! Mas com um porém: depende do que se entende por “funcionar”! Uma rede funciona quando existe, ou seja, quando se configura segundo a morfologia de rede (distribuída) e manifesta sua dinâmica característica.

Aqui é preciso entender que as redes não são expedientes instrumentais para pescar pessoas e levá-las a trilhar um determinado caminho ou seguir uma determinada orientação. As redes farão coisas que seus membros quiserem fazer; ou melhor, só farão coisas conjuntas os membros de uma rede que quiserem fazer aquelas coisas. Se alguém propõe fazer alguma coisa em uma rede de 100 participantes, talvez 40 aceitem a proposta; os outros 60 farão outras coisas ou não farão nada. Em rede é assim: não há centralismo. Não há votação. Não há um processo de verificação da formação da vontade coletiva que seja totalizante e que se imponha a todos, baseado no critério majoritário.

Além disso, dizer que as pessoas estão conectadas umas com as outras, significa muito mais do que fornecer a cada uma o nome, o e-mail, o endereço e o telefone das demais pessoas. É necessário que elas se conectem realmente (a conexão real não é um traço em um grafo: como aquela “fonte” do heraclítico Goethe, ela “só existe enquanto flui”). Também é necessário que todas as pessoas disponham de meios para fazer isso, quer dizer, meios para entrar em contato umas com as outras: se quiserem, quando quiserem e com quem quiserem.

Em suma, quem quer articular e animar redes sociais deve resistir às (quatro) tentações seguintes: fazer redes de instituições (em vez de redes de pessoas), ficar fazendo reuniões para discutir e decidir o que os outros devem fazer (em vez de, simplesmente, fazer), tratar os outros como “massa” a ser mobilizada (em vez de amigos pessoais a serem conquistados) e, por último, querer monopolizar a liderança (em vez de estimular a emergência da multiliderança).

Resistir à tentação de fazer redes de instituições (entidades, organizações). Muitas vezes, é necessário, para começar um projeto ou mesmo para dar respaldo à sua implantação, reunir instituições em torno de um propósito. Pode-se até chamar esse conjunto de instituições de rede. No entanto, redes propriamente ditas, ou seja, redes distribuídas, não podem ser compostas por instituições hierárquicas (centralizadas ou descentralizadas, quer dizer, multicentralizadas). Redes distribuídas devem ser de pessoas (P2P). Portanto, é necessário conectar as pessoas diretamente à rede, mesmo que essas pessoas ainda imaginem estar ali representando suas instituições. Ocorre que um membro conectado à rede não pode ser substituído por outro membro da mesma instituição (nenhuma pessoa é substituível em uma rede). Além disso, as redes devem ser compostas pelas pessoas que queiram participar delas, independentemente de estarem ou não “representando” instituições, pois redes não são coletivos de representação, mas de participação direta ou de interação — sem mediações de instituições hierárquicas.

Resistir à tentação de fazer reuniões para discussão ou deliberação com os membros da rede. Rede é uma forma de organização que não se baseia no ajuntamento, arrebanhamento, confinamento de pobres coitados em uma salinha fechada, onde, em geral, discute-se o que outros (que não estão ali) devem fazer. Sim, pois se for para fazer alguma coisa, então, não se trata de reunião de discussão e sim de atividade coletiva. Outra coisa nociva é a tal da reunião para decidir algo, sobretudo pelo voto. Isso é um desastre! Se houver necessidade de votar para decidir, é sinal de que o assunto não está maduro. Se estivesse, a solução se imporia naturalmente.

Ter sempre presente que fazer rede é fazer amigos. Tão simples assim. Então, as pessoas devem estabelecer comunicações pessoais entre si, uma a uma. Cada membro da rede é um participante único, insubstituível, totalmente personalizado, que deve ser tratado sempre pelo nome, valorizado pelo que tem de peculiar, incluído pelo reconhecimento de suas potencialidades distintivas. Nada, portanto, de circulares impessoais, panfletos, chamamentos coletivos. Nada de mobilização de massa. Quem gosta de massa são os candidatos a condutores de rebanhos, que estabelecem uma relação vertical, autoritária e paternalista com o povo.

Levar em conta que rede é um campo para a emergência do fenômeno da multiliderança. Cada um pode ser líder em algum assunto de que goste e domine, por meio do qual seja capaz de propor iniciativas que sejam acolhidas voluntariamente por outros. Redes não podem ter líderes únicos, líderes de todos os assuntos, dirigentes autocráticos que tentam monopolizar a liderança e impedir que os outros a exerçam.

Por certo, nem todos estão satisfeitos com as redes. Há os que se decepcionam com o fato de terem tentado construir redes que, depois de algum tempo, desarticularam-se. Há também os que estão nervosos porque suas redes não crescem em termos populacionais (em número de nodos) e não se tornam tão grandes quanto gostariam. Não raro, essas pessoas acabam culpando a forma de organização em rede pelo (que avaliam ser o) seu fracasso.

Ora, é preciso ver que, como disse aquele programa chamado Oráculo, da série The Matrix (interpretado pelas atrizes Gloria Foster e Mary Alice): “tudo que tem um início, tem também um fim”. Em outras palavras, redes voluntariamente articuladas não são para durar para sempre. Nada dura a vida toda. Experiências de redes distribuídas, sobretudo em uma sociedade invadida por programas centralizadores, são eventos limitados no espaço e no tempo. Cada rede tem, assim, um tempo de vida. Elas se fazem e refazem. Somem e reaparecem, muitas vezes, como outras redes. O que quer viver para sempre, que não aceita o fluxo da vida, que continuamente transforma uma coisa em outra, são os programas verticalizadores sintonizados com o ego do predador (o Agente Smith, interpretado pelo excelente Hugo Weaving, se quisermos continuar fazendo um paralelo com as metáforas do filme). Quando se incrustam em uma formação social, tais programas centralizam a rede com o propósito de ficar lá para sempre, “tapando com cimento, como fazem as térmites, todas as saídas para a luz” (2), ou seja, construindo bunkers para se protegerem dos fluxos que podem atravessá-los e... modificá-los. É por isso que as autocracias constituem modos políticos próprios de estruturas centralizadas que querem trancar o futuro ou reduzir o estoque de futuros possíveis para uma coletividade. Somente autocratas, que precisam necessariamente viver em estruturas centralizadas, imaginam que podem durar para sempre.

Por outro lado, por que uma rede teria que crescer de tamanho (em termos populacionais)? Crescer para quê? Por que, por exemplo, uma rede distribuída de 50 pessoas precisaria crescer? Para fazer alguma coisa? Mas as redes não são para fazer coisa alguma: elas são simplesmente para ser. Elas são o que qualquer sociedade seria se não tivesse sido invadida por programas centralizadores.

Fala-se, portanto, em crescer, mas uma rede não “cresce” apenas aumentando seus nodos e sim também aumentando sua conectividade e seu grau de distribuição. Além disso, é possível que a rede “cresça” ainda em outro sentido: aumentando a “largura de banda” das suas conexões. Talvez a rede, além de crescer (mudança quantitativa), desenvolva-se (mudança qualitativa). E talvez seja mais importante se desenvolver (quer dizer, promover mudanças regulacionais) do que propriamente crescer (em número de nodos). Por último, talvez se esteja um pouco hipnotizado pelo fetiche do número (tal como os economistas; já se sabe que aquilo que foi chamado de Economics nasceu para ser uma “ciência do crescimento”).

Freqüentemente, também, está presente a preocupação com as redes que param de crescer, mas as redes são móveis mesmo. Crescem até certo ponto, ou melhor, dentro de um certo tempo (o seu tempo) e, depois, tendem a diminuir ou até a desaparecer. Ora, se a intenção não é usar a rede como um instrumento para se fazer algo, que problema há aqui?

Muita desilusão prematura com as redes nasce de uma incompreensão profunda do que elas significam realmente. Quem quer usar as redes porque está na moda ou porque imagina que, assim, conseguirá ampliar seu poder, em geral, não se dá muito bem. Até mesmo quem quer usar as redes para promover transformações em nome de uma causa, muitas vezes, fica decepcionado. Por quê? Porque a rede não é um instrumento para fazer a mudança. Ela já é a mudança.

Mas essa mudança não é uma transformação do que existe em uma coisa que não existe e sim a liberdade para que o que já existe possa ser capaz de regular a si mesmo. Sim, as pessoas ficaram completamente alienadas nos últimos dois ou três séculos com esse “modelo transformacional” da mudança, que pressupõe um agente de vontade capaz de promover, organizar e liderar a mudança. Isso não ocorre na natureza nem em qualquer outro sistema complexo — e a sociedade humana é um sistema complexo. Na natureza e no mercado (que também são sistemas complexos), por exemplo, as mudanças seguem a combinação de um “modelo variacional” com um “modelo regulacional”. Os sistemas complexos adaptativos são aqueles que aprenderam a se auto-regular — e só redes podem fazer isso, razão pela qual esses sistemas, seja o cérebro humano ou um ecossistema, sempre se estruturam em rede — de sorte a poderem se adaptar às mudanças (variações aleatórias) internas e externas. Ou a fim de poderem “conservar sua adaptação” (uma boa definição de sustentabilidade), fazendo e refazendo, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio.

Essa idéia de que você tem que se transformar em uma pessoa diferente (que você não é) foi uma coisa ruim que colocaram em sua cabeça. Você não precisa se transformar e sim despertar para suas imensas potencialidades. Da mesma forma, a sociedade não precisa ser transformada em outra coisa: ela precisa ser simplesmente o que é quando as pessoas se conectam entre si horizontalmente, sem a introdução de muros, escadas, portas e fechaduras, cuja função é obstruir a livre fluição, criando toda sorte de anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

A rede social não é uma invenção contemporânea. É possível dizer que no princípio era a rede... a rede social que existe independentemente de esforços organizativos voluntários (o que será chamado aqui de “rede-mãe”) é a sociedade que existe (não a que não existe) e que só não se manifesta como é porquanto foi invadida por programas verticalizadores, que atuam alterando a topologia distribuída, centralizando fluxos. Quando se vê livre desses programas, o seu Bios (Basic Imput/Output Sistem) dá conta de regular suas mudanças. Por isso afirma-se que a rede já é a mudança e não a mudança para outra coisa que ela, a sociedade, não é, mas a mudança para o que sempre foi por definição. Embora possa parecer, não há aqui qualquer jogo ardiloso de palavras. Seres humanos que se conectam entre si formam redes. O “social” é isso. Ponto.

Nos últimos anos, fala-se muito de redes digitais. E fica-se com a impressão de que são as novas tecnologias de informação e comunicação que representam toda essa novidade organizativa. Mas não é bem assim. Como percebeu Don Tapscott, há mais de 10 anos, “não se trata da organização em rede da tecnologia, mas da organização em rede dos seres humanos através da tecnologia. Não se trata de uma era de máquinas inteligentes, mas de seres humanos que, através das redes, podem combinar a sua inteligência” (3), gerando uma inteligência em rede, um novo tipo de inteligência coletiva. Mas essa inteligência coletiva não nasce como resultado da aplicação de uma engenharia que combine de forma planejada as inteligências humanas individuais. Ela é uma “inteligência social”, que nasce por emergência, uma espécie de swarm intelligence que começa a brotar espontaneamente quando muitos micromotivos diferentes são combinados de uma forma que não se pode prever de antemão. Aqui também não se pode pretender aplicar uma fórmula, um esquema, para produzir esse “supercomputador” que é a rede social. O mais surpreendente nisso tudo é que, na verdade, o tal “supercomputador” é o que é chamado de social. Como dizia Ralph Waldo Emerson (1841), em Self-reliance: “we lie in the lap of an immense intelligence”.

Muitas pessoas ainda insistem em dizer que as redes são baseadas na cooperação. Isso é verdade, mas não pelas razões que comumente são apresentadas. As pessoas pensam que as redes são uma nova forma de organização baseada em princípios cooperativos, como se eles fossem uma condição a priori para que alguém se conecte a uma rede, tendo que aderir a tais princípios. Assim, as redes seriam colaborativas porque, ao compô-las, as pessoas fariam uma espécie de profissão de fé nas vantagens da cooperação e mudariam pessoalmente seu comportamento para participar das redes, como quem toma uma decisão crucial de mudar de vida e faz um voto sobre isso para poder ser aceito em uma organização religiosa.

Nada disso. As redes sociais convertem, de fato, competição em cooperação, mas como resultado de sua dinâmica. Elas não convertem indivíduos competitivos, beligerantes e possuidores de forte ânimo adversarial em indivíduos cooperativos, pacíficos e amigáveis. Ao favorecer a interação e permitir a polinização mútua de muitos padrões de comportamento, o resultado do “funcionamento” de uma rede social é produzir mais cooperação, como já descobriram (ou estão descobrindo) os que trabalham com o conceito de capital social. As pessoas podem continuar querendo competir umas com as outras, porém, quando conectadas em uma rede, esse esforço não prevalece como resultado geral visto que, na rede, elas não podem impedir que outras pessoas façam o que desejam fazer nem podem obrigá-las a fazer o que não querem. Assim, a rede não é um instrumento adequado para alguém adquirir mais poder — que é sempre o poder de obstruir, separar e excluir. Por último, as redes constituem um “corpo” cujo “metabolismo” correspondente é necessariamente democrático (no sentido “forte” do conceito de democracia) ou pluriárquico, como propuseram Bard e Söderqvist em 2002 (4). Quanto mais distribuídas elas forem, mais a democracia que se pratica em seu interior vai adquirindo as feições de uma pluriarquia.

Explicando melhor: em uma rede distribuída, como escreveu David de Ugarte (2007), “ainda que a maioria não simpatize com uma proposta — e se manifeste contra ela — não poderá evitar a sua realização”, como ocorre nas formas democráticas atuais, que tomam a democracia no sentido “fraco” do conceito e adotam um modo de verificação da formação da vontade política coletiva por meio de processos aritméticos de contagem de votos, configurando-se como “um sistema de escassez: a coletividade tem que eleger entre uma coisa e outra, entre um filtro e outro, entre um representante e outro” (5).

Ao contrário, nas redes distribuídas, como lembra o blogger Enrique Gomes, “há uma abundância de recursos que tende ao infinito. Podemos criar tantos blogs, agregadores [de blogs], ambientes colaborativos, wikis ou fóruns quanto quisermos. Então, que sentido tem submetermo-nos aos desejos e às ordens de alguns...?” (6). Não é por acaso que blogs e agregadores de blogs foram evidenciados aqui: blogosferas são, por enquanto, os melhores exemplos de redes distribuídas.

Afirmou-se acima que a rede já é a mudança porque ela é a possibilidade de exercício da democracia naquele sentido que John Dewey atribuía ao conceito: a democracia como modo de vida, a democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão (e não apenas como forma de administração política do Estado ou regime político), a democracia comunitária, a democracia local. E, como se sabe, a democracia (nesse sentido “forte” do conceito) é “o que há”; quer dizer, é a única utopia que não aliena o indivíduo, remetendo-o a algum lugar no futuro. Sobre isso, pode-se dizer que quem precisa de utopia são as autocracias, não a democracia.

Porque “a ‘utopia’ da democracia é a política — uma topia — e não o contrário, ou seja, não se deve usar a política para objetivos extrapolíticos, como levar ‘as massas’ para algum lugar do futuro; e, na verdade, não se quer nada com a política a não ser que os seres humanos possam, aqui e agora, viver em liberdade, como seres políticos, participantes da comunidade política” (7).

Assim, tal como as redes, a democracia não pode ser usada instrumentalmente para se obter qualquer coisa, para atingir um conjunto de objetivos generosos, “na medida em que ela já faz parte desses objetivos, está co-implicada em sua realização. A democracia tem, sim, uma “utopia”, mas que é uma não-utopia porquanto não é finalística, não é Shangrilah, Eldorado ou a Cidade do Sol, mas a estrela polar dos navegantes que pode ser vista por qualquer um, independentemente do poder que arregimentou ou do conhecimento que acumulou, de qualquer lugar no meio do caminho. E que não é para ser alcançada no futuro. E, ainda, que não admite que alguém — em virtude de sua força ou de sua sabedoria — faça-nos seguir um mapa (o seu mapa) para aportá-la. Por quê? Porque a democracia não é o porto, o ponto de chegada (no futuro), mas o modo de caminhar (no presente). Assim, a “utopia” da democracia é uma topia: a política. É viver em liberdade como um ser político: cada qual como um participante — único, diferenciado, totalmente personalizado — da comunidade política”, (8) tal como acontece apenas nas redes sociais distribuídas de pessoas.

Ocorre que redes distribuídas são sempre comunitárias, sempre locais — se tomarmos um conceito mais abrangente (e mais preciso) de local como cluster, abarcando socioterritorialidades ou comunidades. A emergência de uma chamada sociedade-rede vem acompanhada de um processo de globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O futuro mundo das redes distribuídas — se vier — não será, como previa McLuhan, uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia global midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo virando um local. A sociedade-rede (“molecular”) — percebida por Levy, Guéhenno, Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo, holograficamente. Não o local separado, por certo, mas o local conectado que tende a virar o mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser uma possibilidade (9).

Notas e referências

(1) BARAN, Paul (1964). On distributed communications: I. introduction to distributed communications networks. In: Memorandum RM-3420-PR, August 1964. Santa Mônica: The Rand Corporation, 1964.

(2) A frase, belíssima, é de Antoine de Saint-Exúpery (1939) em Terra dos homens.

(3) Cf. TAPSCOTT, Don. The digital economy: promise and peril in the age of networked intelligence. New York: McGraw-Hill, 1996.

(4) Cf. BARD, Alexander; SÖDERQVIST, Jan. Netocracy: the new power elite and life after capitalism. London: Pearson Education, 2002.

(5) UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: CMDC/ediPUCRS, 2008.

(6) Idem.

(7) FRANCO, Augusto (2007). Alfabetização democrática: o que podemos pensar (e ler) para mudar nossa condição de analfabetos democráticos. Curitiba: FIEP / Rede de Participação Política do Empresariado, 2007.

(8) Idem.

(9). FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização, localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003.

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