terça-feira, 20 de julho de 2010

Modernismo e Vanguarda: o caso Flávio de Carvalho

Rui Moreira Leite
A RELAÇÃO ENTRE modernismo brasileiro e vanguarda européia nas artes plásticas tem sido revista ao longo dos últimos dez anos. Dos primeiros trabalhos que afirmavam a identidade (Mendes de Almeida; 1961; Amaral, 1969) – a partir dos esforços de aproximação realizados antes e depois da Semana de Arte Moderna em 1922 – avançou-se até identificar, no primeiro modernismo, a plataforma ativista do futurismo e não sua proposta estético-artística (Fabris, 1994) e, no período seguinte, o contato com a Paris do retorno à ordem (1) (Batista, 1987). Assim, um artista como Flávio de Carvalho (1899-1973), interpretado inicialmente como a continuidade, ao longo da década de 30, do momento combativo inicial do modernismo (Martins, 1968), passa a ser visto como o elo perdido com as vanguardas históricas.

Explorarei outra possibilidade. A insistência em identificar a ruptura nos sistemas de representação fortaleceu ultimamente o esforço em sentido contrário: apontar as possíveis continuidades – o que, no limite extremo, faria do cubismo o momento culminante da tradição do retrato, da paisagem, do nu e da natureza-morta do século XIX (Rosenblum, 1976). A visão de um retorno à ordem no I pós-guerra, sugerindo a idéia de progresso nas formas artísticas (2) e esgotamento do cubismo em meados dos anos 10, tem sido contestada. Em seu estudo dedicado ao cubismo francês, Christopher Green (1988) se revelou capaz de oferecer uma nova perspectiva, deixando de enfocar a história da alta cultura como um desenvolvimento linear, para fazê-lo "em termos de um campo de forças, no qual conflitos diferentes, mas interrelacionados, podem ser observados e no qual, de maneira muito clara, instâncias diversas alcançam períodos de hegemonia". O estudo, que combina esta nova perspectiva (3) à reconstrução do desenvolvimento do cubismo tardio, transformou não só o quadro geral – enriquecido pela revelação de desdobramentos importantes do cubismo ainda no período 1916-1924, por exemplo, nas obras de Diego Rivera (1886-1957) e André Lhote (1885-1962) – como a compreensão de trajetórias individuais.

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Para situar Flávio de Carvalho seria necessário recorrer a esforço semelhante, encontrando uma nova maneira de aproximação à sua obra. Não pela revelação de trabalhos desconhecidos, mas pela apresentação de conjuntos significativos a partir de uma perspectiva diferente.

Tentarei pois demonstrar, ao contrário do que tem sido sugerido, o papel destacado dos modernistas da primeira geração no desenvolvimento de sua obra como artista plástico. A catalogação da obra de Flávio de Carvalho que empreendi (Moreira Leite, 1994) sugere o ano de 1928 como ponto de inflexão. Obras então realizadas, notadamente o Retrato de Silva Neves (aquarela, 1928, col. Roberto A. Neves, São Paulo) e seu Auto-Retrato (óleo, 1928, col. particular, São Paulo) são as primeiras nas quais se liberta das convenções de representação herdadas do seu período de estudos na Inglaterra (4) que se estendeu de 1918 a 1922. Neste retrato em aquarela introduz deformações angulosas e em seu auto-retrato a óleo trabalha a partir de áreas de cor uniforme, obtendo relevo por uso de espátula ou de um pincel sem pêlos. Flávio de Carvalho tivera possivelmente um contato anterior com a vanguarda européia por intermédio da publicação do vorticismo inglês Blast (5), mas seu trabalho evoluiu a partir dessa data, que marca sua integração ao grupo modernista de São Paulo e coincide com as exposições individuais realizadas por Lasar Segall (1891-1957) e Tarsila do Amaral (1886-1973).

Ao lado de seus trabalhos em pintura e desenho centrados em nus e retratos, o artista compõe – com intervalo de 15 anos – duas séries centradas no tema da morte. A primeira, desenvolvida a partir de seu estudo de psicologia das multidões Experiência nº 2 (Carvalho, 1931) – compreende uma das ilustrações concebidas para o volume e os óleos A Inferioridade de Deus (1931, col. Gilberto Chateubriand, Rio de Janeiro) e Ascensão Definitiva de Cristo (1932, col. Pinacoteca do Estado, São Paulo). A segunda, a aquarela Medusa (1946, ex-col. Gilberto Ramos, Rio de Janeiro), o óleo Mulher Morta com Filho (1946, col. Afonso Brandão Hennel, São Paulo) e nove desenhos representando os momentos finais de agonia de sua mãe, Ophélia Crissiuma de Carvalho, a Série Trágica (1947, carvão s/papel, col. MAC-USP). O primeiro grupo de trabalhos, uma vez apresentado em exposição, não chegou a integrar qualquer mostra posterior, mesmo retrospectiva. A Série Trágica, marco de sua segunda individual (Museu de Arte de São Paulo; Galeria Viau, Buenos Aires (1948), pelo contrário, seria reapresentada sucessivamente até a exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1952, quando foi adquirida e passou a integrar o acervo da instituição. A partir de ambos os conjuntos é possível propor uma leitura valorizando relações até aqui neglicenciadas.

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A primeira das séries relaciona-se à Experiência nº 2. A insistência do artista em permanecer de boné diante de uma procissão de Corpus Christi, no centro de São Paulo, leva fiéis enfurecidos a uma tentativa de linchamento. Concebido como um estudo de psicologia das multidões, o evento é descrito e analisado. Em seu relato, Flávio de Carvalho recorda-se de ter imaginado a própria morte enquanto se escondia, e a representa em seu livro por uma ilustração identificada pela legenda assistia emocionado ao meu desmanchar (nanquim, col. particular, São Paulo). Pela interpretação do episódio proposta pelo artista – inspirada em Frazer (Origem da família e do clã) e Freud (Psicologia das massas e análise do eu e Totem e tabu) – sua atitude desafiadora o transformara, aos olhos dos fiéis, num prolongamento do velho Deus pai e apenas seu assassinato poderia saciar o desejo de totemização do cortejo. Assim, a visão do esquartejamento da ilustração é reapresentada no óleo A Inferioridade de Deus, mas o corpo desmembrado do centro da composição é agora o da divindade que se oferece aos fiéis. O conjunto de trabalhos realizados a partir do episódio se completa com Ascensão Definitiva de Cristo, composição mais equilibrada, na qual áreas de cor uniforme são definidas a partir de mastros, canhões e bandeirolas que circundam o rosto-nuvem encimado por uma chaminé de navio. Registro da celebração religiosa em curso, as referências irônicas assumem a forma de bigodes e comendas, que reforçam a sugestão de uma parada militar.

A Experiência nº 2 pode ser vista como um eco da adesão do artista à Antropofagia (Bopp, 1966), bem como uma aproximação ao surrealismo na qual à primeira provocação dirigida aos fiéis do cortejo se acrescenta uma segunda, dirigida à hierarquia da Igreja Católica – a dedicatória ao papa Pio XI e ao cardeal de São Paulo, D. Duarte Leopoldo – que abre o volume.

Tais obras – particularmente a última, realizada a partir de associações livres e condensação de imagens – podem ser aproximadas àquelas da exposição realizada em 1929 por Tarsila do Amaral, como a tela O Sono (1928 c., óleo s/tela, ex-col. Giovana Bonino) (6).




http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000200018

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