domingo, 4 de abril de 2010

O Velo de Ouro – Robert Graves

O Velo de Ouro - Robert GravesTexto Traduzido por: MAXIMILIANO REZENDE e MARCELO GABRIADES
texto p/ peça teatral

De: Marcelo Gabriades Exibir contato
Para: Aline Reis


Criado em 10/02/10

O Velo de Ouro – Robert Graves

Prólogo: Anceo (o Lélege) na Horta das Laranjeiras


Uma tarde de verão, ao anoitecer, Anceo o lélege, o da florida Samos, foi abandonado na costa arenosa do sul de Mallorca, a maior das Ilhas Hespérides ou, como chamam alguns, as ilhas dos Fundeiros (atiradores de fundas) ou as ilhas dos Homens Nus. Estas ilhas ficam muito perto umas das outras e estão situadas no extremo ocidental do mar, a apenas um dia de navegação de Espanha quando sopra um vento favorável. Os ilhéus, assombrados por seu aspecto se abstiveram de dar-lhe morte e o conduziram, com manifesto desprezo por suas sandálias gregas, sua curta túnica manchada pela viagem e sua pesada capa de marinheiro, ante a grande sacerdotisa e governadora de Mallorca que vivia na Cova do Drach, entrada aos Infernos mais distante da Grécia, das muitas que existem.
Como naquele momento estava absorta em certo trabalho de adivinhação, a grande sacerdotisa enviou Anceo ao outro lado da ilha para que o julgasse e dispusesse dele sua filha, a ninfa da sagrada horta de laranjas em Deia. Foi escoltado através da planície e das montanhas escarpadas por um grupo de homens nus, pertencentes à irmandade da Cabra; mas por ordem da grande sacerdotisa, estes se abstiveram de conversar com ele durante o caminho. Não se detiveram nenhum instante em sua viagem, a passo ligeiro, exceto para postar-se ante um enorme monumento de pedra que se achava à margem do caminho e onde, quando crianças haviam sido iniciados nos ritos de sua irmandade. Em três ocasiões chegaram à confluência de três caminhos e nas três vezes deram uma grande volta para não se aproximar do matagal triangular rodeado de pedras. - Anceo se alegrou ao ver como respeitavam à Tríplice Deusa (1), a quem estão consagrados estes recintos.
Quando por fim chegou a Deia, muito fatigado e com os pés doloridos, Anceo encontrou a ninfa das Laranjas sentada bem ereta sobre uma pedra, perto de um manancial caudaloso que brotava com força da rocha de granito e regava a horta. A montanha, coberta por uma espessa mata de oliveiras silvestres e carvalhos, descia bruscamente até o mar, quinhentos pés mais abaixo, salpicado aquele dia até a linha do horizonte por pequenas manchas de bruma que pareciam ovelhas passeando.
Quando a ninfa se dirigiu a ele, Anceo respondeu com reverência, utilizando a língua pelasga e mantendo o olhar fixo no solo. Todas as sacerdotisas da Tríplice Deusa possuem a faculdade de fazer o “mal de olho” que, bem sabia Anceo, pode converter o espírito de um homem em água e seu corpo em pedra, e pode debilitar qualquer animal que cruze em seu caminho, até causar-lhe a morte. As serpentes oraculares cuidadas por estas sacerdotisas têm o mesmo poder terrível sobre pássaros, ratazanas e coelhos. Anceo também sabia que não devia dizer nada à ninfa exceto em resposta a suas perguntas, e ainda então falar com a maior brevidade e no tom mais humilde possível.
A ninfa mandou os homens-cabra se retirarem e estes se apartaram um pouco, sentando-se todos em fila à borda de uma rocha até que voltasse a chamá-los. Eram pessoas tranqüilas e sensíveis, com olhos azuis e pernas curtas e musculosas. Em lugar de abrigar seus corpos com roupas se untavam com o suco de aroeira (2)) mesclada com banha de veado. Cada um levava colado a um lado do corpo um bornal de pele de cabra cheio de pedras polidas pelo mar; na mão levavam uma funda, outra enrolada na cabeça e uma que lhe servia de taparrabo. Supunham que rapidamente a ninfa lhes ordenaria que acabassem com o forasteiro, e já debatiam amistosamente entre si quem ia atirar a primeira pedra, quem a segunda, e se iam permitir-lhe sair com vantagem para dar-lhe caça montanha abaixo ou iam fazer-lhe em pedaços quando se aproximassem dele, apontando cada um para uma parte distinta de seu corpo.
A horta de laranjas continha cinqüenta árvores e rodeava um santuário de rocha habitado por uma serpente de tamanho descomunal que as outras ninfas, as cinqüenta Hespérides, alimentavam diariamente com uma fina pasta feita de farinha de cevada e leite de cabra. O santuário estava consagrado a um antigo herói que havia trazido a laranja a Mallorca de algum país das distantes beiras do oceano. Seu nome havia caído no esquecimento e se referiam a ele simplesmente como “o Benfeitor”; a serpente se chamava igual a ele porque havia sido engendrada de sua medula e seu espírito lhe dava vida. A laranja é uma fruta redonda e perfumada, desconhecida no resto do mundo civilizado, que ao crescer é primeiro verde, depois dourada e tem uma casca picante e a polpa fresca, doce e firme. Cresce em uma árvore de tronco liso, com folhas brilhantes e ramas espinhosas, fica madura em pleno inverno, ao contrário dos demais frutos. Não se come qualquer dia em Mallorca, senão só uma vez ao ano, no solstício de inverno, depois da ritual mastigação de sanguinho e outras ervas purgantes. Se a laranja é comida desta forma, ela concede uma larga vida, mas é um fruto tão sagrado que em qualquer outro momento basta catá-la para que sobrevenha a morte imediata, a não ser que a própria ninfa das Laranjas a administre.
Nestas ilhas, graças à laranja, tanto os homens quanto as mulheres, vivem tanto tempo quanto desejem; por regra geral só decidem morrer quando se dão conta de que estão convertendo-se em uma carga para seus amigos, pela lentidão de seus movimentos ou a insipidez de sua conversação. Então, por cortesia, marcham sem despedir-se de seus queridos nem criar nenhum alvoroço na cova – pois todos vivem em covas – escapulindo sem dizer nada, e se jogam de cabeça de uma rocha, agradando deste modo à deusa, a quem aborrece toda queixa e dor desnecessárias e premia a estes suicidas com funerais distintos e alegres.
A ninfa das Laranjas era alta e formosa. Levava uma saia em forma de sino e com enfeites ao estilo cretense, de um tecido tingido da cor da laranja com tintura de urze (3), e por cima, como peça única, levava posto um pequeno xale verde de manga curta sem abotoar na frente, mostrando assim o esplendor e a plenitude de seus seios. Os símbolos de seu cargo eram um cinturão formado por inumeráveis peças de ouro moldadas em forma de serpente com olhos de pedras preciosas, um colar de laranjas verdes secas, e uma touca alta bordada com pérolas e coroada com o disco de ouro da lua cheia. Havia dado à luz a quatro formosas meninas, das quais a menor, um dia, lhe sucederia em seu cargo, como ela que era a menor de suas irmãs, sucederia um dia a sua mãe, a grande sacerdotisa em Drach, Estas quatro meninas, eram donzelas caçadoras, muito destras no manejo da funda, e saiam com os homens para dar-lhes boa sorte na caça. A virgem, a ninfa e a mãe formam a eterna trindade na ilha, e a deusa, a quem se venera ali em cada um destes aspectos, representados pela lua nova, a lua cheia e a lua minguante, é a deidade soberana. É ela que infunde a fertilidade naquelas árvores das quais depende a vida humana. ?Não é acaso bem sabido que todo o verde brota seja enquanto a lua cresce ou deixa de crescer, seja na nova, e que só a quente e rebelde cebola não obedece a suas fases mensais? No entanto, o sol, seu filho varão, que nasce e morre todo ano, a assiste com suas cálidas emanações. Esta era a razão pela qual o único filho varão parido pela ninfa das Laranjeiras, posto que era a encarnação do sol, havia sido sacrificado à deusa, segundo o costume, misturando-se seguidamente as partes de sua carne com a semente da cevada para assegurar uma abundante colheita.
A ninfa se surpreendeu em descobrir que a língua pelasga que falava Anceo se parecia muito à das ilhas. Mas ainda que tenha se alegrado de poder lhe interrogar sem ver-se obrigada a recorrer à pesada tarefa de fazer gestos e de traçar desenhos sobre a argila com uma vareta, por outra parte se sentiu um pouco preocupada ao pensar que talvez Anceo houvesse estado conversando com os homens-cabra sobre assuntos que, tanto ela quanto sua mãe, tinham por norma que eles desconhecessem. O que primeiro lhe perguntou foi:
– ?És cretense?
– Sim, como não?! Disse Anceo
A ninfa faz uma cara de surpresa desagradável.
– Não... (engasgado, rápido e firme) sagrada ninfa – emendou Anceo – sou pelasgo, da Ilha de Samos no mar Egeu, e, no entanto não sou mais que primo dos cretenses. Mas meus senhores são gregos.
– És um velho e feio despojo humano – disse ela.
– Perdoai-me, sagrada ninfa – lhe contestou –. Tenho levado uma vida muito dura.
Quando lhe perguntou por que lhe haviam abandonado na costa de Mallorca, respondeu que havia sido desterrado de Samos por sua obstinada observância ao antigo ritual da deusa – pois ultimamente os samios haviam introduzido o novo ritual olímpico que ofendia a sua alma religiosa – e ele, sabendo que em Mallorca veneravam à deusa com inocência primitiva, pediu ao capitão do barco que o desembarcasse ali.
– É curioso – observou a ninfa. Tua história me recorda a de um campeão chamado Hércules que visitou nossa ilha há muitos anos quando minha mãe era ninfa desta horta. Não posso contar-te os pormenores de sua história, por que minha mãe não gostava de falar dela durante minha infância, mas é isso que me consta: Hércules foi enviado por seu senhor, o Rei Euristeo de Micenas (onde quer que esteja Micenas) a correr o mundo para realizar uma série de trabalhos que à primeira vista pareciam impossíveis, e tudo, segundo disse, por sua obstinada devoção aos antigos rituais da deusa.
Chegou em canoa e desembarcou na ilha, anunciando com surpreendente ousadia que havia vindo em nome da deusa para recolher um cesto de laranjas sagradas desta horta. Era um homem–leão, e por este motivo chamava muito a atenção em Mallorca, onde não temos nenhuma irmandade do Leão nem entre os homens nem entre as mulheres e, além disso, era dotado de uma força colossal e de um prodigioso apetite pela comida, bebida e prazeres do amor. Minha mãe se enamorou dele e lhe deu as laranjas generosamente e ainda o honrou fazendo-lhe seu companheira durante a semeadura da primavera. ?Ouviste falar do tal Hércules?
– Numa ocasião fui seu companheiro de navio. Caso esteja se referindo ao Hércules de Tirinto – respondeu Anceo. Isso foi quando naveguei aos estábulos do Sol, a bordo do famoso Argo, e sinto dizer-lhe que o grande canalha seguramente enganou à vossa mãe. Não teria nenhum direito a pedir-lhe a fruta em nome da deusa, pois a deusa o odiava.
À ninfa divertiu sua veemência e lhe assegurou que havia ficado satisfeita de suas credenciais e que podia levantar os olhos e lhe dirigir o olhar e falar com ela com um pouquinho mais de familiaridade, se o desejasse. Mas teve cuidado de não oferecer-lhe a proteção formal da deusa. Perguntou-lhe a que irmandade pertencia e ele respondeu que era um homem-golfinho.
– Ah! – exclamou a ninfa. Quando me iniciaram no rito das ninfas e me deixei acompanhar por homens no sulco aberto na terra depois da semeadura, foi com nove homens-golfinho. O que escolhi como preferido se converteu em campeão solar, o rei da guerra, para o ano seguinte, segundo os nossos costumes. Nossos golfinhos formam uma irmandade pequena e muito antiga e se distinguem por seu talento musical que supera inclusive ao dos homens-foca.
– O golfinho responde à música de forma encantadora – assentiu Anceo.
– No entanto – continuou a ninfa –, quando dei à luz, não tive uma menina, a quem aqui teria conservado, senão um menino; e a seu devido tempo meu filho regressou, despedaçado, ao sulco de onde havia saído. A deusa levou o que havia dado. Desde então não tenho me atrevido a me deixar acompanhar por nenhum homem-golfinho, pois considero que esta sociedade me trás má sorte. A nenhum filho varão de nossa família se permite viver mais além da segunda semeadura da primavera.
Anceo teve a coragem de perguntar:
– ?Será que alguma ninfa ou sacerdotisa (já que as sacerdotisas têm tanto poder nesta ilha) tentou alguma vez entregar em segredo, seu próprio filho varão a uma mãe adotiva, trocando e criando à filha desta, para que ambas as criaturas pudessem sobreviver?
– Pode ser que em tua ilha se pratiquem truques desta categoria, Anceo – lhe respondeu severamente a ninfa – mas nesta não. Aqui nenhuma mulher engana jamais à tríplice deusa.
– Naturalmente, sagrada ninfa – respondeu Anceo –. Ninguém pode enganar à deusa.
Mas voltou a perguntar:
– ?Não é talvez o vosso costume, se uma ninfa real sente um afeto fora do comum por seu filho varão, sacrificar em seu lugar um bezerro ou um cabrito, envolvendo-lhe nas roupas do pequeno e pondo-lhe sandálias nos pés? Em minha ilha se supõe que a deusa fecha os olhos ante tais substituições e que logo os campos rendem com a mesma abundância. É unicamente depois de uma má estação, quando o grão mingua, que se sacrifica a uma criança na semeadura seguinte. E ainda assim, sempre é uma criança de pais pobres, não de estirpe real.
A ninfa voltou a responder com o mesmo tom severo:
– Em nossa ilha não. Aqui nenhuma mulher burla jamais à tríplice deusa. Por isso prosperamos. Esta é a ilha da inocência e da calma.
Anceo assentiu, logo dizendo que era a Ilha mais agradável das centenas que havia visitado em suas viagens, sem excetuar a sua, Samos, chamada Ilha Florida.
— Estou disposta a escutar seu relato — disse a ninfa—, se não o aborrecer. ?Como é que seus primos, os cretenses, deixaram de visitar estas ilhas como faziam antigamente, nos tempos de minha bisavó, con¬versando conosco com boas maneiras numa linguagem que, ainda que não fosse a nossa, podíamos entender muito bem? Quem são estes gregos, teus senhores, que chegam nos mesmos barcos que há pouco tempo foram usados pelos cretenses? Vendem as mesmas mercadorias: grandes jarros, azeite de oliva, tinturas, jóias, linho, molas de esmeril e excelentes ar¬mas de bronze—, mas usam o carneiro em lugar do touro como carranca de proa e falam numa língua ininteligível e regateiam com modos grosseiros e ameaçantes. Olham impudicamente às mulheres e roubam qualquer pequeno objeto que encontram em seu caminho. Não nos agrada nada comercializar com eles e muitas vezes os fazemos correr com as mãos vazias, rompendo-lhes os dentes com os tiros de nossas fun¬das e amassando seus capacetes de metal com grandes pedras.
Anceo explicou que a terra ao norte de Creta, que há tempos havia sido conhecida por Pelasgia, se chamava agora Grécia em honra de seus novos senhores. A habitava uma população notavelmente mista. Os po¬voadores mais antigos eram os pelasgos terrestres quem, segundo se conta, haviam saído dos dentes esparramados da serpente Ofion quando a Tríplice Deusa a havia despedaçado. A estes povoadores se uniram primeiro os colonos cretenses de Cnosos, em seguida os colonos he¬netes da Ásia Menor, mesclados com os etíopes do Egito, cujo pode¬roso rei Pélope deu seu nome à parte sul destas terras, o Pelopo¬neso, e construiu cidades com enormes muralhas de pedras e tumbas de mármore branco em forma de colméia como as choças africanas; e finalmente os gregos, um povo bárbaro dedicado ao pastoreio, proce¬dentes do norte, mais além do rio Danúbio, que desceram através da Tessá¬lia em três invasões sucessivas e acabaram tomando posse de todas as fortes cidades peloponesas. Esses gregos governaram aos outros povos de forma insolente e arbitrária. E por desgraça, sagrada ninfa — disse Anceo—, nossos senhores adoram ao Tríplice Deus como deidade soberana e odeiam em segredo à Tríplice Deusa.
A ninfa se perguntou se não havia entendido mal suas palavras.
— ?E quem poderia ser o deus pai? — perguntou –. ?Como é possível que uma tribo adore a um pai? ?Que é um pai senão o instrumento que uma mulher utiliza às vezes para seu prazer e para poder se tornar mãe?
Começou a rir com desdém e exclamou:
– Pelo Benfeitor, juro que esta história é a mais absurda que jamais ouvi. Pais, ora essa! Suponho que estes pais gregos amamentam a seus filhos, e semeiam a cevada, cuidam das figueiras e ditam as leis e, numa palavra, realizam todas as demais tarefas de responsabilidade próprias da mulher, ?Não?
Estava tão irritada que deu uns chutinhos numa pe¬dra e a cara se lhe obscureceu com o calor de seu sangue.
Ao deixar aparecer sua irritação cada um dos homens-cabra tomou silen¬ciosamente uma pedrinha de seu bornal e a colocou na tira de coro de sua funda. Mas Anceo respondeu em tom aprazível e suave, baixando de novo o olhar. Comentou que neste mundo havia muitos costum¬es estranhos e muitas tribos que aos olhos de outros pareciam estar de¬mentes.
— Gostaria de mostrar-vos os mosinos da costa do mar Negro, sagrada ninfa — lhe disse —, com seus castelos de madeira e suas crianças tatua¬das que são incrivelmente gordas e se alimentam de tortas de castanhas. Vivem junto às amazonas que são tão estranhas como eles... E quanto aos gregos, seu raciocínio é o seguinte: já que as mulheres depen¬dem dos homens para sua maternidade — pois não lhes basta o vento para encher de nova vida suas matrizes, como ocorre com as éguas ibéricas —, os homens são, em conseqüência, mais importantes que elas.
— Mas é um raciocínio de loucos — exclamou a ninfa —. É como se pretendesses que esta lasca de pinho fosse mais importante que eu mesma porque a utilizo para limpar os dentes. A mulher, e não o homem, é sempre a principal: ela é o agente, ele sempre o instrumento. Ela dá as ordens, ele obedece. ?Não é por acaso a mulher quem elege ao homem e o vence com a doçura de sua presença, e lhe ordena que se acoste de boca para cima no sulco e ali, cavalgando sobre ele, como sobre um potro selvagem domado à sua vontade, toma dele seu prazer e quando termina lhe deixa tombado como um homem morto? ?Não é a mulher quem governa na cova, e se qualquer de seus amantes a enoja por seu mau humor ou sua moleza lhe repreende três vezes consecuti¬vas para que recolha todas suas coisas e marche ao alojamento de sua irmandade?
— Com os gregos — disse Anceo apressadamente e com voz apa¬gada — o costume é exatamente o contrário. Cada homem elege à mulher que deseja converter na mãe de seu filho (pois assim a chama), a vence com a força de seus desejos e a ordena que se acoste boca acima no lugar que mais lhe convenha e então, montando-a, toma dela seu prazer. Em casa é ele o amo, e se a mulher o enoja por sua forma de importunar-lhe ou por seu comportamento obsceno, a golpeia com a mão; e se com isto não consegue que mude sua conduta, a manda à casa de seu padre com todas as coisas que trouxe consigo e dá seus filhos a um escrava para que os crie. Mas, sagrada ninfa, não se enfade, o rogo pela deusa! Sou pelasgo, detesto aos gregos e seus costumes e unicamente estou obedecendo vossas instruções, como é meu dever, ao responder a estas perguntas.
A ninfa se contentou em dizer que os gregos deviam ser as pessoas mais ímpias e mais asquerosas do mundo, pior ainda que os monos africanos — se, com efeito, Anceo não estava burlando a ela —. Voltou a interrogar-lhe acerca da semeadura da cevada e da figada de cabra para as figueiras: ?como faziam os homens para obter pão ou figo sem a intervenção da deusa?
– Sagrada ninfa — respondeu Anceo –: quando os gregos se insta¬laram pela primeira vez em Pelasgia, eram um povo de pastores, que só se alimentava de carne assada, queijo, leite, mel e saladas silvestres. Por conseguinte, nada sabiam acerca do ritual da semeadura da cevada nem do cultivo de nenhuma fruta.
– Estes gregos dementes – disse ela, interrompendo-lhe –, suponho então que desceram do norte sem suas mulheres, como fazem os zangões, que são os pais ociosos entre as abelhas, quando saem da colméia e formam uma colônia aparte, separados de sua abelha rainha, e comem imundices em lugar de mel. ?Não é assim?
– Não – disse Anceo –. Trouxeram consigo suas próprias mulheres, mas estas mulheres estavam acostumadas ao que a ti te parecerá uma forma de vida indecente e de ponta cabeça. Cuidavam do gado, e os homens as vendiam e as compravam como se elas também fossem gado.
– Me nego a crer que os homens possam comprar ou vender mulhe¬res – exclamo la ninfa –. É evidente que te informaram mal sobre este ponto. Mas, diga-me, ?continuaram durante muito tempo estes sujos gregos com esta forma de vida, uma vez instalados na Pelasgia?
– As primeiras duas tribos invasoras, os jônios e os eólios – respondeu Anceo—, que levavam armas de bronze, não tardaram em render-se ante o poderio da deusa ao ver que ela consentia em adotar a seus deuses varões como seus filhos. Renunciaram a muitos de seus bárbaros costumes e quando, pouco depois, persuadidos a comer o pão cozido pelos pelasgos descobriram que tinha um sabor agradável e propriedades sagradas, um deles, chamado Triptólemo pediu per¬missão à deusa para poder semear a cevada, pois estava convencido de que os homens podiam fazê-lo com quase tanto êxito como as mulheres. Disse que desejava, se é que era possível, evitar às mulheres um trabalho e uma preocupação desnecessárias, e a deusa, indul¬gente, consentiu.
A ninfa riu até que as ladeiras da montanha devolveram o eco de sua risada, e de seu lugar os hombres-cabra corearam suas gargalhadas, enchendo-se de alegria, ainda que não tivessem a menor idéia de por que se estava rindo.
– Que estupenda safra terá colhido este tal Triptólemo! – disse a Anceo -. Seria tudo papoulas, soníferos e cardos!
Anceo teve a suficiente prudência para não contradizê-la. Começou a falar da terceira tribo dos gregos, os aqueus, cujas armas eram de ferro, e de seu insolente comportamento ante a deusa e de como instituíram a família divina do Olimpo; mas observou que ela não lhe escutava e desistiu.
– Vamos ver, Anceo – lhe disse em tom burlão –. Diga-me, ?como são determinados os clãs entre os gregos? ?Não diga que são clãs masculinos em lugar de femininos e que determinam as gerações através dos pais em lugar das mães, não é?
Anceo assentiu lentamente com a cabeça, como se estivesse forçado a admitir um absurdo graças à astúcia do interrogatório da ninfa.
– Sim – disse –, desde a chegada dos aqueus das armas de ferro, que ocorreu há muitos anos, os clãs masculinos substituíram aos femininos na maior parte da Grécia. Os jônios e os eólios já haviam introduzido grandes inovações, mas a chegada dos aqueus mudou tudo. Os jônios e os eólios, já haviam aprendido a calcular a descendência através da mãe, mas para os aqueus a paternidade era, e segue sendo, o único critério que levam em conta ao determinar sua genealogia, e ultimamente conseguiram que a maioria dos eólios y alguns jônios adotassem seu ponto de vista.
– Não, não, isso é manifestamente absurdo! - exclamou a ninfa –. ?Ainda que seja claro e indiscutível, por exemplo, que a pequena Kore seja minha filha, já que a parteira a extraiu de meu corpo, como se pode saber com certeza quem foi o pai? Pois a fecundação não provém necessaria¬mente do primeiro homem com quem eu gozo em nossas sagradas orgias. Pode provir do primeiro ou do nono.
– Os gregos tentam resolver esta incerteza – disse An¬ceo – fazendo com que cada homem eleja ao que chamam uma esposa. Uma mulher a quem está proibido ter por companheiro a ninguém que não seja ele. Então, se ela concebe, não se pode discutir a paternidade.
A ninfa lhe olhou atentamente e lhe disse:
– Tens uma resposta para tudo. ?Mas acaso esperas que creia que se possa governar e guardar até tal ponto às mulheres que se lhes empeça de desfrutar de qualquer homem que lhes apeteça? Imagina que uma mulher jovem se convertesse na esposa de um homem velho, feio e desfigurado como tu. ?Como poderia ela consentir em ser sua companheira?
Anceo sustentou seu olhar e respondeu:
– Os gregos professam que podem controlar assim a suas esposas. Mas admito que muitas vezes não o conseguem, e que às vezes uma mulher tem relações secretas com um homem de quem não é a esposa. Então seu esposo fica enciumado e tenta matar aos dois, sua esposa e seu amante, e se os dois homens são reis, levam seus povos à guerra sobrevindo grande derramamento de sangue.
– Isso não ponho em dúvida – disse a ninfa –. Em primeiro lugar não deveriam dizer mentiras, nem empreender o que não são capazes de reali¬zar, dando assim lugar aos ciúmes. A miúdo me dei conta de que os homens são absurdamente ciumentos: e mais, depois de sua falta de hones¬tidade e sua charlatanice, diria que é sua principal característica. Mas con¬ta-me. ?O que ocorreu aos cretenses?
—Foram vencidos por Teseu, o grego, a quem ajudou a conseguir a vitória um tal Dédalo, famoso artesão e inventor – disse Anceo.
– ?O que inventou? – perguntou a ninfa.
– Entre outras coisas – respondeu Anceo -, construiu touros de metal que bramiam artificialmente quando se acendia um fogo de baixo de seus ven¬tres; também estátuas deusa em madeira, que pareciam de carne e osso pois as extremidades articuladas podiam mover-se em qualquer direção, como se fosse um milagre, e, ademais, os olhos podiam abrir ou fechar puxando-se um cordão oculto.
– ?Ainda vive este Dédalo? – perguntou a ninfa –. Gostaria de o conhe¬cer.
— Por desgraça não vive mais – disse Anceo –. Todos esses aconteci¬mentos ocorreram muito antes de meu tempo.
Ela insistiu:
– ?Será que me poderia dizer como eram feitas as articulações das estátuas para que as extremidades pudessem mover-se em qualquer direção?
– Sem dúvida deviam girar num oco esférico – disse ele, dobrando seu punho direito e girando-o no oco formado pelos dedos da mão esquerda para que compreendesse o que queria dizer –. Pois Dédalo inventou a articulação esférica. Em todo caso, graças a um invento de Dédalo ficou destruída a frota dos cretenses, e por isto já não são eles quem visitam vossa ilha, senão unicamente os gregos e um ou outro pelasgo, trácio ou frígio.
– A mãe de minha mãe me contou – disse a ninfa – que, ainda que os cretenses adorassem à deusa com quase tanta reverência quanto nós, sua religião diferia da nossa em muitos aspectos. Por exemplo, a grande sacerdotisa não escolhia um campeão solar só para um ano. O homem que ela elegia reinava algumas vezes durante nove anos ou mais, negando-se a demiti-lo de seu cargo porque alegava que a experiência traz consigo a saga¬cidade. Chamavam ao sacerdote de Minos, ou o rei Touro, pois a irman¬dade do Touro tinha se convertido na irmandade suprema daquela ilha. Os homens-cervo, os homens-cavalo e os homens-carneiro jamais se atreveram a lutar para obter o trono da guerra, e a grande sacerdo¬tisa somente se deixava acompanhar pelos homens-touro. Aqui minha mãe e eu distribuímos nossos favores igualmente entre todas as irmanda¬des. Não é prudente deixar que uma só irmandade obtenha a supremacia, nem deixar que um rei reine mais de dois ou três anos; os homens se deixam levar facilmente pela insolência se não se os mantém no lugar que lhes corresponde, e então crêem ser quase iguais às mulheres. Com a insolência destroem a si mesmos, e o cúmulo, fazem enojar às mulheres. Sem dúvida alguma isto foi o que deve ter ocorrido em Creta.
Enquanto ainda conversavam, fez um sinal secreto aos homens-ca¬bra para que levassem Anceo fora de sua vista e depois lhe dessem caça até matá-lo com suas fundas. Pois decidiu que a um homem que podia contar historias tão perturbadoras e indecentes não se lhe podia permitir seguir com vida na ilha, nem sequer um momento mais, agora que já havia contado o que queria saber sobre a forma de articular as estátuas de madeira. Temia o dano que podia ocasionar se inquietasse as mentes dos homens. Ademais era um velho encurvado, calvo e feio, um exilado, e um homem-delfim que não traria boa sorte à horta.
Os homens-cabra se prostraram em reverência ante à ninfa das Laranjas e logo, compondo-se, obedeceram suas ordens com alegria. A perseguição não foi longa.

Um comentário:

  1. ALINE!!! ESTAVA PROCURANDO NA WEB UM TERMO PARA TRADUZIR "LÉLEGE", E ME DEPAREI COM SEU BLOG NA LISTAGEM DA BUSCA... ÊITA, MAIS ESSES CAMINHOS SÃO CURTOS, MESMO QUANDO O QUINTAL É GRANDE! ALEGRIA DE VER AQUI O TEXTO QUE TRADUZIMOS (MAXIMILIANO REZENDE E EU). ALIÁS, GOSTARIA DE TE PEDIR A GENTILEZA DE FAZER CONSTAR TAMBÉM O NOME DELE NESSE LUGAR... FALAMOS MELHOR SOBRE ISSO TUDO PRA SEMANA.
    SAUDAÇÕES ESPACIAIS.
    MARCELO

    ResponderExcluir