terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Adorno, a indústria cultural e a internet

Há quarenta anos morria o filósofo da Escola de Frankfurt que se tornou famoso por sua crítica aos meios de comunicação de massa

POR SERGIO AMARAL SILVA *

Esse pequeno trecho da letra de "Televisão", composta por Arnaldo Antunes, Toni Bellotto e Marcelo Fromer, canção que deu título a um dos primeiros álbuns dos Titãs, em 1985, serve de epígrafe a esta matéria, que trata da visão do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), falecido há exatos quarenta anos, sobre a "cultura de massas", que ele preferia chamar de "indústria cultural". Adorno era marxista por formação e sua filosofia funda-se na análise dialética.

A expressão "indústria cultural", segundo consta, foi utilizada pela primeira vez no livro "Dialética do esclarecimento", escrito em colaboração com Horkheimer e publicado em Amsterdã, em 1947. O termo era empregado em substituição a "cultura de massas", conforme Adorno explicaria numa série de conferências radiofônicas proferidas em 1962, porque esta induziria ao erro de julgar que se trata de uma cultura emergindo espontânea e autonomamente, do seio das massas. Essa interpretação enganosa, segundo ele, serviria apenas aos interesses dos donos dos meios de comunicação.


Quanto à televisão, era o principal instrumento dentre os "meios de massa" conhecidos por Adorno há algumas décadas. Espécie de ponta-de-lança da indústria cultural, que, nas palavras do próprio autor, "impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente". Como se vê, os sintomas provocados fazem lembrar o "emburrecimento" de quem não consegue diferenciar os próprios pensamentos e acaba indo viver na jaula dos bichos, de que falam os Titãs.

Segundo Adorno, na indústria cultural tudo se transforma em negócio. Ele diz: "Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais." Para ele, a indústria cultural só se importa com as pessoas enquanto empregados ou consumidores, não apenas adaptando seus produtos ao consumo, mas ditando o próprio consumo das massas. Portadora não só de todas as características do mundo industrial moderno mas também da ideologia dominante, seria a verdadeira origem da lógica do sistema capitalista. Conforme o autor, o homem liberto do medo da magia e do mito torna-se vítima de outro engano: o progresso da dominação técnica, que acaba sendo utilizado pela indústria cultural como arma contra a consciência das massas. Inclusive em seu tempo livre, o indivíduo é presa da mecanização provocada pela indústria cultural, com Adorno dizendo que "só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina adequando-se a ele no ócio"

Assim, a indústria cultural estabelece uma espécie de comércio fraudulento, que promete a satisfação das vontades mas na verdade as frustra, num tipo de jogo perverso de oferecimento e privação, em que um exemplo nítido e atual pode ser dado pelas situações eróticas apresentadas pela internet. Ali, o desejo atiçado pelas imagens acaba encontrando apenas a rotina que o reprime, num mundo virtual. Embora antes do advento da rede mundial, Adorno observava que a situação une "à alusão e à excitação a advertência precisa de que não se deve, jamais, chegar a esse ponto".





Conforme resume o professor Francisco Rutiger, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e autor do livro "Th eodor Adorno e a crítica à indústria cultural" (Edipucrs, 2004): "A crítica à indústria cultural adorniana não perde sua atualidade perante os fenômenos de internet, visto que, enquanto plataforma da cibercultura, essa vem a ser um novo suporte por onde corre, agora em escala ainda mais massiva e imediata, o processo de conversão da cultura em mercadoria."
UMA REDE, TRÊS FORÇAS

Ainda a respeito da aplicabilidade das teorias de Adorno à rede mundial de computadores, o professor Fábio Durão, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, coautor do livro "A indústria cultural hoje" (Boitempo Editorial, 2008), comenta: "O conceito adorniano de campo de força é muito útil para se interpretar a internet hoje. Pode-se pensar em três vetores diferentes coexistindo em tensão no mesmo objeto. Há, em primeiro lugar, a linha críticonegativa, que atacaria aquelas posições ideológicas, que veem na internet uma liberdade concreta. Contra isso, seria preciso mostrar o quanto a internet, ao elevar a produtividade do trabalho, ajudou ao mesmo tempo que aumentassem as desigualdades, tanto entre as pessoas quanto entre os países. O mundo hoje é mais iníquo do que nunca. Porém, o trabalho não aumentou apenas do ponto de vista intensivo, mas também das horas empregadas: em muitos casos, o tempo diante do computador faz lembrar o do operário perante a máquina no começo da industrialização inglesa, ainda que não se compare o esforço físico envolvido. A desregulamentação do trabalho, sinônimo de precarização e aumento da exploração, seria muito mais difícil sem a internet."

O professor Durão prossegue em sua análise, afirmando: "Seria ainda possível abordar vários outros aspectos negativos ligados à internet como o isolamento e os danos psíquicos que podem gerar, o vício, a banalização dos conteúdos, etc. Mas a teoria de Adorno também deixaria entrever todo o potencial utópico da informatização e da conectividade, especialmente do ponto de vista da mobilização das pessoas, e da construção de um espaço para a ação política de grupo e para a prática individual. Adorno sempre foi muito cauteloso em relação a esse momento de liberdade potencial, pois ele temia que uma ênfase nele pudesse ofuscar o impulso crítico.



Finalmente, um terceiro vetor seria o histórico- transformacional. Aqui, a interpretação seria voltada para o desdobramento no tempo dos dois vetores anteriores. Ela apontaria para a luta que vem sendo travada em torno da internet, mostrando todas as tentativas de regulamentação da rede e de sua instrumentalização para a obtenção de lucro, por um lado, e os impulsos de resistência, por outro. Sem dúvida, Adorno não faria objeções à aplicação, neste caso, da contradição entre forças e relações de produção. A internet colocaria em cena o desenvolvimento de forças produtivas que estariam em choque com as relações atuais."

E a tão alardeada interatividade da internet, que privilegiaria uma liberdade individual na medida em que os conteúdos fossem específicos para cada pessoa? Seria relevante a ponto de invalidar a análise dos teóricos da Escola de Frankfurt?

Sobre eventuais características que diferenciem a internet dos meios existentes na época de Adorno, Fábio Durão salienta que, também nesse caso, é importante que as distinções sejam examinadas juntamente com as continuidades. E acrescenta: "O rádio e a televisão, que Adorno conheceu muito bem, já atingiam milhões de pessoas. A lógica de dominação da indústria cultural - a estandardização e condicionamento como meios de obtenção de lucro - permanece fundamentalmente a mesma. Do ponto de vista do presente, é possível traçar uma linha genealógica mostrando que a internet não representa essa novidade absoluta que muitas pessoas defendem, pessoas que na maioria das vezes têm alguma espécie de interesse envolvido."




INOVAÇÃO OU MAIS DO MESMO?
O professor Durão continua com suas considerações: "Dito isso, é possível avançar para a seguinte hipótese: talvez a novidade maior trazida pela internet, algo que tem a ver com o nosso espírito do tempo como um todo, seja o conceito de diferença. A homogeneização promovida pelo rádio e televisão são drasticamente modificados pela internet. Muitas palavras de ordem da esquerda na época de Adorno tornaram-se valores os mais comuns e universais de hoje. Veja, por exemplo, como todo o vocabulário da transgressão virou moeda corrente, quase como um valor positivo em si. Note bem: não digo que exista hoje uma diferença de fato, mas que aquela estandardização que o Adorno conhecia foi deslocada. A homogeneização agora tem que passar por um momento de afirmação da diferença, uma aparência de multiplicidade, como se cada pessoa fosse realmente singular, as opções virtualmente infinitas, e as possibilidades de autodefinição ilimitadas. De novo, isso é algo que, da perspectiva atual, já pode ser identificado no fluxo televisivo, mas que com a internet atingiu um novo patamar."

Como pudemos observar, a opinião de especialistas contemporâneos permite concluir que a internet, apesar do avanço tecnológico que incorpora, não constitui um meio que represente uma ruptura com os pressupostos básicos da indústria cultural, criticada por Adorno e seus companheiros. Ao contrário, chega a agudizar alguns fenômenos vistos por esses analistas como negativos, a exemplo da desregulamentação das atividades produtivas, que resultaria em aumento da exploração dos trabalhadores. Dessa forma, integrar-se-ia com perfeição àquela indústria, na qual ocuparia um lugar de destaque frente às críticas dos neoadornianos. Ficam propostos a reflexão e o debate.



*Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador de vários prêmios literários e do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura.


fonte: http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/20/artigo151970-1.asp

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