segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Simbologia e esoterismo em “Iniciação”,de Fernando Pessoa

Gisele Cardoso de Lemos



Fernando Pessoa participou de várias ordens ocultas como a
Ordo Templi Orientis (fundada na Alemanha em 1902), estudou
astrologia, cabala e alquimia como pode ser observado em inúmeros
escritos de seu espólio; trocou correspondências com Aliester Cro-
wley, ex-membro da Aurora Dourada (sociedade secreta fundada em
1888 na Inglaterra) e criador da doutrina Thelema. Sendo assim,
introduzirei o assunto através de uma citação do próprio Fernando
Pessoa , que merece destaque e uma pequena explicação:
Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo
práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da
bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente pe-
rigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem
propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o
caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, por-
que envolve uma transmutação da própria personalidade que a
prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros ca-
minhos não têm.
(Apud CENTENO e RECKERT, 1978, p.
118)
O primeiro caminho citado por Fernando é o da magia, inclu-
indo tanto o espiritismo quanto a bruxaria. O espiritismo é, ao mes-
mo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica.
Como ciência prática, consiste nas relações que se podem estabelecer
com os Espíritos; como filosofia, compreende todas as conseqüên-
cias morais que decorrem dessas relações.
Já á bruxaria é a arte de se harmonizar e interferir na natureza -
considerada a manifestação suprema dos antigos deuses - inclui tanto
as cerimônias sazonais, quanto os ritos em honra aos deuses. Os bru-
xos também se dedicam aos oráculos, feitiços, sortilégios, encanta-
mentos e à fabricação de amuletos.
O segundo caminho para citado o oculto é o místico, ou seja, o
da contemplação e crença no sobrenatural. E em terceiro, o alquími-
co que é o mais refinado pois trabalha no plano real para ter efeito no
plano etéreo; a transmutação dos elementos químicos é apenas o
intermediário para a transmutação e elevação da alma, como se lê em
Iniciação à alquimia de Alberto Magno:


A principal finalidade do trabalho dos alquimistas era a regeneração, o renascimento da alma humana natural e sua direta aliança com a força vital da Natureza. (MAGNO, 2000, p. 59)
Após este esclarecimento e devido ao caráter plural e multifa-
cetado tanto da Ordo Templi Orientis (O.T.O.) quanto da Thelema,
justifica-se a utilização de exemplos e explicações retiradas de diver-
sas culturas e doutrinas para fundamentar a presente análise do poe-
ma.
INICIAÇÃO
Não dormes sob os cyprestes
Pois não há somno no mundo.
................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
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Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser,
Vaes na noite só recorte,
Egual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no hombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Archanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada;
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus eguaes.
...............................................
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre cyprestes.
...................................................
Neophyto, não há morte.

Este poema é, como o título indica, um caminho iniciático. O
narrador fala sobre o não dormir de um iniciante sob o cipreste pois
no mundo não há sono, o mundo não dorme, ele está eternamente em
constante modificação e movimento, e ele como parte integrante
desse mundo dinâmico também possui sua essência e não deve dor-
mir pois o sono é uma espécie de morte.

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O cipreste é uma árvore símbolo da vida por causa da sua lon-
gevidade e sua verdura persistente; representa as virtudes espirituais
porque tem muito bom odor e é considerado símbolo de santidade.
Por representar a vida, ela foi considerada uma árvore funerária em
todo o mediterrâneo pois evoca a imortalidade e a ressurreição
(CHEVALIER, 2003, p. 250). Assim, o iniciante não pode dormir
(morte simbólica) sob o símbolo da vida.

O corpo é a sombra das vestes que encobrem o teu ser profundo”
– As vestes são símbolo exterior da atividade espiritual, a forma
visível do homem interior. Muitas ordens secretas têm as vestes
como um dos utensílios ritualísticos, como é o caso da maçonaria
(Chevalier – 2003, pg. 947). Fernando Pessoa escreveu em um
documento que se encontra no seu espólio as palavras “THRONE
ROBE SWORD”, ou seja, trono, veste, espada: elementos rituais,
simbólicos, de uma iniciação maçônica repleta de cabalismo e al-
quimia. (PESSOA, 1978, p. 156)

Vem a noite, que é símbolo da morte, aquela que toda noite
engole o Sol para o gerar no dia seguinte (Lamy, 1996, p. 21). E a
sombra acabou sem ser porque na noite a sombra não existe, ela só
existe enquanto se tem luz, à noite ela morre.
Seguido o percurso do iniciante, chega este à Estalagem do
Assombro, o lugar onde ocorrerá o primeiro passo da iniciação. Nes-
se local sagrado os anjos tiram a sua capa e com esse gesto ele doa a
si mesmo e, segue com o pouco que tapa seu corpo e sem capa no
ombro. Então na estrada, aquela que leva ao lugar sagrado, os arcan-
jos deixam-no completamente nu, sem vestes, somente com o seu
corpo que é ele.
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A nudez é símbolo da pureza física, moral, intelectual e espiri-
tual; é uma espécie de retorno ao estado primordial, é a abolição dos
limites entre o homem e o mundo que o cerca, em função do qual
energias naturais passam de um a outro sem barreiras, daí a nudez
ritual dos guerreiros celtas no combate, de certas dançarinas sagradas
e da linha jainísta que denomina-se vestir-se de céu.(Quintino, 2002,
p. 69)

Por fim, ele chega à funda caverna, e são os Deuses que o des-
pem; tiram seu corpo e externalizam sua alma tornando-o igual aos
Deuses,
são sutis e etéreos. O eu interior ficou entre os Deuses, não
está morto entre os ciprestes porque para o neófito não há morte espi-
ritual, a morte somente atinge o corpo, jamais a alma; há iniciação, o
reinício de outra etapa da vida, geralmente mais elevada.
E todo esse processo ocorre à noite, mais um símbolo junta-
mente com o fim na caverna de que a iniciação ou morte simbólica é
um retorno ao ventre da terra pois é no escuro que todo mistério é
realizado, tudo é gerado e tudo é findado; é no ventre escuro que
somos gerados e é no interior escuro da terra que somos enterrados.
Interessante perceber que nesse poema há a presença do núme-
ro 3 de três diferentes formas. Há 3 ambientes em que ocorre um
passo no percurso iniciático: o primeiro é a Estalagem do Assombro,
o segundo a Estrada e o terceiro a caverna. Há três potências postas
em ordem crescente de poder espiritual: a primeira são os anjos, a
segunda são os arcanjos e a terceira os Deuses. E há três estágios da
iniciação ou três mortes simbólicas que fazem um caminho partindo
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do exterior para o interior do ser humano: primeiro se retiram as
vestes (o mais externo possível), depois o pouco que o tapa deixan-
do-o nu, bem próximo da natureza e por último tira-se o corpo e
permanece apenas a alma, a parte mais oculta e profunda do ser hu-
mano.
O homem aqui é visto como o microcosmo que é um reflexo
do macrocosmo, o universo. “O que está em cima está embaixo”.
Todos os mistérios do universo estão guardados na alma do ser hu-
mano, então, para descobrir os mistérios do cosmo há que se desco-
brir os mistérios da alma. (BARRETTI, 1994, p. 282)
O poema “Eros e Psyche” de Fernando Pessoa traz uma cita-
ção dizendo que o Grau do Neófito compõe a Ordem Templária da
qual ele fez parte, porém essa informação não invalida uma análise
dos três graus através da perspectiva maçônica visto que a Ordo
Templi Orientis possui caráter maçônico e iniciático.
Na maçonaria há três graus de iniciação; o primeiro grau re-
presenta o ser humano individual e o lugar que ocupa nos Mundos, é
chamado de Aprendiz e possui três instrumentos para sua arte de
ofício na loja; o segundo grau é chamado de Companheiro e possui a
simbologia da escada, uma escada interior que o indivíduo deve subir
quando conseguir retirar sua atenção do mundo físico para examinar
a natureza da sua alma e as tarefas para o seu próprio progresso psi-
cológico; possui outras três diferentes ferramentas de trabalho; o
terceiro grau é o do Mestre Maçom e indica que o conceito habitual
da vida humana é como a morte comparada com a capacidade do
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potencial humano. Muito interessante é que o quadro que simboliza o
terceiro grau possui o desenho de um caixão encimado por uma ca-
veira. (MACNULTY, 1996, p. 18).
Y. K. Centeno (PESSOA, 1993, p. 374) tem uma teoria de que
a iniciação para Fernando Pessoa é a escrita, por essa perspectiva o
grau do Neófito seria a aquisição dos elementos culturais com que o
poeta terá de lidar ao escrever, o grau de Adepto será o de escrever
simples poesia lírica, o grau de Mestre será o de escrever poesia épi-
ca, poesia dramática, e a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramá-
tica, em algo de superior que as transcenda. Sua proposta é a sacrali-
zação da escrita ao designar cada grau correspondendo a um tipo de
domínio da escrita.
Como é visto em “Magus”, de Francis Barret (1994, p. 119), o
número três é um número sagrado, o número da perfeição pois ge-
ralmente os antigos deuses são trifásicos.
Os elementos corpóreos e as espirituais consistem em três par-
tes, isto é, começo, meio e fim. O mundo completa-se pelo três, co-
mo disse Trismegistus: harmonia, necessidade e ordem; o ciclo do
tempo se fecha em três: passado, presente e futuro. O triângulo é a
primeira figura geométrica produzido por linhas retas e este é um dos
símbolos do divino, do sagrado. Ele representa as três esferas cósmi-
cas: planos inferiores, plano material e planos superiores e, as três
dimensões humanas: corpo, mente e espírito (CHEVALIER, 2003, p.
899).
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Referências Bibliográficas
BARRETT, Francis. Magus: tratado completo de alquimia e filosofia
oculta. São Paulo: Mercuryo, 1994.
CENTENO, Y. D. e STEPHEN Reckert. Fenando Pessoa: tempo –
solidão – hermetismo. Lisboa: Moraes, 1978.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2003.
LAMY, Lucien. Mistério egípcios: nova luz sobre conhecimentos
antigos. coleção Mitos – Deuses – Mistérios. Madrid: Edições Del
Prado, 1996.
MACNULTY, W. Kirk. Maçonaria: viagem através do ritual e dos
símbolos; coleção Mitos – Deuses – Mistérios. Madrid: Edições Del
Prado, 1996.
MAGNO, Alberto. Iniciação à alquimia. Rio de Janeiro: Nova Era,
2000.
PESSOA, Fernando. Mensagem – Poemas esotéricos/Fernado Pesso-
a; edição crítica, José Augusto Seabra, coordenador. Espanha: Ar-
chivos, CSIC, 1993.
QUINTINO, Cláudio Crow. A religião da Grande Deusa. São Paulo:
Gaia, 2002.

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