sábado, 2 de janeiro de 2010

alice ao quadradro - Estudo obre a dualidade que exite no batman

As figuras do baralho. As cartas da escuridão


A palavra “Diabo” vem do grego, “Diabolos”. E o que significa? Símbolo. O grande arquétipo do mal traz em seu nome este significado. "Símbolo”. Mais do que uma equação evidente de que o Coringa seja a outra face da moeda, o filme Batman- Cavaleiro das Trevas (Christopher Nolan, EUA, 2008) mostra que o vilão, o grande adversário, é a mesma figura do herói: só que invertida, ao contrário. Ambos dividem a mesma carta de um baralho. Duas faces de um mesmo símbolo.
A grande chave de leitura está nessa palavra. Símbolo.

A complexa dualidade entre bem e mal é demonstrada visualmente em uma cena antológica: o Batman suspendendo o Coringa que a um triz de despencar para morte, do alto de um edifício, trava um diálogo com o seu adversário. “Somos o mesmo”, seria essa a tradução do que o Coringa teria lhe dito. O Batman por cima. O Coringa por baixo. O espelho que revela a carta do baralho, as duas figuras.

“Com o Coringa nada é simples”, diz o Batman. Parafraseio o herói. Em Batman – Cavaleiro das Trevas nada também é simples. O bem e o mal escavam territórios além do previsível. As trevas, as sombras, são identificações arquetípicas do mal. Nem por isso deixaram de ser as cores do uniforme do herói, o Batman. Ele combate o mal, que é vestido de festa e de colorido pela figura do Coringa, um clow cruel. Crudelíssimo. Um bobo da corte que não se preocupa em alertar o Rei, mas rebelde cujo prazer está em desfazer as regras e jogar suas cartas no caos.

Heath Ledger, em sua magistral e antológica interpretação, não deve ser comparado com ninguém. Não seria justo. Nem com Jack Nicholson. Nem ter todo o seu trabalho de pesquisa teatral, de concepção clownesca, barateado em função de sua morte trágica. O filme é do Coringa. Da mesma maneira, como “Otelo”, de Shakespeare, é de Yago e não do protagonista que lhe dá nome.

Todo o esqueleto estrutural da narrativa ou, para usar um termo mais caro ao filme, todas as cartas, são dadas por ele, o Coringa. Retornando à perspectiva simbólica, que o filme de Nolan soube construir tão bem, em sua primeira ação, o que é que acontece? Todos os cúmplices do assalto orquestrado pelo Coringa matam-se uns aos outros e por quê? O Coringa, como o Diabo, joga com as fraquezas humanas. Ordena a cada bandido matar ao outro para que haja poucas mãos na divisão do dinheiro.

Essa ação inicial é a metáfora de todo o filme. O Coringa, como a Serpente – outro símbolo- no Paraíso, sopra nos ouvidos, arquiteta - ao contrário do que ele diz – encruzilhadas cujas escolhas revelam os limites e as baixezas mais obscuras. Exemplo maior disso é a cena das duas barcas, uma com os bandidos, a outra com os cidadãos de bem, ombreadas lado a lado no mar de uma Gotham em fuga na iminência de uma hecatombe. O que é que o Coringa faz? Põe sob o controle de cada tripulação o destino da outra: um dispositivo acionado explode o vizinho e vice-versa.

Outra cena emblemática. Outra referência metafórica. As barcas – novamente o dualismo bem e mal se confundindo, como a figura do baralho - na verdade, são uma só, barca da Divina Comédia de Dante (nada melhor para um palhaço cruel do que esta citação) , descendo pelo rio do inferno.

Voltando a comparação shakespeareana. Eu disse que Otelo é de Yago, o personagem que arquiteta, sugere e faz com que o marido ciumento assassine a esposa honesta. Mas, Otelo não dá nome à peça por acaso. Tem sua ética, tem suas dúvidas. A exuberante atuação de Ledger não ofusca a não menos magistral de Bale, que é construída à sombra de si próprio, atuação tão defendida por Merten, o crítico do Estadão, em seu blog nos últimos dias.







Bale não é só o Batman. É o Batman e seus abismos. A atuação dele é grandiosa porque sabe dar os matizes necessários à concepção da dupla identidade do herói. Mas, volto a dizer, nada é simples em O Cavaleiro das Trevas. Não estamos diante de um ator que encarna o herói e sua identidade secreta. É mais que isso. Bruce Wayne não tem apenas a máscara negra do herói. Bruce Wayne põe outras máscaras. Seja no que sente por Maggie Gyllenhall, vivida por Rachel Dawes, lembremos da cena em que ele brinda a Harvey Dent, entregando-lhe o que ele mais preza, o seu maior. Bale interpreta um ator que representa diversos papéis, o de biolionário fútil; o empresário displicente, que fingindo-se de tolo controla sua empresa. Em Wayne é tudo jogo de cena. É metateatro o tempo todo. É por esta razão que eu concordo com Merten. O filme é do Bale, sim.

Harvey Dent. Que personagem, o Duas Caras! Dent é a síntese entre Coringa e Batman, o bem e o mal em um só corpo. No primeiro ato, Harvey é o Cavaleiro Branco de Gottam, o promotor que sem uma gota de sangue derramada prende toda a máfia. E no momento crucial, assume o lugar de Batman, quando este é forçado a revelar sua identidade. Dent quer atrair o Coringa. A retribuição é feita no último ato. Tanto pelo Coringa que faz com que Dent seja o elemento desestabilizador, insuflado pelas suas dúvidas e pelo Batman assume para si os crimes cometidos pelo Duas Caras, quando este morre.

E o que dizer ainda de Gary Oldman, Morgan Freeman, Michael Caine? Todos em atuações memoráveis. Batman – Cavaleiro das Trevas é um daqueles poucos filmes em que tudo conspira a favor. Em que há uma secreta sintonia. O herói que na cena final é perseguido por cães e policiais, caçado como um bandido, é o herói que Gotham merece. É a representação do herói que mais se ajusta aos tempos loucos em que vivemos.

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