terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Por Zé Delmo




Como vocês sabem, no ano cristão de 1500, os portugueses chegaram aqui, viram essas lindas praias brasileiras e, três décadas depois, dividiram a costa brasileira em lotes. Por quê? Assim que chegou a notícia que os navegantes lusos haviam descoberto uma nova terra (ou melhor, invadido uma nova terra, uma vez que aqui já era habitado por índios) os piratas franceses, os corsários, começaram a freqüentar essas praias. Traziam miçangas, panos coloridos, punhais, machados, davam para os nativos e os nativos, em troca, davam o pau-brasil. O rei de Portugal, D. João III, ficou preocupado. E o que fez? Tratou de povoar. Dividiu o Brasil em quinhões e os deu para os soldados que atuavam na Ásia, os ricos do reino e os nobres da corte. A nossa capitania, Capitania dos Ilhéus começava na ilha de Tinharé, uma ilha que nós temos aqui, ao Norte, perto da cidade de Valença, e se estendia até o local onde se ergue a bela cidade de Canavieiras, ao sul.

... cinqüenta léguas de terra da dita Costa do Brasil e que começarão na ponta da Bahia de Todos os Santos da banda sul, e correrão ao longo da Costa dito Sul quando couber nas cinqüentas léguas se estenderão, e será de largo ao longo da Costa, e entrarão, na mesma largura pelo sertão, e terra firme adentro quanto poder entrar, e for de minha conquista, com todas as ilhas, que houver até dez léguas ao mar da fronteira digo na fronteira e demarcação das ditas cinqüenta léguas...
(Fragmento da Carta de Doação. In: BARBOSA, Arléo. 2003).

Essa grande faixa de terra, o rei de Portugal doou para um fidalgo da corte, o escrivão da Fazenda Real Jorge Figueiredo Correa que - nunca veio aqui - mandou um tenente espanhol chamado Francisco Romero tomar conta. Francisco Romero saiu de Portugal no ano de 1535, do Rio Tejo, e foi direto, com os colonos, para o Morro de São Paulo, ilha de Tinharé. Ficou um ano por lá e fundou um povoado. Depois de um ano, desgostou-se do lugar, bateu em retirada e veio para essa localidade, banda sul da capitania, onde fundou, no outeiro de São Sebastião (um morro atrás da catedral do mesmo nome), lá no seu alto, a Vila de São Jorge dos Ilhéus, em homenagem ao Santo guerreiro, São Jorge e em bajulação ao dono da capitania, Jorge de Figueiredo. Os colonos que vieram com Francisco Romero fizeram amizade com os índios tupiniquins; tidos como mansos, caçavam, pescavam, cultivavam, viviam na beira da praia. Esses índios ajudaram os colonos a implantar seus engenhos e seus canaviais. A capitania prosperou; ficou sendo a fazenda mais rica do rei de Portugal. Logo depois, os colonos quiseram escravizar os índios e os índios, então, se revoltaram, incendiaram as plantações de cana-de-açúcar e mataram alguns senhores de engenho. Desses senhores, os que restaram subiram o morro e ficaram um tempo por lá, amoitados, cercados pelos naturais. Até que uma noite, um desses senhores fugiu e foi a Salvador pedir ajuda a Mem de Sá, o então Governador-geral do Brasil. Mem de Sá veio com os soldados. Desembarcou na praia e adentrou a mata e arrasou todas as aldeias possíveis da região. Foi tangendo os índios até a praia do Cururupi, uma praia que nós temos ao sul, antes do povoado de Olivença. Ali foram afogados centenas de índios. Tiveram medo das armas de fogo e entraram no mar e, quando o mar secou, a praia ficou repleta de corpos de índios. Padre Manoel da Nóbrega viu a batalha, conhecida como Batalha dos Nadadores, Guerra dos Ilhéos ou Martírio do povo Tupinambá. 1559. E José de Anchieta, o jesuíta do Brasil, fez um poema épico, não em homenagem aos índios, mas em homenagem a Mem de Sá, por esse e outros tantos massacres feito por ele aos povos brasileiros.
Oh, grande Governador lusitano
[Irás] impor santas normas a uma raça indomável?
essa raça selvagem, sem a menor lei
(José de Anchieta. 1970)

Mas a guerra continuou. Outra tribo, Aimoré, conhecida também como Botocudo, continuou a guerra contra os invasores. A capitania decaiu, ficou pobre, dois séculos e meio de guerra. Nesse período, impossibilitados de investirem como antes em seus engenhos e canaviais, os ilheenses, como já eram chamados os moradores da vila, passaram a viver somente da extração predatória da madeira: pau-brasil, ipê, jacarandá, jequitibá, massaranduba, oiticica e tantas outras tantas madeiras de lei que existiam na região.
Veio, então, o advento do cacau. Como talvez vocês todos saibam, o cacau não é da nossa região; é do Amazonas, do Pará. O cacau é originário da América do Sul e da América Central: Peru, Amazonas, México. Aos astecas, os índios mexicanos, já tomavam o chocolate dois mil anos antes de Cristo, era uma bebida divina, bebiam em seus rituais e era servida em taças de ouro. Mas o nosso cacau veio do Pará. Quem trouxe? Os jesuítas, por volta do século XVIII. Corre pela região, a história que as primeiras sementes foram trazidas para cá, do Pará, por um colono francês chamado Luis Frederick Warneau, que as deu a um colono português o qual atendia pelo nome de Antônio Dias Ribeiro. Ela as plantou, na sua fazenda, à margem esquerda do rio Pardo.
Mas o certo mesmo é que as primeiras sementes de cacau vieram do Pará para a região sul da Bahia, onde foram plantadas, inicialmente, ao lado da casa grande. Vieram os primeiros pés e os primeiros frutos; depois, começou a nascer o cacau na mata sem que os colonos o tivesse plantado. Como? perguntaram-se os colonos. O macaco jupará (que não é macaco, mas assim é conhecido popularmente) quebrou o coco do cacau, provou o mel dos caroços e engoliu-os inteiros e, nas fezes, saiu cagando pela mata. Ao macaco, o título regional de “Semeador do Cacau”. O rei de Portugal ficou sabendo que a região sul era boa para o plantio de cacau. Incentivou o seu cultivo, tanto que, em 1780, já tínhamos por volta de seiscentos pés plantados na propriedade de Ferreira Câmara, nas proximidades de Caeté.
Mas quem plantou as primeiras grandes roças de cacau na região foram os alemães, no início do século XVIII. Alguns deles, liderados por Pedro Weyll, fugiram das guerras religiosas na Alemanha vieram para cá. Aqui, ao norte de Ilhéus, nós temos um rio chamado Rio Almada; desemboca dentro da cidade e dá acesso à Lagoa Encantada, um lugar belíssimo de se ver: cachoeiras, cascatas e um povoado. O povo conta a lenda de caipora, mula-sem-cabeça, almas de jesuítas, cantando por sobre as águas da lagoa em noite de lua. Ali, ao redor da lagoa de quase cinco quilômetros de diâmetro e nas margens do Rio Almada, os alemães plantaram suas fazendas de cacau. Prosperaram. Mas quem deu a cara a essa região, de região cacaueira, foram os retirantes da seca de Alagoas, Sergipe e Pernambuco. Por volta de 1860 a 1890 recebemos uma grande leva deles. Adentraram a mata e botaram suas roças de cacau. Prosperaram.
A Europa fria e os Estados Unidos já acostumados ao consumo do cacau da América Central, aderiram ao nosso. O preço subiu e todos por cá, viraram coronéis, coronéis do cacau. Homens poderosos, ricos, ostentosos, construíram o Teatro Municipal, a Catedral de São Sebastião, a Prefeitura de Ilhéus, escolas, igrejas, trouxeram estrada de trem de ferro. Fundaram povoados, vilas e cidades. Criaram uma civilização chamada “Civilização Grapiúna”.
E então! Esses coronéis ricos e construtores usavam também o caxixe, que na nossa língua regional significa logro, trapaça, engano. Usavam também o jagunço, para tocaiar os mais fracos e tomar suas terras boas de plantações. O certo é que a gente pode definir esses coronéis com um discurso mais ou menos assim:

Joana! Catumbira!Zefinha! Os desgramados desses empregados nunca estão por perto quando a gente mais precisa deles e ainda vem o safado de Bastião me pedir pru mode d´eu sotá uma professora para ensina os fios dos trabaiadô e os trabaiadô pra lê e escrevê. Eu quero lá saber de fio de trabaiadô e trabaiadô meu sabidinho? O que eles tem mesmo de aprender é fazer um x nos quadrinhos dos nossos políticos,nos tempos de eleição. E quem votá errado leva uma surra de umbigo de boi. Ciência? Estudo? Isso é coisa pra fio de coroné. Fio de coroné tem de ser advogado, dotô, homem de justiça, home da lei, como sempre disse meu amigo e cumpade, o sinhô excelentíssimo e digníssimo coroné Badaró, pru mode da gente perder o tiro na tocaia, por desacerto do destino, a gente ganha a roça do surareiro adonde? Na justiça. E eu digo mais: mió do que advogado, juiz, home da lei só mermo político. E político safado, sabichão! Eu mermo tenho um primo que é prefeito aqui numa cidadezinha da região, lá onde o vento faz a curva, um cu do mundo, mas dinheiro de montão. Eu tenho um irmão que é senadô, logo logo ele vai se tornar governador da Bahia. Cum nosso curra eleitorá então! Aí, sim, é que o caxixe vai rolar direitinho pru lado dos mais sabido, nós, os coroné de cacau. Se hoje eu não enxergo o fim das minhas roças de cacau, de tão grande que são, fora os piquetes que eu coloquei na mata, imagine amanhã com meu irmão governadô. Se hoje eu acendo charuto com nota de cem réis e enfiu moeda nos peito e nas bunda das quengas lá no Bataclan de São Jorge dos Ilhéus, imagine que safadeza num me aguarda o futuro cum meu irmão governadô da Bahia. Oi, mais deixa de cunversa cum o tempo, pru mode dele num se revoltá cum a gente e mandar uma vassoura-de-bruxa montada no tempo. Eu vou é lá no Bataclan vê se Maria Machadão, minha quenga preferida, já tomô banho e ta cheirosa mermo.
(DELMO, José. 1985)

Por volta de 1950, a região começou a entrar em crise. A falta de investimento em tecnologia fez o nosso cacau cair de qualidade. A África plantou cacau, concorreu com a gente e o preço baixou.
Como se não bastasse, no final da década de 1980, apareceu o primeiro foco de vassoura-de-bruxa na região, em uma fazenda da cidade de Camacan. De repente, o broto de cacau começa a ficar aparentemente viçoso. Nascem umas coisas parecendo uma vassoura, daí o nome vassoura-de-bruxa. Tem um pozinho, o vento bate e vai passando de pé de cacau para cacau, de roça para roça, região para região. Quando não seca por inteiro o pé de cacau, o fruto seca e os caroços ficam podres.
Os poucos coronéis, que ainda existiam na região, foram à falência. Em vez de tomarem champanha francesa, como faziam antigamente lá no Bataclan, passaram a tomar cachaça, no corote, lamentando a vida.

Pra que viver em fim de vida? Só mesmo para ficar o dia inteiro amassando os passos da amargura, muita dor e tormento. Certo que o sol queime os cacaueiros nos anos de verão forte e faça gerar as grandes crises por falta de safra, coisa que ultimamente tem acontecido. É, é esse vexame a bater de porta em porta despejando sem cessar sua carga de desgosto até em grande fazendeiro. Isso até que se suporta com certo conformismo, o que se pode fazer quando a ingratidão vem por parte do tempo? Nada, nada mesmo. Nada se pode fazer quando tudo é desacerto sob os passos desse calmo e avantajado boiadeiro. O tempo. O TEMPO.
(MATTOS, Cyro. 1981, p. 59)

Agora falemos do trabalhador rural, homens de calos nas mãos, que cria as lendas, as histórias, as fantasias e fez a nossa cultura forte. Ele pega o podão e tira o cacau do alto, o cacau cai no chão. A roça fica toda coberta de coco de cacau, fruto de ouro, como chamavam. Depois o trabalhador pega o caçuá, põe nas costas, pega o biscó, bate no coco de cacau e o joga dentro do caçuá. Quando esse está cheio, ele, o trabalhador, despeja os frutos no chão, formando os pequenos amontoados de cacau, chamados “bandeira”. Várias bandeiras se formam por toda a roça de cacau. Depois, as bandeiras são juntadas em várias rumas e, ao lado dessas, sentam-se homens, mulheres e, às vezes, até crianças (sempre em dupla – o tirador e o cortador) e, com um facãozinho pequeno chamado bodogo, eles quebram o coco de cacau. Os caroços são postos de lado, no chão forrado com palhas de bananeiras. Quando tem bastante caroço de cacau, desce um mel delicioso e afrodisíaco; melhor do que viagra, pois o viagra cega e o mel do cacau é natural.
O trabalhador, ele pega o biscó e vai para a mata tirara cipó para fazer caçuá. Quando retorna à tarde, ele chega assustado e diz assim para a sua amada:

“Quer cipó do bom, pra fazê caçuá?
cansansão, calumbi, com que enfrentá.
Mesmo com biscó na mão,
a mata não fica rala,
e tem bicho que aparece,
não sei quase que padece,
se o sujeito perde a fala!
Passarinho e mato, faz zoada e alvoroço,
moço.
Se não regalá os zóio,
cobra monta no pescoço.
Foi num instantinho, quando o tempo
quase fecha,
e avexa, avexa,
quem é vivente silenció,
inté Zé Pré qué té,
o maior dos caçadô,
religioso, mal começô a orá
ouviu um canto que chamou: sinistro do sabiá.
E, atirô nas copa verde –
sabiá no pé de ingá,
atirô no que mexia - sabiá a caçoa;
atirô no que não via – sabiá a pirraça;
atirô no céu azul - mas sabiá num parou de cantá.
Em casa, já chegado, enfadonho, medonho,
falô pra amada:
- Qui sabiá malassombrada!
- Né, não, meu fiu. É o espírito da mata!
(VANE, Ramon.2002, p. 36)


Senhoras, senhores, jovens e crianças, eu sou o “contador de histórias grapiúnas, uma peça que está em cartaz pela região. E o que são as histórias grapiúnas?”

As histórias grapiúnas têm cheiro de cacau secado na barcaça e pilado por minha avó. As histórias grapiúnas têm cheiro de cajá, mangas, jaca e doce de carambola. Grapiúna significa ave de cor preta ou azul escuro que vive a beira d’água. Esse povo da região que mora a beira do rio Macuco, do rio Almada, do rio Cachoeira e de outros tantos rios e lagoas da região.... Esse povo que, à sua maneira, voa em pensamento, voa em busca de si mesmo. Contar as histórias grapiúnas é como retornar a minha própria história. Filho de coronel do cacau, vivi desde pequeno entre a casa grande e a miséria, entre a ostentação e a fartura. Aprendi que era preciso respeitar a terra porque dela todos nós viemos; que é preciso, também, respeitar os mais velhos, sempre, pois deles vem a sabedoria. Assim, ouvi e vivi tantas histórias. E vi as matas sendo devastadas e as coisas desaparecendo. Mas eu estou aqui e vou lhes contar uma história: era uma vez...
(LISBOA, Romualdo. Inédito)

Assisti essa história
do tempo do onça
no tempo em que o rio
não tinha cacau
e nem fruta-pão.
Só tinha quiçare
velame, cajá.
Não tinha laranja
nem tinha limão
nem pé de cacau
e nem fruta-pão.
..........................
Não corra, meu filho,
que eu sou o teu avô,
e me contou a história
e me deu esta flor.

(COSTA, Sosígenes. 2001, p. 514)

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